sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Mídia na berlinda na America Latina (4)

“O terrorismo midiático é a primeira expressão e condição necessária do terrorismo militar e econômico que o Norte industrializado emprega para impor à humanidade a sua hegemonia imperial e o seu domínio neocolonial”. Manifesto do 1º Encontro Latino-Americano contra o Terrorismo Midiático (março de 2008).


“As mobilizações populares e a ascensão de governos progressistas realçam a oportunidade de uma América Latina pós-neoliberal [...], que permita maior controle social sobre a mídia”. Dênis de Moraes, autor do livro “As batalhas da mídia”.


A América Latina vive um processo inédito e intenso de mudanças políticas, que já se refletem no terreno econômico e social e também nos rumos da integração regional. O continente que foi saqueado pelas nações colonialistas, como tão bem retratou o escritor Eduardo Galeano no livro “As veias abertas da América Latina”, que sofreu com sangrentas ditaduras militares e que foi o principal laboratório das destrutivas políticas neoliberais, atualmente se levanta e tateia caminhos alternativos, que garantam mais democracia, soberania nacional e justiça social. A perspectiva do “socialismo do século 21” volta a se colocar no horizonte na região da heróica revolução cubana.

Nesta América Latina rebelde, a mídia hegemônica está na berlinda. Ela é criticada por seu papel manipulador, pela postura de criminalização dos movimentos sociais e pela ação destabilizadora contra governos democraticamente eleitos. Em todos os países surgem entidades que priorizam a batalha pela democratização dos meios de comunicação. Governantes progressistas, oriundos das lutas contra a regressão neoliberal, também adotam medidas para se contrapor ao terrorismo midiático. Mais ousados ou mais moderados, conforme a correlação de forças de cada país, eles tentam regulamentar o setor, incentivam redes públicas e polemizam com os barões da mídia.

Apoio aos golpes e às ditaduras

A revolta contra a mídia hegemônica é plenamente justificada. Com raras e honrosas exceções, o seu passado a condena! Afinal, ela sempre expressou o que há de mais antidemocrático, antipovo e antinação no sofrido continente latinoamericano. Sempre serviu às elites rascistas e golpistas e reproduziu servilmente os interesses das potências imperialistas, em especial os dos EUA. Num passado mais remoto, a imprensa burguesa, que ainda não havia erguido seus impérios midáticos, satanizou o jovem movimento camponês e operário da região e fez de tudo para sabotar governos burgueses nacional-desenvolvimentistas, como o de Lázaro Cárdenas (México), Jacobo Arbens (Guatemala), Juan Perón (Argentina), Velasco Alvarado (Peru) e Getúlio Vargas (Brasil).

Já no passado mais recente, estimulada pela propaganda estadunidense da “guerra fria”, a mídia hegemônica clamou por golpes militares para evitar o “perigo comunista” e o risco de contágio da revolução cubana. Muitas das atuais corporações midiáticas prosperaram durante as violentas ditaduras e têm as mãos sujas de sangue. Um dos casos mais execráveis foi o do Chile. Agustín Edwards, dono do jornal El Mercurio, foi um dos principais mentores do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. Relatórios desclassificados da CIA, a agência terrorista dos EUA, confirmam que o empresário recebeu US$ 1,5 milhão de subsídios para criar o clima favorável à conspiração militar comandada pelo general Augusto Pinochet [1].

Além da ajuda da CIA, o First National Bank anistiou as dívidas do caloteiro Agustín e inúmeras empresas envolvidas na preparação do golpe fizeram depósitos ilegais na sua conta na Suíça. “El Mercurio é importante. É um espinho cravado nas costas de Allende. Ajuda a manter alta a moral das forças opositoras”, explicou, às vésperas do golpe, Willian Jorden, assessor do secretário de Defesa Henry Kissinger. Um memorando da CIA de 1972 enalteceu o jornal, que “publica quase diariamente editoriais com críticas ao governo” e atua “como centro da agrupação da oposição”. Outro relatório afirmou que “a assistência dada a El Mercurio tinha como objetivo que o jornal independente pudesse sobreviver como porta-voz da democracia e contra a Unidade Popular”, a coalisão de esquerda que elegeu e dava sustentava o governo democrático de Salvador Allende.

A retribuição do sanguinário Pinochet foi generosa. Durante a ditadura, a corporação prosperou e hoje possuí quatro jornais nacionais, 21 diários regionais e a rede de rádios FM Digital. Um livro recém-lançado, “El diario de Agustín”, revela que o império cresceu acorbertando as violações de direitos humanos durante os 17 anos do cruel regime militar – que resultaram, segundo dados oficiais, em mais de 3 mil chilenos mortos e cerca de 35 mil torturados. El Mercurio noticiava os assassinatos como se fossem suicídios ou “acidentes de trânsito”, como na morte do diplomata chileno-espanhol Carmelo Soria, em julho de 1974. Quando não dava para ocultar, ele justificava os assassinatos como “conseqüência da guerra civil iniciada em 1973 pelos marxistas” [2].

A mesma postura golpista foi adotada por outros barões da mídia da América Latina [3]. O grupo El Clarín, que hoje compõe o clube dos 50 maiores impérios midiáticos do planeta, articulou a conspiração militar na Argentina. “A economia se encontra numa etapa vizinha ao colapso total. A violência subversiva e sua ação criminosa exigem ordenar medidas adequadas para exterminá-las... Abre-se agora uma nova etapa com renascidas esperanças”, afirmou o editorial do jonal El Clarín de 24 de março de 1976. A sua linha editorial “serviu para justificar os horrendos crimes da ditadura... Só quando os ‘subversivos’ foram virtualmente eliminados pelos militares e estes já não eram mais necessários, El Clarín se transformou num embandeirado da democracia” [4].

Porta-voz da devastação neoliberal

A exemplo da Argentina, quando as crises econômicas e políticas isolaram os regimes militares e a resistência popular avançou no continente, as maiores corporações da mídia se travestiram de democratas e passaram a pregar o receituário neoliberal. Elas substituíram a ditadura militar pela ditadura do mercado. Ajudaram a criar o consenso neoliberal em defesa do desmonte do Estado, da nação e do trabalho. Adoradores do “deus-mercado”, as maiores redes de rádio e televisão e os jornais tradicionais pregaram a privatização criminosa das estatais, o corte dos gastos sociais, a flexiblização dos direitos trabalhistas e a total libertinagem financeira. Os jornalistas críticos do neoliberalismo foram afastados das redações, que foram ocupadas pelos agentes do rentismo [5].

Através de técnicas requintadas de publicidade, a mídia fabricou “candidatos” e ajudou a eleger e reeleger vários presidentes neoliberais, adpetos do “Consenso de Washington”, como Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Alberto Fujimore (Peru) e Carlos Menem (Argentina), entre outros. Após a “década perdida”, que fragilizou a economia nos anos 1980, veio a “década maldita” do neoliberalismo, com as suas taxas declinantes de crescimento e a explosão do desemprego e da informalidade. As nações foram escancaradas para os capitais estrangeiros, os Estados foram privatizados, a miséria explodiu e a vida foi mercantilizada. As “relações carnais com os EUA”, pregadas por Menem, tornaram a região ainda mais servil aos desígnios do “império do mal”.

Mas o devastador tsunami neoliberal, que inicialmente seduziu parcelas das camadas médias e dos próprios trabalhadores, como aponta estudo do sociólogo Armando Boito Jr. [6], não durou muito tempo. Aos poucos, a luta contra os seus efeitos destrutivos e regressivos ganhou impulso, desafiando o “pensamento único” emburrecedor da mídia hegemônica. Através de várias formas de rebeldia, dos levantes populares que derrubaram 11 presidentes em curto espaço de tempo aos Fóruns Sociais Mundiais deflagrados no Brasil, a resistência cresceu e ganhou protagonismo. No geral, a crescente revolta contra o neoliberalismo desaguou na vitória das forças progressistas nas eleições presidenciais, que adquiriram centralidade na luta política no continente [7].

O ciclo inédito e impressionante de vitórias de candidatos progressistas na América Latina teve início com a eleição do militar rebelde Hugo Chávez, na Venezuela, em dezembro de 1998. Na seqüência, numa guinada à esquerda, chegam ao governo central um líder operário no Brasil, um peronista antineoliberal na Argentina, um ex-exilado político no Uruguai, um líder indígena na Bolívia, um economista heterodoxo no Equador, um ex-guerrilheiro na Nicarágua, uma mulher vítima da ditadura no Chile, um teólogo da libertação no Paraguai – no início de 2009, um jovem candidato da FMLN, a guerrilha que depôs suas armas, é eleito em El Salvador. De laboratório do neoliberalismo, a América Latina despontou como vanguarda mundial da luta por mudanças.

