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Sob o capitalismo, as duas lógicas de ferro para qualquer agente econômico são competir e acumular. Em sua fase neoliberal, o sistema tornou ainda mais obsessiva a luta por estes objetivos. Por isso, as políticas impostas à Petrobras pelos dirigentes que a controlam desde 2016 parecem, à primeira vista, tão incongruentes. No texto de abertura desta série, vimos que o PPI – Preço de Paridade de Importação adotado pela estatal – está servindo para favorecer seus concorrentes. A Petrobras tem plenas condições (estrutura e conhecimento tecnológico) para refinar o petróleo e produzir 100% dos derivados de que o Brasil necessita. Mas, ao elevar artificialmente os preços finais no varejo, cria vantagens econômicas para que empresas multinacionais importem os combustíveis, vendam-nos com lucro e abocanhem fatias cada vez maiores do mercado interno.
Além de suicida para a companhia, a prática agrava a regressão produtiva do país. Embora sejamos exportadores de petróleo bruto, passamos a importar, sem nenhuma necessidade, os produtos refinados. Mas não é só neste aspecto que a estatal está deixando de ser empresa pública. Uma outra política, complementar ao PPI e tão extravagante quanto ele, leva a Petrobras a desacumular recursos – a transferir de modo submisso, a seus acionistas, recursos criticamente necessários a ela própria e ao Brasil.
São recursos imensos, vale frisar. Adotado em outubro de 2016, e tendo produzido uma alta dos preços dos combustíveis, 2,3 vezes superior à inflação o PPI também fez os lucros da Petrobras dispararem. Os valores alcançaram R$ 25,8 bilhões em 2018 e R$ 40,1 bi em 2019. Caíram para R$ 7,11 bi no ano seguinte, quando o setor de petróleo despencou em todo o mundo devido à pandemia. Mas já saltaram de novo, em 2021, para R$ 106,6 bilhões (ou US$ 20,9 bi). Significa que, possuindo ativos muito inferiores aos das quatro maiores petroleiras ocidentais (Exxon, Shell, Chevron e BP), a Petrobras lucrou mais do que cada uma delas, em média (US$ 18,87 bi), no mesmo período. Significa mais: embora os quatro maiores bancos brasileiros (BB, Bradesco, Itaú e Santander) tenham quebrado todos os recordes de lucros, no ano passado, nossa empresa petroleira ganhou, sozinha, 30,6% a mais que todos eles juntos…
O mais espantoso, porém, é o que a Petrobras faz, com os ganhos que obtém. A Lei das Sociedades Anônimas, à qual a empresa está submetida, obriga-a a distribuir, entre seus acionistas, 25% de seus lucros. O Banco Itaú, por exemplo, fica tradicionalmente neste patamar – entre 25 e 26% todos os anos. Mas em 2021 a Petrobras despendeu R$ 101 bilhões – ou 95,3% – de seu ganho líquido aos acionistas, retendo apenas 4,7%. Segundo Nicola Pamplona, jornalista especializada em mercado de ações, a empresa assumiu a condição conhecida nas bolsas como de “vaca leiteira”. A diretoria executiva da empresa defende explicitamente que o processo se prolongue no futuro.
E quem são os felizardos que mamam, nas tetas da Petrobras, o suor que ela drena da maioria da população? O Estado brasileiro detém 50,5% das ações com direito a voto. Mas os dividendos são pagos a todos os acionistas. E neste bolo, a fatia do leão cabe a grandes especuladores internacionais – entre eles, fundos gigantescos como o Black Rock (ativos de 3 trilhões de dólares). Os acionistas estrangeiros controlam 45,18% do capital da Petrobras. Restam às pessoas físicas e jurídicas brasileiras 17%. A fatia é, também, quase toda controlada por grandes “investidores”.
