sexta-feira, 23 de abril de 2021

EUA apostam na fragmentação da América do Sul

Por Rodrigo Vianna, no site Brasil-247:

Das urnas, das ruas e das redes surgiram sinais contraditórios em boa parte da América do Sul nos últimos meses. Analistas de esquerda enxergam a possibilidade de uma nova onda progressista na região, mas o quadro é ainda nebuloso e incerto. Vejamos...

Se a primeira década do século XXI significou o enterro do neoliberalismo, com uma onda forte de esquerda a ocupar o poder (da Argentina à Venezuela, passando por Uruguai, Brasil, Paraguai, Bolívia e Equador), a década seguinte marcou uma virada para a direita - que se explica por mudanças na economia internacional, mas também por estratégias golpistas impulsionadas pelos Estados Unidos para reocupar o subcontinente.

Os governos de direita instalados no Brasil (Temer/Bolsonaro), Equador (Moreno), Argentina (Macri) e Bolívia (Añez) não mostraram o mesmo vigor programático do neoliberalismo da era FHC/Menem/Fujimori.

O curto ciclo de direita, que agora parece já perder fôlego, tem um caráter destrutivo: romper com programas sociais, anular práticas de valorização das populações negras e indígenas, desmontar a Unasul e a política internacional independente, destruir o projeto de desenvolvimento autônomo e apagar do mapa qualquer vestígio de “socialismo do século XXI” – ainda que no Brasil e na Argentina, especialmente, os governos de esquerda tenham promovido poucas mudanças na estrutura produtiva, nada parecido com um programa “socialista”, nem muito menos “comunista”.

Vale destacar que a onda de direita foi contida na Venezuela. Ali, apesar de todos os problemas políticos e econômicos do governo chavista, a organização popular e as mudanças estruturais no aparelho de Estado (Forças Armadas) permitiram resistir ao golpismo patrocinado pelos EUA. Na Venezuela, “lawfare” e campanhas midiáticas não bastaram para derrubar a esquerda como se fez no Brasil. Tampouco se conseguiu produzir um golpe policial-religioso-militar como o ocorrido na Bolívia.

Mas o que importa observar é que, rapidamente, a direita mostrou seus limites em toda a região nos últimos cinco anos: governa para 30% da população, exclui a massa indígena e trabalhadora, não tem sequer projeto de desenvolvimento (ainda que concentrador, como ocorria no Brasil sob a ditadura de 1964).

Quando chamada a se manifestar no voto, a população devolveu o poder para a esquerda. A vitória de Aníbal Fernandez na Argentina, trazendo de volta o kirchnerismo à Casa Rosada, e o triunfo do MAS na Bolívia, derrotando em menos de um ano o golpe agro/militar/religioso/policial, pareciam indicar uma nova virada progressista a partir de 2020.

No Brasil, o retorno de Lula ao jogo aponta caminho semelhante. Mas é preciso cautela. A esquerda também não conseguiu apresentar um programa claro para o futuro e aposta mais numa “volta aos bons tempos”.

No Equador, isso permitiu que setores da direita liberal impusessem séria derrota ao grupo de Rafael Correa – elegendo em segundo turno um banqueiro. Na Bolívia, logo após ganhar a eleição presidencial, o MAS de Evo Morales acaba de sofrer importante revés nas eleições regionais, perdendo a maior parte dos governos. E, mesmo na Argentina, o peronismo sofre desgaste de popularidade por conta da pandemia e da crise econômica.

Então, a “nova onda progressista” pode ser apenas uma quimera? Calma...

No Peru, o quadro é de absoluta fragmentação: a esquerda organizada teve menos de 10% dos votos e ficou fora do segundo turno, num país destroçado pelo lavajatismo e pelo discurso antipolítica. Pedro Castillo, professor e sindicalista de esquerda, mas sem base organizada nacionalmente, é favorito para vencer a ultradireitista Keiko Fujimori no segundo turno; Castillo, no entanto, pode ter problemas para governar. A direita “liberal” ficou fora do jogo.

Na Colômbia, outro sinal de fadiga do discurso conservador: pesquisa divulgada esta semana mostra o ex-prefeito de Bogotá Gustavo Petro, de esquerda, em primeiro lugar nas pesquisas, seguido por Sergio Fajardo (um “verde-liberal” centrista). A direita uribista, radical, parece sem forças para a disputa.

Petro é um ex-guerrilheiro, que abandonou as armas há 30 anos, tem perfil social democrata e já veio ao Brasil participar de encontros organizados pelo Instituto Lula. A vitória de Petro seria histórica num país em que, desde o século XIX, liberais e conservadores se revezam no poder jogando para a ilegalidade os que resistem.

Esses sinais contraditórios indicam uma longa crise de hegemonia na região: o projeto neoliberal não dá mais conta de oferecer saídas, mas a esquerda pode ter dificuldades para se firmar, caso tente simplesmente repetir a estratégia dos anos Chavez-Lula-Kirchner-Evo-Mujica-Correia-Lugo.

Não há mais a bonança das commodities, a favorecer crescimento de exportações com uso dos excedentes em programas sociais. Isso expõe as vísceras de um grave conflito distributivo: o jogo “ganha-ganha”, em que os muitos ricos faturam e os pobres podem sonhar com alguma ascensão, se encerrou.

A direita, de outra parte, descobriu que o discurso radical, de demonização dos “comunistas” e de eliminação física e simbólica dos adversários, pode permitir vitórias e mobilizações populares. O ressentimento e o medo vieram para ficar, como armas da extrema direita em sociedades que não conseguem mais crescer como no passado.

A tendência no horizonte é de prolongamento do conflito.

Os Estados Unidos, e aqui volto a tema sobre o qual escrevi ainda antes da queda de Dilma, apostam não na construção de regimes “sólidos” de direita como fizeram nos anos 1960/1970 (Pinochet/Chile, ditaduras no Brasil/Argentina), mas em estados enfraquecidos.

Trata-se de um projeto já vitorioso no mundo árabe: desde o fim da Guerra Fria, os EUA impuseram derrota histórica aos países governados pelo chamado “nacionalismo árabe”: Tunísia, Líbia, Egito, Iraque e Síria. Nesta última, Assad só resistiu porque a Rússia entrou na guerra e sustentou o governo sírio - ainda que enfraquecido.

Depois de aniquilar o nacionalismo árabe, os EUA se voltaram de novo para América do Sul na segunda década do século XXI. O projeto aqui também é o de aniquilar o ensaio de independência, representado por UNASUL e CELAC (leia meu artigo sobre o tema).

O projeto imperial é consolidar por aqui o que tenho chamado de “estados zumbis”. O risco para os países da América do Sul é caminharem para uma situação de anomia, com estados nacionais cada vez mais fracos, divididos e incapazes de agir no xadrez mundial. Isso é fundamental para os Estados Unidos, na grande disputa travada contra Rússia e China.

A eleição de Lula, em 2022, pode significar um ponto de virada e definição. Mas será uma longa travessia para reconstruir, nas frestas da disputa mundial, um projeto independente em que a América do Sul possa crescer, protegendo a natureza e a vida, e distribuindo renda.

Dessa vez, isso só será possível se governos progressistas forem capazes de alterar estruturas produtivas e de poder, sem ilusões com burguesias nacionais que, na hora H, correm sempre para Miami e aceitam o papel de administradoras do espólio colonial.

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