Com ritmos e visões diferenciadas, cada um destes novos governantes procura avançar nas novas “vias abertas na América Latina”, visando superar a destruição neoliberal e construir nações mais democráticas, soberanas e justas. Eles também apostam na integração regional como contraponto à desintegração imposta pelos EUA. Com todas as suas contradições, este novo ciclo tem sentido progressista (8). Para o sociólogo Emir Sader, “o continente onde o neoliberalismo nasceu – no Chile e na Bolívia –, ainda mais se estendeu e encontrou um território privilegiado, tornou-se, em pouco tempo, o espaço de maior resistência e construção de alternativas... São duas faces da mesma moeda: justamente por ter sido laboratório das experiências neoliberais, a América Latina viveu a ressaca dessas experiências, tornando-se o elo mais fraco da cadeia neoliberal” [9].

NOTAS

1- Mário Augusto Jakobskind. “Reações à democratização da informação”. Observatório da Imprensa, 07/11/06.

2- Daniela Estrada. “El Mercurio y la dictadura. Historia de una colusión". Rebelión, 26/05/09.

3- A postura da mídia brasileira no golpe e na ditadura militar é descrita no Capítulo IV.

4- Andrés Iari. “Chávez, Evo y Correa contra los medios de comunicación”. Rebelión, 12/05/09.

5- Pascual Serrano. “Los medios e la crisis mundial”. Exposição apresentada no Fórum Mundial de Mídia Livre em Belém do Pará, em janeiro de 2009.

6- Armando Boito Jr. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. Editora Xamã, SP, 1999.

7- Roberto Regalado. América Latina entre siglos. Dominación, crisis, lucha social e alternativas politicas de la izquierda. Editora Ocian Press, Cuba, 2006.

8- Altamiro Borges. “As vias abertas da América Latina”.

9- Emir Sader. A nova toupeira. Os caminhos da esquerda latino-americana. Boitempo Editorial, SP, 2009.

- Extraído do segundo capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço – livro@vermelho.org.br

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sinais de vulnerabilidade da mídia (3)

Apesar do enorme poder de manipular “corações e mentes”, a mídia vem sofrendo abalos na fase recente. Pesquisas apontam o aumento da vulnerabilidade das corporações midiáticas. “Durante os últimos quatro anos, a audiência dos telejornais das três principais cadeias norte-americanas teve queda de 60% a 38% do total de telespectadores. 72% dos temas tratados têm caráter local ou se referem à violência, drogas, agressões e delitos” [26]. Parcela crescente dos estadunidenses já passa mais tempo em frente à tela do computador do que assistindo, como receptor passivo, aos programas de baixa qualidade e à overdose de publicidade das emissoras de televisão.

Mais dramática é a situação da mídia impressa. Nos EUA, somente 19% da população entre 18 e 34 anos se declara leitora de jornais. Vários periódicos decretaram falência e alguns migraram para a internet. Um caso emblemático ocorreu no final de 2008. Um dos mais tradicionais jornais dos EUA, o centenário The Christian Science Monitor, anunciou que seria veiculado apenas pela internet. Sua circulação diária caiu de 220 mil exemplares, em 1970, para 52 mil em 2008, o que fez despencar a publicidade deste periódico editado pela igreja First Church of Christ. O jornal já havia recebido sete prêmios Pulitzer e exercia certa influência na formação da opinião pública.

“Pouca gente acredita que os jornais, na forma impressa de hoje, tenham chance de sobreviver. Eles estão perdendo anunciantes, leitores, valor de mercado e, em alguns casos, o próprio senso de missão... Nos últimos três anos, os jornais americanos perderam 42% do valor de mercado. Poucas companhias foram tão punidas em Wall Street quanto aquelas que ousaram investir no ramo jornalístico... O New York Times Company viu as suas ações caírem 54% desde 2004. A Washington Post Company só evitou o mesmo destino ao se apresentar como ‘empresa de educação e comunicação’; seu braço didático, a Kaplan, agora responde por pelo menos metade do faturamento total... A maioria dos executivos reagiu ao colapso de seu modelo de negócios com uma espiral de cortes orçamentários, sucursais fechadas, fusões, demissões e reduções de formato. De 1990 para cá, um quarto dos empregos no ramo jornalístico desapareceu”, aponta o jornalista Eric Alterman [27].

Principais fatores do declínio

Vários fatores explicam o declínio relativo da mídia hegemônica. O principal deles, segundo boa parte dos especialistas, é o fator tecnológico. A internet e o acelerado processo de convergência digital possibilitam novas opções de informação, cultura e entretenimento, mais democráticas e interativas. São uma brecha, mesmo que parcial e temporária, ao poder da ditadura midiática. As corporações, porém, já perceberam este vasto potencial, impõem legislações restritivas em vários países e integram a internet aos seus domínios. O ranking mundial revela que os sítios mais freqüentados em qualquer país já pertencem aos mesmos conglomerados. No futuro, prognostica Ignacio Ramonet, a internet poderá até servir para reforçar ainda mais o poder das corporações.

A mídia hegemônica também é vítima da própria crise capitalista que ajudou a criar. Apostou na orgia financeira e agora afunda com os títulos tóxicos. Além disso, ela sofre com a multiplicação de emissoras abertas e de jornais gratuitos. Por último, vale destacar a perda de credibilidade dos veículos tradicionais. Pesquisa da Universidade do Sagrado Coração revelou que menos de 20% dos estadunidenses acreditam no noticiário jornalístico – número que despencou 27% em cinco anos. “Menos de uma em cada cinco pessoas acredita no que lê na imprensa”, apontou o relatório “O estado da mídia”, de 2007. O descrédito cresceu devido às mentiras veiculadas após a invasão do Iraque e deu espaço para o crescimento de sítios e blogs progressistas nos EUA e na Europa.

Um caso exemplar é o da página eletrônica Huffington Post, fundada em maio de 2005 e que se projetou ao desmascarar os impérios midiáticos que aderiram à política de Bush. Já na campanha de Barack Obama, ela registrou visitas diárias de 11 milhões de pessoas. A sua equipe é reduzida e o noticiário é compartilhado por milhares de voluntários, entre eles, mais de 1.800 blogueiros. O fenômeno da blogosfera progressista já preocupa os barões da mídia. Numa palestra recente, o editor-executivo do New York Times, Bill Keller, atacou os que “mastigam e reciclam notícias”. Após afirmar que “a grande imprensa perdeu seu verniz de confiabilidade absoluta”, Arianna Huffington disparou: “Os blogueiros não mastigam notícias, eles cospem notícias”.

A ditadura da mídia, como se nota, não é inabalável. A sua perda de credibilidade tende a crescer com o acirramento da luta de classes no mundo. Como aponta Pascual Serrano, no texto citado, o declínio atual decorre, entre outros fatores, da “crise de identidade” (o público já não confia nos veículos, tendo provado várias vezes como eles mentem e ocultam os elementos fundamentais da realidade); “crise de objetividade” (o mito da neutralidade sucumbe e a confiança no jornalismo despenca com ele); “crise de autoridade” (a internet e as novas tecnologias revelam a capacidade das organizações sociais e dos jornalistas alternativos para enfrentar o poder das corporações midiáticas); e da “crise de informação” (a dinâmica mercantilista e a necessidade de aumentar a produtividade e a rentabilidade provocam a perda de qualidade da atividade jornalística).

NOTAS

26- Ryszard Kapuscinski. “Reflejan los medios la realidade del mundo?”. Le Monde Diplomatique, 24/02/2001.

27- Eric Alterman. “O futuro dos jornais”. Folha de S.Paulo, “Caderno Mais!”, 08/06/08.

- Extraído do primeiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado em julho passado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A máquina de propaganda das guerras (3)

A ligação umbilical entre as potências imperiais e as corporações midiáticas ajuda a explicar a cobertura amplamente favorável dada a todas as guerras de rapina. No caso das recentes invasões do Iraque e do Afeganistão, a manipulação atingiu seu ápice e confirmou uma antiga máxima do senador ianque Hiram Johnson: “A primeira vítima, quando começa a guerra, é a verdade”. Para o jornalista José Arbex Jr., as emissoras de TV ocupam papel destacado nesta farsa. “A televisão adquiriu enorme poder de transformar quase tudo em show, espetáculo, diversão... Em nossas casas, vemos tudo pela TV e temos a impressão de estar testemunhando ‘a’ verdade dos fatos, e não apenas ‘uma’ verdade, isto é, uma simples versão que alguém filmou, editou e veiculou” [15].

A Fox, do direitista Rupert Murdoch, foi a mais agressiva no apoio ao genocídio no Iraque e até chegou fazer campanha de boicote aos produtos franceses em repúdio ao governo deste país que criticou a “guerra”. Já a CNN abandonou o seu falso ecletismo. No primeiro dia da ocupação, ela introduziu a vinheta “começou a libertação” e criou um sistema de script approval (aprovação do original), forçando seus repórteres a enviarem as matérias a Atlanta antes de serem transmitidas ao mundo. Oficiais militares, muitos deles ligados às empresas contratadas pelo governo do EUA – como a firma de mercenários Blackwater – foram usados como “articulistas” pelas TVs [16].