O que leva uma empresa que emergiu das lutas do povo brasileiro a extrair dinheiro da sociedade – inclusive dos mais pobres – para transferir aos cassinos financeiros globais? Imersa em relações sociais capitalistas, e comandada quase sempre por governos conservadores, a empresa, sempre atuou, é claro, em meio a ambiguidades. Mas há um ponto de inflexão nítido, que a conduz à espiral descendente de hoje. Em seguida à adoção do PPI, a Petrobras vive uma sequência de mudanças estatutárias que buscam anular seu caráter público. Elas são tão dramáticas que não seria exagero chamá-las de um “golpe de estado corporativo”. O processo, quase inteiramente oculto do noticiário, precisa ser examinado em profundidade. Sem revertê-lo, num novo governo, não será possível resgatar a companhia do processo de privatização silenciosa e desmanche em que está mergulhada.
A primeira e mais decisiva alteração dos estatutos da Petrobras ocorreu em 26/04/2018, por meio de assembleia geral extraordinária dos acionistas. Embora de interesse notório dos investidores privados, a mudança foi proposta, como demonstram as atas, pela própria administração da empresa, então comandada por Pedro Parente, indicado por Michel Temer. Alterações introduzidas já no Artigo 3º, limitam a capacidade da empresa para rever a política de “comercialização de combustíveis” (parágrafo 4). É como se o PPI, adotado apenas dois anos antes, assumisse não mais o status de uma política, alterável como qualquer outra, mas passasse a expressar as “condições de mercado”, ou os “preços internacionais” – que, como vimos no texto anterior, são um parâmetro fictício. As novidades vão além. O parágrafo 5 limita a própria possibilidade de a Petrobras “contribuir para o interesse público”! Porque nesta hipótese, diz o novo texto, a União estará obrigada a “compensar” a empresa (leia-se: os cassinos financeiros) por se desviar das supostas “condições de mercado”.
De que serve à sociedade e ao Estado brasileiro uma empresa que não pode “contribuir com o interesse público” – ou só pode fazê-lo se for paga para isso? Em diversos episódios posteriores, tanto acionistas minoritários da Petrobras quanto “especialistas” consultados pela mídia e dirigentes da própria companhia fizeram questão de confirmar as restrições. Em fevereiro de 2021, Marcelo Mesquita, representante dos minoritários no Conselho de Administração da estatal, dizia em entrevista à Globonews que o PPI estava “blindado” de “interferências políticas”. Em outubro do mesmo ano, o gerente geral de comercialização da empresa, Sandro Barreto, declarou, em depoimento ao Senado que “qualquer decisão tomada pelo acionista controlador que não maximize o resultado financeiro deve ser compensada”.
Há em todas estas declarações, é claro, muito de bravata. O Estado brasileiro ainda não perdeu nem os 50,5% dos votos nas Assembleias Gerais da Petrobras, nem o direito de indicar a maioria dos membros do Conselho de Administração da empresa, nem o de compor, por meio dele, sua direção executiva. Uma mudança de rumos em Brasília pode reverter, sem maiores dificuldades, a captura da estatal pela oligarquia financeira.
Por isso mesmo, avança a passos largos, a tentativa de asfixiar e inviabilizar em definitivo a estatal. O meio mais primitivo para tanto é fazê-la estagnar. O gráfico abaixo mostra outro paradoxo espantoso. Quanto mais a empresa gera receitas (barras escuras), menos ela investe (barras claras) em todas as suas atividades. Aqui, aplica-se outra metáfora zoológica. O Estado brasileiro parece estar matando a galinha dos ovos de ouro. Mas não é exatamente assim.
Os planos para privar o Brasil de sua riqueza petroleira avançam também por outro caminho. Trata-se de eliminar todas as atividades da Petrobras relacionadas ou com as carências e anseios da sociedade brasileira, ou com a própria necessidade de diversificar suas atividades econômicas. Petroquímica. Fertilizantes. Biocombustíveis. Distribuição de derivados no varejo. Apoio à indústria nacional. Transição para energia limpas. Ação cultural – tudo isso está sendo cancelado pela estatal brasileira. Enquanto todas as empresas petroleiras do mundo lutam por deixar a condição de meras extratoras de petróleo, e se possível para produzir outras formas de energia, a Petrobras trafega em alta velocidade na contramão desta tendência.
Como veremos no próximo texto, é o caminho certo para apagar de vez seu caráter de empresa pública. Quando – e se – isso acontecer, suas imensas reservas de petróleo serão presa fácil para as petroleiras internacionais.
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