Foto: Ricardo Stuckert |
Há exatamente um ano a república afastava de sua intimidade a ameaça do projeto protofascista, representada pela possibilidade concreta da reeleição do capitão Bolsonaro. Como a república de 1946 com seu liberalismo weimariano era a resposta lógica da democracia à ditadura do “Estado Novo”, o retrocesso encaminhado em 2018 (desdobramento, por seu turno, do golpe de 2016), seria o reverso da plenitude democrática oferecida pelo regime da Constituição de 1988, vencidos os 21 anos da ditadura militar instaurada em 1º de abril de 1964, cuja ideologia, contudo, renascera como chorume.
Em 2022 o fantasma que nos rondava como presságio de uma tragédia iminente era a promessa do aprofundamento do regime autocrático, de índole militar e reacionária, intrinsecamente autoritário e antinacional que haviam sido os quatro anos do bolsonarismo, doravante – e isso nos atordoava os democratas de todos os matizes – referendado pelo pronunciamento da soberania popular. E sabemos todos como foi difícil transpor o Rubicão do dia 30 de outubro de 2022! Ao fim e ao cabo logramos proclamar a vitória da institucionalidade democrática (que assim muito fica a dever à esquerda brasileira), e ao invés da conservação autoritária temida, no 1º de janeiro quem subiu a rampa foi a promessa de um governo nascido nas lutas sociais e marcadamente comprometido com a centro-esquerda brasileira que começou a se articular a partir das memoráveis jornadas de 1989.
Temos, pois, o que comemorar, mas esta não é a história toda, pois na difícil vitória eleitoral, fecho de uma campanha despolitizada em país já naquela altura tanto ou mais polarizado quanto em 1964, não houve espaço para o debate ideológico, de modo que não se ensejou às forças socialistas e de esquerda em seu painel mais amplo a exposição de suas críticas ao sistema capitalista e a defesa de suas teses fundamentais. Pôde assim disputar o voto (a despolitização foi a um tempo uma imposição das condições da campanha e uma opção tática), e fê-lo bem, mas não lhe foi possível conquistar “corações e mentes”. O objeto, afinal, não era a construção de uma nova sociedade, mas impedir a continuidade do bolsonarismo na presidência. E, certificaram os fatos, não se tratava de tarefa fácil. Ademais, os sucessos eleitorais a partir de 2002 se mostraram mais concretos e desfrutáveis que as vitórias políticas, como a de 1989, e logo a esquerda trocou o proselitismo de longo prazo pelos frutos do imediato ensejados pelo eleitoralismo.
Por todas as razões demonstráveis, o fato objetivo que se oferece à análise é que, vencidos o pleito, a intentona de janeiro e as primeiras tentativas de desestabilização do novo governo, e nada obstante o que as investigações policiais e judiciárias vêm revelando da domesticidade do bolsonarismo, a direita fascista e golpista, seu campo, permanece forte, organizada e politicamente ativa, mantendo vínculos os mais estreitos com a caserna, a Faria Lima, o agronegócio e o neopentecostalismo atrasado, enquanto partilha o controle do Congresso com o Centrão e todas as catervas de assaltantes do erário, e por seu intermédio manipula o Orçamento da União. Governa Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nada menos de 67%do PIB nacional! (Dados do IBGE para 2020). Esta é a república em que se transformou o sonho dos constituintes de 1988, e, nas contingências presentes, ponderadas as ilusões e os pesadelos, ainda devemos saudar sua sobrevivência e protestar o compromisso de defendê-la.
Eleito, Lula é jungido a governar em um regime transformista, que, se não é mais o presidencialismo da ordem constitucional, ainda não é um parlamentarismo de fato, ou consensual (como foi o do Segundo Reinado), embora o presidente da república de hoje, para governar ou simplesmente conservar a faixa, seja obrigado a compartilhar o poder executivo com o presidente da Câmara dos Deputados, como se fôra este um primeiro-ministro, funções nas quais se investe (exercendo-as de fato), diante da fragilidade parlamentar da base governista. Mas não o faz por espírito republicano, senão para mercadejar votos de curral inominável em troca do acesso à máquina pública que enseja ao administrador desonesto o acesso às tetas do erário.
Como lembrava o sábio Conselheiro Acácio, as consequências vêm depois, mas, em nosso caso, elas já marchavam a galope no rasto das negociações dos feiticeiros do Planalto. Incumbidos de adquirir votos na câmara e no senado ao preço da cessão de ministérios (e verbas) e bancos sociais como a Caixa Econômica Federal ao Centrão, terminaram pondo em jogo a própria alma do governo, mergulhado em crise existencial.
O ministério de hoje – um caleidoscópio de forças de esquerda, centro, direita e uma caterva de parasitas dos mais diversos matizes e especialidades – é, já, um ministério velho e envilecido pelas aquisições bastardas. Sem unidade política, ideológica ou programática, sem unidade de princípios, será sempre um ministério pro tempore, aberto a implantes e transplantes sempre que uma votação decisiva atiçar o ânimo chantagista do Centrão e seu Capo dei capi, que acumula essas relevantes funções com as de presidente da Câmara dos Deputados.