Nas rádios, a retórica belicista foi descarada. A principal emissora comercial dos EUA, a Clear Channel Wordwide, convocou manifestações favoráveis à invasão e orientou suas 1.200 estações filiadas em 50 estados a não transmitir música de protesto e a atacar os ativistas da paz, tachados de “comunistas e antiamericanos”. Em Atlanta, um radialista esbravejou: “Estamos rodeados de loucos, de mulheres que não raspam as axilas e de lésbicas” [17]. Já na mídia impressa, caiu a máscara de muitos jornais e jornalistas “independentes”. Não foram apenas os veículos ligados aos neocons, como o Washington Times, da seita Moon, ou o New York Post, de Murdoch, que reforçaram a onda belicista. O Washington Post e o New York Times também verteram sangue.

Da mesma forma como já ocultara os efeitos das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a mídia silenciou sobre o genocídio de um milhão de iraquianos, num dos piores capítulos de sua história. Para o jornalista Argemiro Ferreira, “ela desistiu de qualquer resistência, ainda que tímida, à histeria belicista do governo Bush”. Antes mesmo da invasão, “a grande maioria da mídia, liderada pelos excessos patrioteiros do magnata Rupert Murdoch, já estava quase totalmente dedicada ao papel de veiculadora passiva da propaganda bélica... Nenhum dos grandes veículos achou que deveria cumprir o dever primário de checar as supostas provas levadas à ONU – fantasiosas e fraudadas. Foi, enfim, um capítulo à altura da nossa mídia tupiniquim ao tempo da ditadura” [18].

A promíscua relação com o poder

No auge da histeria estadunidense, a mídia chegou a justificar as piores atrocidades do governo – o que também lembra o Brasil. Num artigo intitulado “É hora de pensar a tortura”, o articulista Jonathan Alter, da revista semanal Newsweek, escreveu: “É um mundo novo e a sobrevivência pode muito bem requerer velhas técnicas que estavam fora de questão”. O jornal The Wall Street publicou o editorial “A segurança vem antes da liberdade”. Já na revista eletrônica Slate, Dahlia Lithwick escreveu que “torturar terroristas e os seus asseclas para obter informações é algo que funciona”. Na CNN, o comentarista Tucker Carlson afirmou que “a tortura é ruim. Mas algumas coisas são piores. E, em determinadas circunstancias, ela pode ser o menor dos dois males”.

As mentiras plantadas pelo presidente-terrorista George Bush – segundo recente estudo, um total de 935 [19] – foram difundidas no mundo como verdades absolutas pela mídia. Entre outras, a de que o Iraque teria armas de destruição em massa (ADM), de que Saddam Hussein seria aliado da Al-Qaeda e que teria planejado os atentados de 11 de setembro. Poucos veículos ou jornalistas se indignaram diante destes absurdos repetidos à exaustão. Robert Fisk, veterano correspondente de guerra, foi rotulado de “inocente útil de Saddam” pelo secretário britânico de Defesa, Geoff Honn, após mostrar que as “bombas inteligentes” atingiram um mercado em Bagdá, matando 62 civis.

A censura imperou nos EUA sem que nenhum veículo defendesse a “liberdade de imprensa”. A MSNBC cancelou o programa de Phil Donahue, acusando-o de entrevistar ‘pessoas que estão contra a guerra e o presidente Bush’. O jornalista Brent Flynn, do Lewisville Leader, foi proibido de redigir sua coluna. Já o repórter Kurt Kauglie, do Michigan’Hurón Daily Tribune, pediu demissão após seu editor vetar um artigo crítico. A página eletrônica Yellow Times foi retirada da internet após exibir imagens de prisioneiros de guerra e de vítimas civis iraquianas. O servidor que hospedava o sítio alegou que “nenhum canal de TV dos EUA permite a emissão dessas imagens”. O famoso correspondente de guerra Peter Arnett foi demitido da emissora NBC depois de conceder uma entrevista à televisão iraquiana, criticando a estratégia militar dos EUA [20].

A manipulação midiática, que iludiu milhões de pessoas no planeta, foi monitorada diretamente pelo Pentágono, como atesta o documento “Mapa do caminho sobre operações de informação”, assinado pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld. Ele deixa explícito que não haveria limites na guerra de propaganda e que seriam lançadas inúmeras “operações psicológicas” (psy-ops, em inglês). Entre outras medidas, o plano previa “a manipulação do pensamento do adversário” e “o ataque às redes de comunicação do inimigo”. “Devemos melhorar a nossa capacidade de ataque eletromagnético... As mensagens das psy-ops serão difundidas com freqüência pelos meios de comunicação para as maiores audiências, incluindo o público norte-americano” [21].

Antes mesmo da invasão, o New York Times informou que o Escritório de Influência Estratégica (OSI) do Pentágono desenvolvera “planos para fornecer informações, possivelmente até algumas falsas, para meios de comunicação estrangeiros no esforço para influenciar o sentimento público e os formuladores de políticas tanto em países aliados como inimigos”. Oficiais do 4º Esquadrão de Fort Bragg, especializados em operações psicológicas, trabalharam diretamente nas sedes da CNN e da AOL, adestrando inúmeros jornalistas. O coronel Christopher John, comandante do 4º Esquadrão, defendeu “a maior cooperação entre as Forças Armadas e os gigantes da mídia”. A mídia participou, “de maneira orgânica”, na campanha de informação e contra-informação [22].

Cúmplice da crise capitalista mundial

Mas não é somente nas guerras que a mídia cumpre papel nefasto. Ela também foi culpada pela ampla difusão dos valores destrutivos do neoliberalismo, que devastou o mundo a partir dos anos oitenta, jogando milhões de seres humanos no desemprego e na barbárie, e que acelerou a grave crise atual do capitalismo. Os aparatos de comunicação foram os responsáveis pela fabricação de consensos sobre a pretensa superioridade do mercado, pregando a desregulamentação financeira, as privatizações, a redução do papel do Estado nas áreas sociais e como indutor da economia, a “reengenharia” das empresas, com seus programas de demissões e precarizaçao do trabalho, etc.

As vozes críticas à ofensiva neoliberal simplesmente foram excluídas ou neutralizadas nos meios de comunicação. Conforme aponta o jornalista Pascual Serrano, com base em estudos realizados na Europa, a mídia “silenciou os especialistas críticos. Cada cidadão pôde comprovar como, em seu país, os analistas que alertaram sobre o risco das políticas de especulação e descontrole financeiro foram ignorados nos grandes meios... Muitos especialistas advertiram, mas foram impedidos de acessar a opinião pública. Também as organizações sociais que criticaram a deriva financeira foram ignoradas pelos meios de comunicação” [23].

Economistas heterodoxos, keynesianos ou marxistas, foram banidos da televisão, rádios, revistas e jornais. Agentes do “mercado”, especuladores convictos, passaram a dar a tônica no noticiário econômico, reforçando o “pensamento único neoliberal”. As corporações midiáticas, várias delas associadas ao capital financeiro, aproveitaram-se do boom especulativo para iludir os incautos e auferir altos rendimentos. As vozes críticas ao “deus-mercado” foram censuradas, inclusive no cinema. O premiado filme “Tiros em Columbine”, de Michael Moore, que denunciou o mercado de armas nos EUA, foi sabotado pela cadeia Blockbuster, pertencente ao conglomerado Viacom, que não comercializou o vídeo e o DVD em suas 8.500 lojas espalhadas em 29 países.

Para difundir seus dogmas, a mídia inclusive adulterou o sentido de certas palavras. Como afirma o sociólogo Atílio Boron, “em vastos territórios do globo a palavra ‘reforma’ foi exitosamente usada para designar o que qualquer análise minimamente rigorosa não vacilaria em qualificar de ‘contra-reforma’. As propaladas ‘reformas’ se materializaram em políticas tão pouco reformistas como o do desmantelamento da seguridade social, a redução dos investimentos sociais, o corte de verbas para saúde, educação e habitação, a legalização do controle oligopólico da economia” [24].

Agora, diante da crise mundial detonada pelo neoliberalismo, ela esconde a sua culpa e ainda faz terrorismo midiático para justificar novos ataques aos direitos dos trabalhadores, o que confirma a tese da escritora Naomi Klein de que o capitalismo encara os “acontecimentos catastróficos como estimulantes oportunidades de mercado”. Foi o próprio Milton Friedman, mentor das idéias neoliberais, que argumentou que as crises seriam propícias ao “tratamento de choque econômico. Desde então, sempre que os governos decidem impor programas radicais de livre mercado, o tratamento de choque imediato, ou a ‘terapia de choque’, tem sido o seu método preferido” [25].

