sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

A batalha para incluir os pobres no orçamento

"Brasil devastado pela covid, enfrenta uma epidemia de fome"/NYT
Por Jair de Souza


A vitória eleitoral de Lula em 30 de outubro passado foi de fato retumbante. Mas, não deve ser encarada como o desfecho exitoso de nossa luta contra o processo destrutivo iniciado com o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 e intensificado ao extremo nos quatro anos seguintes do governo nazista-bolsonarista.

A eleição de Lula nos indicou tão somente a primeira pedra a ser transposta. Por mais importante que tenha sido derrotar a monstruosa máquina construída e empregada visando eternizar no comando do aparelho do Estado as forças político-econômicas agrupadas em torno da extrema direita mais antipovo e entreguista de que se tem notícia em toda nossa história, ganhar as eleições era tão somente o primeiro passo da caminhada. E, convém ressaltar, não se tratava sequer do passo mais difícil a ser dado. As dificuldades que nos esperam depois disso são ainda maiores e terão de ser enfrentadas com muita determinação para que possamos realmente fazer algum avanço no rumo dos objetivos almejados.

A base da proposta vencedora no pleito eleitoral era muito simples e fácil de ser entendida: Incluir os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda. Muito provavelmente, o maior entrave para sua posta em prática se deve exatamente a sua clareza e simplicidade. As soluções reais costumam ser simples e visíveis e, por isso mesmo, são resistidas com maior tenacidade por aqueles que não desejam alterar as feições de desigualdade há muito imperantes em nossa sociedade.

Para que os pobres venham a ser efetivamente inseridos no orçamento nacional, planos de inclusão são necessários. E não há como implementar tais planos sem a disponibilização de recursos para custeá-los. A grande pergunta que emerge disto é: De onde retirar os tais recursos?

Antes de responder a questão colocada, seria importante deixar claro que transformar a população atualmente marginalizada em participantes efetivos da sociedade representaria um fator economicamente positivo não apenas para os grupos até então excluídos, mas também para a nação em seu conjunto, inclusive para os empresários, sejam eles pequenos, médios ou grandes. O único requisito para que isto tenha validade é a compreensão de que é possível ganhar mais, ou seja, auferir maiores lucros, através do aumento generalizado da produção e das vendas, e não apenas por meio da redução drástica da participação dos trabalhadores no percentual de apropriação da renda total. Lamentavelmente, nossas classes dominantes parecem não enxergar nada além desta última alternativa.

Tendo feito a ressalva anterior, vamos tratar de deixar evidente de onde extrair os fundos indispensáveis para viabilizar um processo transformador de novo caráter e explicitar as razões para que assim seja.

Como sabemos, tudo o que é oferecido ou disponibilizado pelo Estado tem um custo. Nada é grátis. Quando alguns têm acesso a certas coisas, mas não pagam por elas, isto significa que outros estão pagando. Portanto, o primeiro que nos toca fazer é elucidar de modo clarividente quem anda pagando a maioria das contas no Brasil.

Diferentemente do que ocorre em países onde o nível de desigualdade social não se mostra tão marcante, no Brasil a principal fonte de recursos para as atividades estatais são os impostos embutidos nos preços dos bens de consumo. Por aqui, a tributação direta sobre lucros, dividendos e demais rendimentos do capital é quase que insignificante. É bom termos em conta que somos um dos poucos países do planeta em que a renda auferida de dividendos está inteiramente isenta de tributação. Os outros são a Estônia e a Letônia.

Em consequência, o grosso de nossa carga fiscal se origina da taxação imposta aos bens de consumo. Os percentuais da carga tributária incidentes sobre os ganhos de capital no Brasil são vergonhosamente muito baixos. Em outras palavras, quem arca com o peso real dos custos do aparelho estatal em nosso país são os consumidores das mercadorias comercializadas. Se isto, de por si, serve como indício de que grandes injustiças podem estar sendo acobertadas, o panorama se torna ainda mais aterrorizante quando nos conscientizamos de que os bens de consumo exclusivos das classes endinheiradas costumam estar isentos, ou receber gravames muito mais baixos do que aqueles destinados ao consumo popular. Tanto assim que, se desejarmos comprar um iate, um barco, um helicóptero, ou um jatinho particular, não teremos de pagar os emolumentos que incidiriam no caso da compra de um automóvel de linha popular, por exemplo.

O fato de que a arrecadação tributária provenha em grande medida dos impostos cobrados dos bens de consumo acentuam em muito os fatores de desigualdade que estão presentes desde os primórdios de nossa existência como nação. Para que todos possam vislumbrar a relevância desta questão, vamos apresentar à continuação um cálculo hipotético (mas, muito realístico) do tipo de problema a que nos estamos referindo.