Na insegurança tática, a alternativa presente parece ser adiar as decisões estratégicas. Fica para outros tempos menos severos, por exemplo, a decisão hamletiana entre arrocho fiscal ou déficit zero (cobrado pela banca e seus porta-vozes na grande imprensa), ou o investimento visando ao desenvolvimento econômico, de cujo pleito Lula fez uma razão de vida.
Este é o lado mais visível da crise do poder institucional, mas o presidente precisa ouvir, e ouvir com muita atenção, e em seguida ceder generosos espaços de interesse a outros agentes consócios do sistema, embora alheios à soberania popular: a caserna, a Faria Lima, o Banco Central e os grandes meios de comunicação, aparelhos ideológicos do grande capital. Ou seja, o Palácio do Planalto repousa tão-só naqueles dias em que deveria receber as centrais sindicais, os movimentos sociais de modo geral. Mas se esse vácuo enseja um pouco de distensão, consideradas as pautas sempre pesadas do dia a dia, a ausência dos trabalhadores, ademais de indicar as limitações de nosso pacto democrático, deixa o presidente mais distante das forças populares, o único instrumento de que dispõe para vencer o círculo de giz caucasiano no qual o sistema pretende retê-lo, como se a correlação de forças hoje desfavorável fosse ora uma fatalidade decretada pelo Olimpo, ora um determinismo histórico, em todo caso irremovível pela forca humana. Quando não é nem uma coisa nem outra, senão uma contingência que sempre pode ser enfrentada por um governo originário da mobilização das grandes massas poulares.
Muitas podem ser as razões do erro, do nosso governo, nas relações com o castro, que por fim estimulam a indisciplina e favorecem o espírito de corpo que caracterizam o papel do militar brasileiro, desafeito aos seus deveres constitucionais e funcionalmente desaparelhado para a única função que justifica o alto custo da caserna: a defesa nacional. Mas é difícil entender a decisão política de legitimar o abominável art. 142 da Constituição, ao invocá-lo para uma vez mais levar as forças armadas – repetindo erros crassos – a atuarem no Rio de Janeiro como auxiliares da polícia fluminense no combate ao crime organizado, no contrapelo de sua destinação precípua, que é a defesa da soberania nacional. E o faz em momento o mais grave do cenário internacional, conturbado pelas disputas hegemônicas que acentuam a crise geopolítica internacional, com guerras localizadas, guerras de conquista e violações de soberania que podem estar anunciando um conflito generalizado, em face do qual as forcas armadas de hoje, peças do Estado brasileiro, não têm condições, sejam politicas e ideológicas (é notória a dependência do pensamento de nossos oficiais em relação ao Pentágono), sejam de treinamento, qualificação e domínio tecnológico de armas e munições
O fascismo cresce no mundo. No Brasil, avança contando com o apoio das instituições estatais, da omissão das esquerdas de um modo geral, o que se revela na renúncia à ação e ao combate ideológico, tendência que se vem consolidando desde os avanços eleitorais de 2002, que ainda hoje servem de defesa para os fracassos políticos de 2016 e 2018, que tanto contribuíram para o desastre eleitoral que foram as últimas eleições proporcionais, levando o atual governo pagar o preço que se conhece e o preço que se pode estimar.
O quadro conhecido de nosso continente -- vivemos as angustiantes dúvidas quanto ao pleito argentino -- indica uma quase reversão de expectativas, se considerarmos o mapa político contemporâneo face os dois primeiros governos Lula e o mandato de Dilma. Vale lembrar o desastre que foi Pedro Castillo no Peru, e o fiasco que vai se mostrando o governo do jovem e promissor Boric, um e outro exemplos fracassados de tentativa de composição pelo alto com a direita vencida nas urnas, o que parece ser, até aqui, nossa perigosa estratégia, mais que uma contingência. Em contraste, Petro vai se firmando na Colômbia com uma postura de enfrentamento, mesmo sem maioria no Congresso. A inclinação pela direita indica o curso presente do Uruguai, do Equador e da Bolívia, sugerindo dificuldades para o Mercosul, para o BRICS e para a política integracionista de Lula e Amorim, da maior relevância para nosso país.
É importantíssimo participar do processo eleitoral (até porque trata-se, igualmente, de um processo político que abre espaço à politização), mas seu objetivo não pode esgotar-se na pura e simples disputa do voto, pois seu objeto é enfrentar a batalha política e ideológica.
Assim deve ser entendida a memorável eleição de 2022, e assim se coloca para os socialistas a defesa do governo Lula: o contingente necessário que não encerra a luta toda, que deve ser a revolução social, o objetivo que não pode ser descartado.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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