NOTAS

15- José Arbex Jr. O jornalismo canalha. Editora Casa Amarela, RJ, 2003.

16- Jeremy Scahill. Blackwater. A ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2008.

17- David Brooks e Jim Cason. “Medios eletctrónicos estadunidenses, outra columna bélica”. Jornal La Jornada, abril de 2003.

18- Argemiro Ferreira. “Outra vergonha: a mídia sobre Powell”. Maiores detalhes sobre os crimes dos EUA estão no livro O império contra-ataca. Editora Paz e Terra, São Paulo, 2004.

19- Em janeiro de 2008, a ONG “Integridade Pública” divulgou levantamento com 935 mentiras alardeadas por George Bush e outros sete altos funcionários de seu governo.

20- “Guerra ao Iraque: manipulação e censura de informações”. Sítio Oficina Informa, 07/04/03.

21- “Les plans du Pentagone pour contrôler l’information”. Sítio Voltairenet, 02/02/06.

22- Roberto Della Santa Barros. “Informação e contra-informação”. Sítio do PSTU, 09/02/06.

23- Pascual Serrano. “Los medios e la crisis mundial”. Exposição apresentada no Fórum Mundial de Mídia Livre em Belém do Pará, em janeiro de 2009.

24- Atílio Boron. Império e imperialismo. Uma leitura crítica de Michael Hardt e Antonio Negri. Clacso, Buenos Aires, 2002.

25- Naomi Klein. A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.


- Extraído do primeiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado em julho passado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Mídia e lógica destrutiva do capital (2)

Mas, apesar da violenta concorrência, os impérios midiáticos se unem na defesa dos interesses de classe da burguesia. Como empresas capitalistas, elas defendem o destrutivo padrão de produção e consumo do capitalismo. Através das sofisticadas técnicas publicitárias, que seduzem e forjam comportamentos, elas estimulam o consumismo e procuram fixar a supremacia do “deus-mercado”, visando aumentar os lucros e superar os concorrentes. As estratégias de marketing, inclusive, já agregam valor à cadeia produtiva. “O público, além de introjetar valores dessa indústria, assiste à contaminação da cultura do espírito e da cultura popular pela anódina cultura de massas” [8].

Como alerta Frank Mazoyer, as modernas técnicas publicitárias estimulam o consumo doentio e são culpadas por várias anomalias e tragédias humanas. “Trata-se de um assédio ao pensamento para introduzir uma lista ‘ideal’ de reflexos condicionados. O prazer, daqui para frente, terá de passar pelo consumo”. Os produtos são embalados pela mídia visando “satisfazer o narcisismo do consumidor”, trazer-lhe segurança emocional, dar-lhe um sentimento de poder, imortalidade, autenticidade e de criatividade. Tudo é feito para atrair o potencial consumidor, principalmente para atingir o público infanto-juvenil. “Fala-se mesmo em psico-sedução infantil” [9].

“Graças a isso, crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite; o tempo de lazer vai se tornando o tempo de consumo obrigatório. Tempo livre; tempo prisioneiro: casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a TV está com a palavra... As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. A cultura do consumo, a cultura do efêmero, condena tudo à descartabilidade midiática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada a serviço da necessidade de vender... As mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera”, alerta o escritor Eduardo Galeano [10].

A mídia tem papel na própria mobilidade do capital. A agência Reuters, com seus escritórios em 94 países, envia informações atualizadas oito mil vez por segundo para 511 mil usuários. O seu acervo digital inclui três bilhões de dados sobre mais de 40 mil empresas, 244 bolsas de valores e 960 mil ações e títulos. Na fase do tsunami neoliberal, a defesa do “deus-mercado” ficou mais depravada e a mídia foi fundamental para legitimar os dogmas do desmonte do Estado, da nação e do trabalho, transformando-os no discurso hegemônico. Não há qualquer preocupação com o conteúdo da mensagem, com sua qualidade. A única obsessão é com a lucratividade.

Por isso, a mídia dá absoluta prioridade à informação-espetáculo, à informação-entretenimento – à “informação-lixo”, segundo Ramonet. Ela não está preocupada com a cultura ou a informação para os cidadãos, mas em vender cidadãos aos anunciantes. Ou, nas palavras de Osvaldo León, o que prevalece é uma mídia “concentrada e regida por critérios exclusivamente comerciais. Os critérios são da rentabilidade acima do interesse público e do paradigma do consumidor acima do cidadão. Neste contexto, o risco de que a ‘ditadura do mercado’ se consolide a partir deste enorme poder, para ganhar ‘corações e mentes’ das pessoas, não é uma mera fantasia” [11].

Instrumento da expansão imperialista

Além disso, as corporações midiáticas representam os interesses das suas burguesias de origem. Apesar da retórica publicitária sobre o “mundo sem fronteiras”, elas lutam pela expansão de seus impérios e, como efeito, de seus negócios. Relatório recente de uma Comissão Especial da ONU revelou que 85% das notícias que circulam pelo planeta são geradas nos EUA [12]. A CNN, por exemplo, transmite por satélites e cabos, a partir da sua matriz em Atlanta, notícias 24 horas por dia para 240 milhões de residências em 200 países e mais 86 milhões de lares nos EUA, e nunca escondeu que sua orientação editorial serve aos interesses estratégicos do “império do mal”.

As potências capitalistas têm plena noção do enorme poder da mídia. Os EUA aplicam no setor de 3,5% a 5,2% do seu Produto Interno Bruto (PIB). Como confessou David Rothkopf, diretor-geral da Kissinger Associates, “o objetivo central da política externa na era da informação deve ser o de ganhar a batalha dos fluxos de informação mundial, dominando suas ondas, da mesma forma como a Grã-Bretanha reinava antigamente sobre os mares”. Várias instâncias do império, como o Departamento de Estado, Departamento de Defesa, Fundo Nacional para a Democracia (NED), Agência Internacional para o Desenvolvimento (Usaid) e o Conselho de Radiodifusão (BBG), bancam programas de financiamento para jornalistas e veículos em mais de 70 nações.

“Estes programas mantêm centenas de ONGs, jornalistas, veículos e faculdades de jornalismo. O tamanho do aporte se estende a bilhões de dólares... Em dezembro de 2007, o Centro para Ajuda Internacional dos Meios (Cima), repartição do Departamento de Estado financiada pelo NED, informou que em 2006 a Usaid distribuiu US$ 53 milhões em atividades de desenvolvimento da mídia estrangeira... O governo dos EUA é o maior provedor de fundos para estes veículos no mundo inteiro, havendo destinado mais de US$ 82 milhões em 2006, sem incluir o dinheiro do Pentágono, da CIA e das embaixadas dos EUA. Para complicar o quadro, ONGs estrangeiras e jornalistas recebem fundos por outras fontes de financiamento do governo dos EUA” [13].

No caso do Departamento de Estado, ele financia a mídia estrangeira através de várias oficinas, incluindo a de Assuntos Educacionais e Culturais (BECA), de Inteligência e Investigação (INR), de Direitos Humanos e Trabalho (DRL) e de Diplomacia Pública e Assuntos Públicos (OPDPA). Em 2006, o DRL recebeu quase US$ 12 milhões para o “desenvolvimento do jornalismo”. Em 1999, o Conselho de Radiodifusão (BBG) se converteu numa agência federal independente. Até 2006, ele recebeu US$ 650 milhões em subsídios carimbados do orçamento federal.

Jornalistas ou mercenários da CIA?

Além do programa Voz da América, o BBG opera várias outras estações de rádio e televisão. A Alhurra, com sede na Virginia, “é uma rede comercial livre de televisão via satélite em língua árabe para o Oriente Médio”, segundo o seu sítio. Ela já foi descrita pelo Washington Post como “o maior esforço do governo dos EUA para sacudir a opinião estrangeira desde a criação da Voz da América em 1942”. O BBG banca ainda a Rádio Sawa, dedicada à juventude árabe; a Rádio Farda, transmitida ilegalmente no Irã; e a Rádio Ásia Livre, com programação para toda a Ásia. O BBG ficou famoso por financiar a Rádio e TV Martí, com custos de US$ 39 milhões em 2008, segundo a Justificativa do Orçamento para as Operações Estrangeiras do Congresso dos EUA.

Já a Usaid banca o programa Investigação Internacional e Sustentação de Intercâmbios (Irex) e a rede Internews Network. Segundo seu sítio, o Irex é um organismo mundial que “trabalha com sócios locais para melhorar o profissionalismo e a sustentação econômica de jornais, rádios, estações de TV e redes da internet”. Seu balanço revela que ele promoveu em 2006 cursos “para mais de 100 jornalistas” e que seus 400 funcionários dão consultas e despacham programas para mais de 50 países. Já a rede Internews, criada em 1982, concentra suas atividades em países do ex-bloco soviético e já foi acusada de desestabilizar governos locais. Em maio de 2003, Andrew Natsions, ex-chefão da Usaid, descreveu a Internews como “um braço do governo dos EUA”.