Com vistas a tornar mais fácil a assimilação do exemplo, vamos considerar que no Brasil temos as seguintes condições: Uma população total de 200 milhões de cidadãos contribuintes. Deste total, 160 milhões são trabalhadores que ganham em média 2.500 reais por mês, e os outros 40 milhões são de ricos que recebem mensalmente uma média de 50.000 reais. Vamos também fazer uma suposição bem realística de que os trabalhadores gastam em consumo toda a renda que recebem, ao passo que cada rico gasta em consumo quatro vezes mais do que um trabalhador. Para efeitos práticos, vamos considerar que todos os produtos de consumo comercializados no país estão sujeitos à tributação de 25% sobre seu valor de venda. Com base nestes dados, vamos desenvolver o raciocínio que mostraremos a seguir.

a) Renda total mensal do país: R$ 2.400.000.000.000,00, sendo R$ 400.000.000.000,00 correspondentes aos trabalhadores (160.000.000 x 2.500) e R$ 2.000.000.000.000,00 (40.000.000 x 50.000) aos ricos.

b) Gastos de consumo dos trabalhadores: R$ 400.000.000.000,00 (160.000.000 x 2.500)

c) Gastos de consumo dos ricos: R$ 400.000.000.000,00 (40.000.000 x 10.000)

d) Impostos pagos pelos trabalhadores: R$ 100.000.000.000,00 (25% de 400.000.000.000,00)

e) Impostos pagos pelos ricos: 100.000.000.000,00 (25% de 400.000.000.000,00)

f) Percentual de impostos pago pelos trabalhadores: 50% (100.000.000.000,00 de 200.000.000.000,00)

g) Percentual de impostos pago pelos ricos: 50% (100.000.000.000,00 de 200.000.000.000,00)

h) Percentual de impostos pago pelos trabalhadores em relação a sua renda: 25% (100.000.000.000,00 de 400.000.000.000,00)

i) Percentual de impostos pagos pelos ricos em relação a sua renda: 5% (100.000.000.000,00 de 2.000.000.000.000,00)

No final das contas, constatamos que, apesar de representarem 80% do total de cidadãos, os trabalhadores ficam com apenas 16,66% da renda total. No entanto, são obrigados a arcar com o mesmo total da carga tributária que a minoria de ricos.

Os ricos, por sua vez, embora representem tão somente 20% da população, embolsam 83,33% do rendimento total gerado. Porém, são tributados no mesmo montante que a restante imensa maioria.

Como no Brasil não existe uma tributação coerente em relação aos ganhos do capital, o resultado é que temos uma imensa quantidade de recursos que acabam sendo destinados a mera especulação financeira. Em outras palavras, é dinheiro que gera novo dinheiro sem produzir nada de útil por isso.

Uma das maneiras usadas pelos países capitalistas do Primeiro Mundo (repito, capitalistas) é taxar muito mais severamente os ganhos de capital e, com isso, gerar recursos para sustentar os programas de assistência requeridos pela sociedade como um todo. Outra medida que costuma ser usada adicionalmente, é a tributação ainda mais severa para os capitais que não são aplicados em atividades realmente produtivas, ou seja, aqueles que tendem a se multiplicar pela mera especulação.

Todo economista com um mínimo de conhecimento da ciência (inclusive aqueles que se identificam com o capitalismo) sabe que a taxação dos ganhos de capital e, em especial, das grandes fortunas, não tem por que causar nenhuma recessão ou processo de desinvestimento. Na verdade, por força das leis econômicas, deveria ocorrer todo o contrário, uma vez que uma melhor distribuição das riquezas leva a um maior nível de demanda por consumo e, por consequência, um aumento da produção e das vendas. Logicamente, no final, os capitalistas também acabariam ganhando ainda mais.

Entretanto, via de regra, os capitalistas e os economistas que os servem se recusam a aceitar esta evidência que eles mesmos sabem ser verdadeira. Por que ocorre isto? Bem, é algo que ao longo da história observamos com frequência. Todos sabemos muito bem que o trabalho assalariado rende muito mais lucros para o empresário do que a mão de obra escrava. Mas, em que lugar e momento da história a escravidão pôde ser eliminada sem uma luta ferrenha contra a resistência dos senhores escravistas?

No Brasil de agora, a luta por fazer com que os custos da inclusão social exigida por nossos sentimentos humanitários não recaia com mais intensidade sobre os trabalhadores e as camadas médias e sim sobre os setores mais abastados não vai ser vencida sem um forte processo de luta. Porém, precisamos dar ênfase à ideia de que é uma causa totalmente justa e que, além disso, opera em benefício de todos, inclusive das próprias classes dominantes.

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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