Neste sentido, não surpreende que várias corporações midiáticas mantenham históricos vínculos com a CIA, a central de espionagem e terrorismo dos EUA. Em meados dos anos 1970, no rastro da investigação do escândalo de Watergate, duas comissões parlamentares, encabeçadas pelo senador Frank Church e pelo deputado Otis Pike, revelaram que ela financiava jornais, revistas, rádios e emissoras de TV, além de corromper jornalistas. Vários destes veículos, como o chileno El Mercurio, tiveram participação ativa em golpes sangrentos. Em junho de 2007, a própria CIA foi obrigada a divulgar documentos até então classificados de ultra-secretos e apelidados de “jóias da família”. O arquivo, com 11 mil páginas, revelou algumas destas relações promíscuas.

Muitas destas ações são detalhadas no livro recém-lançado “Um legado de cinzas”, do jornalista Tim Weiner. Desde a sua criação, em 1947, a CIA sempre priorizou a mídia, “cultivando os mais poderosos editores e homens de TVs e rádios e cortejando colunistas de jornais”. Allen Dulles, o mentor da agência, “mantinha contato estreito com os homens que dirigiam o New York Times, o Washington Post e as principais revistas semanais da nação. Podia pegar o telefone e editar um furo de reportagem, assegurar-se de que um correspondente estrangeiro irritante fosse afastado, ou contratar serviços de homens como o chefe do escritório da Time em Berlim e da Newsweek em Tóquio... Allen Dulles construiu uma máquina de relações públicas e propaganda que chegou a incluir mais de cinqüenta organizações de notícias e uma dúzia de editoras” [14].

NOTAS

8- Alcione Araújo. “Esquizofrenia na educação e cultura”. Folha de S.Paulo, 04/08/2006.

9- Frank Mazoyer. “A irresistível perversão da compra”. Le Monde Diplomatique, dezembro de 2000.

10- Eduardo Galeano. “O império do consumo”. Agência Carta Maior, 17/01/2007.

11- Osvaldo León. “Democratização das comunicações e da mídia”. Alainet, janeiro de 2002.

12- Pedro de Oliveira, “A propaganda como fenômeno sociológico. Portal Vermelho, fevereiro de 2003.

13- Jeremy Bigwood. “Periodismo en EEUU: financiar prensa para comprar influencia”. Portal Aporrea, junho de 2008.

14- Tim Weiner. Legado de cinzas. Uma história da CIA. Editora Record, RJ, 2008.


• Extraído do primeiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado em julho passado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

“Ditadura da mídia” no Brasil e no mundo

Estarei em férias até final de janeiro. Neste período, para manter atualizada esta “trincheira de luta”, reproduzirei os capítulos do livro “A ditadura da mídia”. Publicado em julho passado pela Associação Vermelho e pela Editora Anita Garibaldi, o livro alcançou 10 mil exemplares de tiragem e obteve comentários e resenhas dos professores Venício A. de Lima e Laurindo Lalo Leal Filho, dos jornalistas Renato Rovai (Revista Fórum), Flávio Aguiar (Agência Carta Maior) e Maurício Dias (revista CartaCapital) e do ex-ministro José Dirceu, entre outros.


Poder mundial a serviço do capital e das guerras


“Não se preocupem. Não queremos controlar o mundo. Só queremos um pedaço dele”.
Rupert Murdoch, dono do império midiático News Corporation, presente em 133 países.


“A CIA tem o direito legítimo de se infiltrar na imprensa estrangeira. Ela tem a missão de influir, através dos meios de comunicação, no desenlace dos fatos políticos em outros países”. Willian Colby, ex-diretor geral da agência de inteligência dos EUA.


Os “donos da mídia” detêm hoje um poder descomunal, sem precedentes na história. Passou-se o tempo das ilusões sobre este setor, que no passado chegou a ser batizado de “quarto poder” pelo papel desempenhado na fiscalização dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Atualmente, os impérios midiáticos, que unem informação, entretenimento e cultura, e concentram inúmeros veículos – jornais, revistas, emissoras de televisão, rádios, internet, etc. –, colocam-se acima de leis e constituições, atacam os movimentos sociais e os governos progressistas e tentam sabotar a democracia. Na prática, desempenham o papel de uma verdadeira ditadura midiática, sendo um entrave a qualquer projeto de emancipação da humanidade, de superação da barbárie capitalista.

A mídia hegemônica – outrora chamada de imprensa burguesa na justa crítica dos marxistas [1] – sempre foi um obstáculo à luta dos trabalhadores. Mas, na fase mais recente, com o aumento da concentração no setor, as mutações tecnológicas e a desregulamentação da comunicação imposta pelo neoliberalismo, ela reforçou o seu papel de “partido do capital”, conforme a clássica síntese de Antonio Gramsci. Para o diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, “nos últimos quinze anos, à medida que se acelerava a globalização neoliberal, esse ‘quarto poder’ se viu esvaziado de sentido, perdendo, pouco a pouco, sua função fundamental de contrapoder [2]”.

Como afirma o professor Dênis de Moraes, a mídia tem hoje um duplo papel. Como instrumento ideológico, que nada tem de neutra ou imparcial, ela é a principal apologista do “deus-mercado”. Como poderosa empresa capitalista, ela busca apenas elevar os lucros. “As corporações da mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da globalização, e como agentes econômicos proeminentes nos mercados mundiais, vendendo os próprios produtos e intensificando a visibilidade dos seus anunciantes. Evidenciar esse duplo papel parece-me decisivo para entender a sua forte incidência na atualidade” [3].

A brutal concentração no setor

O processo de concentração na mídia, intrínseco à lógica monopolista do capital, atinge hoje seu ápice. Segundo o professor Robert McChesney, “o mercado global é dominado por uma primeira camada de cerca de dez imensos conglomerados... Eles têm ações em diversos setores da mídia e operam em todos os lugares do mundo. Existe uma segunda camada onde estão cerca de quarenta empresas que giram em torno deste sistema global. A maioria provém da Europa Ocidental ou da América do Norte, mas algumas são da Ásia e América Latina”. Elas estão entre as 300 maiores empresas não-financeiras do mundo e tiveram um crescimento recorde na década passada [4].

Dênis de Moraes, no texto citado, é mais direto: “A mídia global está nas mãos de duas dezenas de conglomerados, com receitas entre US$ 8 bilhões e US$ 40 bilhões. Eles veiculam dois terços das informações e dos conteúdos culturais disponíveis no planeta. São proprietários de estúdios, produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes, gravadoras de discos, editoras, parques de diversões, TVs abertas e pagas, emissoras de rádio, revistas, jornais, serviços online, portais e provedores de internet... AOL-Time Warner, Viacom, Disney, News, Bertelsmann, NBC-Universal, Comcast e Sony, as oito principais no ranking da mídia e do entretenimento, têm idênticas pretensões de domínio: estar em toda parte, a qualquer preço, para exercer hegemonia”.

Nos EUA, principal potência imperialista do capitalismo contemporâneo, sempre predominou o monopólio privado neste setor. Até os anos 1980, cerca de 70% da audiência da televisão era dominada por três redes nacionais – NBC, CBS e ABC; já as telecomunicações eram controladas pela AT&T. Como afirma o jornalista Carlos Lopes, esta nação inaugurou o processo de fusão da mídia com os conglomerados financeiros e indústrias. “O secretário do interior de Roosevelt, Harold Ickes – por sinal, um republicano – acrescentou, em 1934, um dado significativo: 82% dos jornais dos EUA eram monopólios, com um ínfimo número de proprietários. Ele poderia ter acrescentado que as ligações desse punhado de monopolistas da imprensa (Hearst, Luce e assemelhados) com seus colegas de bancos e grandes empresas (Morgan, Rockfeller, Dupont, etc.) eram mais do que estreitas. Na verdade, elas eram a mesma coisa” [5].

A partir de 2002, com a extinção das regras contrárias à propriedade cruzada e à cartelização do setor, esse processo monopolista foi agravado e a situação atual da mídia nos EUA enterra de vez o mito da “pátria da democracia”. A AOL abocanhou a Netscape, a revista Time, a produtora Warner e a rede CNN. A GE, após engolir a NBC, garfou a Universal, dona da maior gravadora de disco e do segundo maior estúdio de cinema do mundo. A Microsoft, de Bill Gates, impera no setor de software. A News Corporation, de Rupert Murdoch, devorou inúmeros jornais (The Times, The New York Post, The Wall Street Journal), a emissora Fox, além de uma gigante produtora de seriados e filmes, a Twenty Century Fox. Somente em 2003, ocorreram mais de 460 fusões e aquisições de empresas da mídia nos EUA, movimentando cerca de US$ 36 bilhões.

“Nas mãos dos mercadores de canhões”

O mesmo fenômeno monopolista vitimou a Europa, sabotando sua rede pública e outros avanços democráticos conquistados com derrota do nazi-fascismo. Na Itália, a mídia hoje é dominada por dois conglomerados. O fascista Silvio Berlusconi controla as três principais redes privadas de TV e, como primeiro-ministro, manipula os três canais públicos da RAI. Já a corporação da família Agnelli, dona da montadora Fiat, domina o maior grupo editorial do país, Rizzoli-Corriere della Sera (RCS), que publica uma centena de jornais e revistas. Na Espanha, o grupo Prisa comanda o jornal El País, uma poderosa cadeia de rádios (SER), uma emissora de TV e a principal rede de editoras do país. No Reino Unido, a quebra do monopólio público da BBC permitiu a formação de um consórcio de quatro canais privados, a ITV.

O caso mais assustador é o da França, onde os donos da mídia estão ligados à indústria bélica. O grupo Dassault, do direitista Serge Dassault, dirige o jornal Le Fígaro, o semanário L’Express e outros 14 títulos; já o grupo Lagardère domina a maior editora, o setor de revistas e a distribuição de jornais. “Esses dois grupos apresentam em comum a inquietante particularidade de se terem constituído em torno de uma empresa-mãe cuja principal atividade é militar (aviões de combate, helicópteros, mísseis e satélites). Realiza-se, portanto, a velha e temida profecia: alguns dos maiores veículos de comunicação estão, atualmente, nas mãos de mercadores de canhões” [6].

Na disputa pelo mercado, estas corporações se digladiam e têm as suas contradições. O magnata Rupert Murdoch avança na região asiática, produzindo programas de televisão para 240 milhões de pessoas. Temendo o avanço da produção européia, a Disney se associou à alemã Bertelsmann. Já o grupo Prisa cobiça a América Latina. Segundo seu executivo, Juan Cebrián, a mesma língua é “um instrumento fantástico na hora de atingir o mercado de 400 milhões de pessoas”. A guerra entre as empresas de radiodifusão e as operadoras de telecomunicações, decorrente do acelerado processo de convergência digital, torna esta disputa de mercado ainda mais encarniçada.

Há uma forte tendência para a fusão entre comunicações, telecomunicações e entretenimento. A Telefônica da Espanha já investe na mídia e na internet, a Sony produz música online e a Disney atua na telefonia celular em parceria com a operadora japonesa NTT. “Se pensarmos em música digital, televisão interativa, serviço de banda larga e redes domiciliares, veremos que estamos no centro de tudo”, gaba-se Gerald Levin, executivo da AOL-Time Warner. Jean-Marie Messier, da Vivendi-Universal, defende que “é essencial agregar os conteúdos baseados em alta tecnologia, sobretudo os da internet, aos nossos serviços e produtos. A combinação de conteúdos, de meios de difusão e de produtos afins nos dá uma vantagem considerável perante os concorrentes” [7].

NOTAS

1- Ver o artigo “Marx, Lênin, Gramsci e a imprensa” na página ??? deste livro.

2- Ignácio Ramonet. “O quinto poder”. Caminhos para uma comunicação democrática. Le Monde Diplomatique, São Paulo, 2007.

3- Dênis de Moraes. “A lógica da mídia no sistema de poder mundial”. Revista de Economia Politica de las Tecnologias de la Información y Comunicación. Maio/agosto de 2004.

4- Robert W. McChesney. “Mídia global, neoliberalismo e imperialismo”. Por uma outra comunicação. Dênis de Moraes (org.). Editora Record, Rio de Janeiro, 2005.

5- Carlos Lopes. “O caso Hiss e o macartismo: o golpismo fascista nos EUA”. Jornal Hora do Povo, 15/03/07.

6- Ignacio Ramonet. “Os novos imperadores da mídia”. Caminhos para uma comunicação democrática.

7- Dênis de Moraes. “O capital da mídia na lógica da globalização”. Por uma outra comunicação.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Direitos humanos não aparecem na TV

Na sua virulenta cruzada contra o Programa Nacional de Direitos Humanos, a mídia hegemônica utiliza novamente os batidos padrões de manipulação para salientar e omitir o que lhe interessa. Notórios direitistas, vinculados a torturadores, latifundiários e outras escórias da sociedade, são exibidos como “especialistas” em direitos humanos. Muitos não têm qualquer representatividade, mas ganham os holofotes nos telejornais, rádios e jornalões. Já os representantes dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, vítimas da opressão, não são aparecem nas telinhas da TV.

Reproduzo abaixo três manifestações de apoio ao PNDH que simplesmente foram ignoradas pela mídia venal. A primeira é assinada pelas entidades populares mais expressivas do país, sediadas em São Paulo, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Já a segunda é subscrita pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), um dos principais alvos da crueldade da ditadura militar. A última aborda a relação entre meios de comunicação e os direitos humanos e é firmada pelo respeitado Coletivo Intervozes.



“Em defesa da democracia e da verdade”

As entidades e militantes dos direitos humanos e da democracia de São Paulo juntam-se ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), rede que reúne cerca de 400 organizações de direitos humanos de todo o Brasil, para manifestar publicamente seu repúdio às muitas inverdades e posições contrárias ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), e seu apoio integral a este programa lançado pelo governo federal no dia 21 de dezembro de 2009.

Como o MNDH, entendemos que o PNDH 3, aprovado durante a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos (2008), é um importante passo no sentido de o Estado brasileiro assumir a bandeira dos direitos humanos em sua universalidade, interdependência e indivisibilidade como política pública; expressa avanços na efetivação dos compromissos constitucionais e internacionais com direitos humanos; e resultou de amplo debate na sociedade e no Governo.

Por isto, nenhuma instância do governo federal pode alegar ter conhecido esse programa somente depois do ato do seu lançamento público no dia 21 de dezembro e, menos ainda, afirmar que o assinou sem haver lido, sob pena de mentir no primeiro caso e, no segundo, de acrescentar à mentira um atestado de irresponsabilidade.

As reações contra o PNDH 3 estão cheias de conhecidas motivações conservadoras, além de outras que, pela sua própria natureza, são inconfessáveis em público pelos seus defensores. Estas resistências, claramente explicitadas ou não ao PNDH 3, provam que vários setores da sociedade brasileira ainda se recusam a tomar os direitos humanos como compromissos efetivos tanto do Estado, quanto da sociedade e de cada pessoa.

É falso o antagonismo que se tenta propor ao dizer que o programa atenta contra direitos fundamentais, visto que o que propõe tem guarida constitucional, além de assentar seus alicerces no que é básico para uma democracia, e que quer a vida como um valor social e político para todas as pessoas, até porque, a dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais de nossa Constituição e a promoção de uma sociedade livre, justa e solidária é o objetivo de nossa Carta Política.

Há setores que estranham que o programa seja tão abrangente, trate de temas tão diversos. Ignoram que, desde há muito, pelo menos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, direitos humanos são muito mais do que direitos civis e políticos. Vários tratados, pactos e convenções internacionais articulam o que é hoje conhecido como o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que protege direitos de várias dimensões: civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, de solidariedade, dos povos, entre outras.

Desconhecem também que o Brasil, por ter ratificado a maior parte destes instrumentos, é obrigado a cumpri-los, inclusive por força constitucional, e que está sob avaliação dos organismos internacionais da ONU e da OEA que, por reiteradas vezes, através de seus órgãos especializados, emitem recomendações para o Estado brasileiro – entre as quais, as mais recentes são de maio de 2009 e foram emitidas pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.

Aliás, não é novidade esta ampliação, visto que o II Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 2, de 2002) já previa inclusive vários dos temas que agora são reeditados, e a primeira versão do PNDH (1996) fora criticada e revisada exatamente por não contemplar a amplitude e complexidade que o tema dos direitos humanos exige. Por isso, além de conhecimento, um pouco de memória histórica é necessária a quem pretende informar de forma consistente a sociedade.

Em várias das manifestações e inclusive das abordagens publicadas, há claro desconhecimento (além dos que apenas fingem desconhecer) do que significa falar de direitos humanos. Talvez seja por isso que, entre as recomendações dos organismos internacionais, está a necessidade de o Brasil investir em programas de educação em direitos humanos, para que o conhecimento sobre eles seja ampliado pelos vários agentes sociais. Um dos temas que é abordado no PNDH 3, e que poderia merecer mais atenção dos críticos e demais cidadãos.

O PNDH 3 resulta de amplo debate na sociedade brasileira e no governo. Fatos atestam isso! Durante o ano de 2008, foram realizadas 27 conferências estaduais que constituíram amplo processo coletivo e democrático, coroado pela realização da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, em dezembro daquele ano. Durante 2009, um grupo de trabalho coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) procurou traduzir as propostas aprovadas pela Conferência no texto do PNDH 3. O MNDH e suas entidades filiadas, além de outras centenas de organizações, participaram ativamente de todo o processo.

Há outros seis meses, desde julho do ano passado, o texto preliminar está disponível na internet para consulta e opinião. Internamente no governo, o fato de ter sido assinado pela maioria dos Ministérios – inclusive o Ministério da Agricultura – é expressão inequívoca da amplitude do debate e da participação coletiva que presidiu sua construção. É claro que, salvas as consultas, o texto publicado expressa a posição que foi pactuada pelo governo. Nem tudo o que está no PNDH 3 é o que as exigências mais avançadas da agenda popular de luta por direitos humanos esperam. Contém, sim, propostas polêmicas e, em alguns casos, não bem formuladas.

Todavia, considerando que é um documento programático, ou seja, que expressa a vontade de realizar ações em várias dimensões, tem força de orientação da atuação nos limites constitucionais e da lei, mesmo quando propõe a necessidade de revisão ou de alterações de algumas legislações. A título de esclarecimento, é prerrogativa da sociedade e do poder público propor ações e modificações, tanto de ordem programática quanto legal. Por isso, não deveria ser estranho que contenha propostas de modificação de algumas legislações. Assim que, alegar desconhecimento do texto ou mesmo que não foi discutido, é uma postura que ignora ou finge ignorar o processo realizado. É diferente dizer que se tem divergências em relação a um ou outro ponto do texto, de se dizer que o texto não foi discutido, ou que não esteve disponível para conhecimento público.

Juntamente ao MNDH, ainda que explicitando alguns outros detalhes que envolvem a integralidade do PNDH 3, nós, organizações, movimentos e militantes de São Paulo, entendemos que as reações veiculadas pela grande mídia comercial, com origem, em sua maioria, nos mesmos setores conservadores de sempre, devem ser tomadas como expressão de que o programa tocou em temas fundamentais e substantivos, que fazem com que caia a máscara anti-democrática destes setores.

Estas posições põem em evidência para toda a sociedade as posturas refratárias aos direitos humanos, ainda lamentavelmente tão disseminadas, e que se manifestam no patrimonialismo – que quer o Estado exclusivamente a serviço de interesses dos setores privados; no apego à propriedade privada – sem que seja cumprida a exigência constitucional de que ela cumpra sua função social; no revanchismo de setores civis e militares – que insistem em ocultar a verdade sobre o período da ditadura militar e em inviabilizar a memória como bem público e direito individual e coletivo; na permanência da tortura – mesmo que condenada pela lei; na impunidade – que livra “colarinhos brancos” e condena “ladrões de margarina”; no patriarcalismo – que violenta crianças e adolescentes, e serve de alicerce para o machismo – que mantém a violência contra a mulher e sua submissão a uma ordem que lhes subtrai o direito de decisão sobre seu próprio corpo (como o direito ao aborto), lhes impõe salários sempre menores que os dos homens, ou a situações de violência em sua própria casa; no racismo – que discrimina negros, indígenas, ciganos e outros grupos sociais; nas discriminações contra outras orientações sexuais que não sejam apenas a heterossexualidade (considerada o único padrão de “normalidade” em termos sexuais) – estigmatizando a homossexualidade (masculina ou feminina), a bissexualidade, os travestis ou transexuais, e todas as demais manifestações de homoafetividade – o que impede o reconhecimento dos casamentos, ligações e constituição de famílias fora das “normas” (atualizadas ou não) do velho patriarcado supostamente sempre heterossexual, monogâmico e monândrico; na falta de abertura para a liberdade e diversidade religiosa – que impede o cumprimento do preceito constitucional da laicidade do Estado; no elitismo – que se traduz na persistência da desigualdade em nosso País como uma das piores do mundo e, enfim, na criminalização da juventude e da pobreza, e na desmoralização e criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos.

Como o MNDH, repudiamos também a tentativa de partidarização e eleitoralização do PNDH 3. O programa pretende ser uma política pública (e pelo público foi gerado) de Estado, e não de candidato; não pertence a um partido, mas à sociedade brasileira e, portanto, não cabe torná-lo instrumento de posicionamentos maniqueístas. Não faz qualquer sentido pretender que o PNDH 3 tenha pretensões eleitorais ou mesmo que pretenda orientar o próximo governo. Quem dera que direitos humanos tivessem chegado a tamanha importância política e fossem capazes de, efetivamente, ser o centro dos compromissos de qualquer candidato e de qualquer governo. Mas compromisso para valer, e não apenas um amontoado de frases demagogicamente esgrimidas nos palanques eleitorais.

Assim, nós – de São Paulo, do mesmo modo que o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), reiteramos a manifestação, publicada em nota no último 31/12/2009, na qual se afirma que cobramos “uma posição do governo brasileiro, que seja coerente com os compromissos constitucionais e com os compromissos internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos. O momento é decisivo para que o país avance em direção de uma institucionalidade democrática mais profunda, que reconheça e torne os direitos humanos, de fato, conteúdo substantivo da vida cotidiana de cada um/a dos/as brasileiros e brasileiras”.

Manifestamos nosso apoio integral APOIO ao PNDH 3, pois entendemos que o debate democrático é sempre o melhor remédio para que a sociedade possa produzir posicionamentos que sejam sempre mais coerentes e consistentes com os direitos humanos. Ao mesmo tempo, rejeitamos posições e atitudes oportunistas que, desde seu descompromisso histórico com os direitos humanos, tentam inviabilizar avanços concretos na agenda, que. quer a realização dos direitos humanos na vida de todas e de cada uma das brasileiras e dos brasileiros.

Juntamente com o MNDH, também manifestamos nosso apoio integral ao ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e entendemos que sua permanência à frente da SEDH neste momento só contribui para reforçar o entendimento de que o PNDH 3 veio para valer. Entendemos ainda que, se alguém tem que sair do governo, são aqueles ministros – entre os quais o da Defesa, senhor Jobim, e o da Agricultura, senhor Stephanes) – ou quaisquer outros prepostos que, de forma oportunista e anti-democrática, vêm contribuindo para gerar as reações negativas e conservadoras ao que está proposto no PNDH 3.

Em suma, como organizações da sociedade civil, o MNDH e nós, que vivemos e militamos em São Paulo, estamos atentos e envidaremos todos os esforços para que as conquistas democráticas avancem sem qualquer passo atrás.

PNDH e o avanço democrático


O Partido Comunista do Brasil manifesta seu apoio ao Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), do governo federal, por entender que ele representa uma sistematização de importantes anseios democráticos que o país ainda necessita conquistar.

Tal Programa incorporou resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em Brasília, e de mais de 50 conferências temáticas realizadas desde 2003. A grande maioria de suas propostas deverá ser objeto de projetos de lei a serem amplamente discutidos no Congresso Nacional e por toda a sociedade. Mesmo assim ele tem sido objeto de críticas da grande imprensa e de certos setores da sociedade.

O ponto mais polêmico tem sido a proposta de criação de uma Comissão da Verdade. Tal Comissão terá dentre outros os objetivos de apurar a violação dos direitos humanos no período da ditadura militar; reconstituir a verdade histórica sobre este período; localizar e identificar os restos mortais dos desaparecidos políticos; revogar leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos ou tenham dado sustentação a graves violações.

O Partido Comunista do Brasil defende um Projeto Nacional de Desenvolvimento com a afirmação da soberania nacional, da democracia, dos direitos sociais, da valorização do trabalho e da integração latino-americana. Neste projeto o Partido tem claro e valoriza o papel das Forças Armadas na Segurança Nacional, em particular em relação ao pré-sal e à Amazônia.

O destaque central que o Partido dá à questão nacional não significa, no entanto, deixar de lado as demais questões que compõem um Projeto Nacional de Desenvolvimento e que atenda à grande maioria da nação, em particular a questão democrática.

A nação brasileira tem o direito de conhecer a verdadeira história do país e não somente uma parte dela. Necessita conhecer melhor o golpe proferido contra as instituições democráticas no país em 1964, instituindo uma ditadura militar e rasgando a Constituição brasileira. Este regime foi responsável por graves atentados aos direitos humanos. Não há como avançar no terreno democrático sem que estas questões sejam suficientemente esclarecidas.

Várias nações latino-americanas já constituíram Comissões da Verdade, como na Argentina, Chile, El Salvador, Guatemala e Peru, numa demonstração evidente da importância que este tema passou a ter em nosso continente, como decorrência do período ditatorial vivido por quase todos os países latino-americanos.

O argumento daqueles que se manifestam contra a criação da Comissão da Verdade é de que em havendo julgamento dos torturadores, deveria haver também julgamento daqueles que cometeram atos de violência na luta contra a ditadura. Trata-se de um argumento absurdo e inconsistente de quem quer encobrir a verdade dos fatos. É tentar igualar o agressor ao agredido. Uma situação diz respeito aos torturadores que se utilizaram do aparelho de Estado para matar, torturar e praticar os mais hediondos crimes contra os direitos humanos. Outra diz respeito àqueles que se levantaram contra esta situação e que foram vítimas das prisões ilegais, tortura, sendo que muitos foram mortos, viveram anos na clandestinidade ou no exílio. Estes já foram julgados.

Além do mais, a Constituição brasileira considera que a tortura é um crime inafiançável e insusceptível de graça ou anistia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Várias convenções internacionais consideram a tortura como um crime de lesa humanidade e, como tal, imprescritível.

O Partido Comunista do Brasil defende esta posição não como uma atitude revanchista, mas como a alternativa de uma verdadeira reconciliação nacional e como efetivo caminho de superação desta mancha que ficou na história do Brasil. Tentar ocultar os crimes contra os direitos humanos praticados no período da ditadura militar é um desserviço à democracia e à união do povo brasileiro para transformar este país numa nação forte, justa e democrática.

O direito humano à comunicação


O Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social manifesta o seu apoio ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), resultado de processo que contou com a participação de milhares de militantes, organizações da sociedade civil e instituições do poder público, em diálogo intenso que durou mais de dois anos e teve seu ápice na XI Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada em Brasília (DF), em dezembro de 2008.

No tocante à comunicação, o Intervozes afirma o seu apoio às medidas previstas na diretriz 22, relativas ao tema, que visam à ampliação da garantia do direito à informação e à comunicação e à defesa dos direitos da população. Tais medidas não podem ser entendidas como ameaças à liberdade de expressão, como querem fazer entender recentes críticas públicas que buscam desqualificar as propostas.

A defesa da democracia e dos direitos humanos deve incluir, de um lado, a afirmação veemente do direito de todos e todas à liberdade de expressão e, de outro, a criação de mecanismos de responsabilidades ulteriores para aqueles veículos que praticarem violações a direitos humanos por meio de sua programação, especialmente os concessionários de serviços públicos de rádio e televisão. Liberdade de expressão não pode se confundir com carta branca para violações de direitos humanos. Assim como qualquer cidadão está sujeito a punições a posteriori caso pratique ou estimule violações de direitos humanos (por meio de manifestações racistas, por exemplo), os meios de comunicação estão sujeitos aos mesmos princípios.

Esse tipo de medida está em consonância com o que prevêem pactos e acordos internacionais ratificados pelo Brasil, tais como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose, 1969), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Belém, 1994) e a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Durban, 2001). Está de acordo também com a Constituição Federal brasileira e a legislação do setor (em especial o artigo 52 do Código Brasileiro de Telecomunicações), além de já ser prevista desde a primeira versão do PNDH, publicada durante o governo FHC.

Diferentemente da grande maioria dos países de democracia avançada, o Brasil não tem hoje um órgão regulador que tenha incidência sobre o sistema de radiodifusão (rádio e televisão) e segue com frágeis e insuficientes mecanismos de monitoramento sobre a programação veiculada, com total dependência de ações do Ministério Público Federal. O aprimoramento desses mecanismos passa, necessariamente, pelo estabelecimento de critérios democráticos de análise, construídos em diálogo com todos os setores, seguindo o exemplo do processo realizado para definição de critérios de classificação indicativa.

Sem prejuízo de possíveis ajustes nos mecanismos específicos previstos, o que o PNDH-3 pauta acertadamente – e em consonância com o que aprovou a recém-realizada I Conferência Nacional de Comunicação – é a necessidade de estabelecer garantias para que o serviço público de radiodifusão cumpra, de fato, o interesse público. O Brasil não pode mais admitir a ocorrência de sistemáticas violações de direitos humanos no conteúdo exibido por emissoras que recebem concessões públicas, fato ainda hoje bastante comum.

Entendemos que as divergências sobre as proposições elencadas no PNDH-3 são naturais e o debate acerca das mesmas é extremamente necessário e saudável. Entretanto, não nos parece cabível que o Programa seja rotulado de peça autoritária e que represente um suposto sentimento de revanchismo ou uma forma de cerceamento de direitos de quem quer que seja. Estranhamos, sobretudo, que as críticas ao PNDH-3 estejam sendo vocalizadas justamente por atores políticos cujo histórico inclui a participação, a colaboração ou o apoio ao regime ditatorial vivenciado pela sociedade brasileira entre 1964 e 1985, e que agora se apresentam como defensores da democracia e do Estado de Direito.

Reafirmamos ainda o apoio aos processos participativos de construção de políticas públicas, como os que resultaram no PNDH-3. Por todo o exposto, esperamos que as medidas previstas no programa sejam efetivamente implementadas.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Cidadão Boilesen e o ombudsman da Folha

Está em cartaz nos cinemas o filme “Cidadão Boilesen”, do diretor Chaim Litewski. Resultado de 15 anos de pesquisas, ele já foi premiado no Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade” e foi aplaudido de pé na Mostra de São Paulo e no Festival do Rio de Janeiro. O filme retrata a trajetória sinistra de Henning Boilesen, dinamarquês naturalizado brasileiro, executivo do Grupo Ultra (Ultragaz, Ultralar, etc.), e revela os porões da Operação Bandeirantes, a Oban, o principal centro de tortura montado pelo Exército durante os tempos sombrios da ditadura militar no país.

O documentário prova, com entrevistas, fatos e nomes, que industriais e banqueiros financiaram a Oban. Boilesen foi além. Anticomunista sádico, ele se destacou por participar diretamente das sessões de tortura. Ele inventou até uma máquina capaz de controlar, com teclados, a intensidade dos choques elétricos. Em sua homenagem, o aparelho foi batizado de “pianola Boilesen” pelos carrascos torturadores. Em 15 de abril de 1971, o sádico empresário foi morto por militantes da Ação Libertadora Nacional (ANL) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).

A resposta ridícula do ombudsman


Num dos trechos, o filme confirma o envolvimento direto do Grupo Folha nos anos de chumbo da ditadura. Indignado com a revelação, o procurador Renato Khair enviou carta ao ombudsman do jornal solicitando explicações. A mensagem não foi sequer publicada, mas merece ser lida:

“No ótimo documentário ‘Cidadão Boilesen’, de Chaim Litewski, há uma citação expressa de que este jornal teria colaborado diretamente com a Operação Bandeirantes (Oban), da ditadura militar. A ‘Folha’ teria cedido as suas caminhonetes aos membros da Oban, na repressão aos opositores da ditadura. É uma acusação grave e séria. Até agora, não vi nenhuma resposta da ‘Folha’, negando veementemente qualquer tipo de participação ou apoio ao regime militar. O mínimo que se espera é que se manifeste, seja para refutar ou para confirmar tais afirmações”.

A resposta do ombudsman, que também não apareceu nas páginas da Folha, foi ridícula: “Caro Sr. Renato, durante o período ditatorial, a direção da Folha não foi informada da utilização dos seus caminhões pelos órgãos de repressão. No entanto, investigações posteriores constataram que, de fato, alguns veículos do jornal foram usados por equipes do DOI-CODI. Esses atos foram praticados à revelia dos acionistas da empresa. Atenciosamente, Carlos Eduardo Lins da Silva”.

Ditadura funcional à famíglia Frias


O ombudsman, talvez para preservar o seu posto, parece desconhecer as ligações entre o dono do Grupo Folha, Octávio Frias de Oliveira, e o setor “linha dura” dos generais. Ele também não cita que os editoriais da Folha clamaram pelo golpe militar de 1964. Até parece que não leu o livro “Ditadura escancarada”, de Élio Gaspari, que hoje serve ao jornal e também resolveu silenciar sobre o seu apoio à “ditabranda”. Na página 395, ele afirma: “Carros da empresa [Folha] eram emprestados ao DOI, que os usava como cobertura para transportar presos na busca de ‘pontos’”.

É uma mentira grotesca afirmar que o apoio à ditadura “foi praticado à revelia dos acionistas da empresa”. Octávio Frias de Oliveira foi um dos mentores intelectuais do golpe militar e, durante anos, utilizou seus órgãos de imprensa para apoiar as barbaridades cometidas pela ditadura. Só nos estertores do regime, quando já tinha dizimado as forças de esquerda e sofria forte desgaste, é que a famíglia Frias encampou a bandeira das Diretas-Já. A ditadura foi bastante funcional para a elite burguesa e Octávio Frias construiu seu império midiático à custa dela. Não dá para negar!

“Frias colaborou com a ditadura”


Quando do abjeto editorial da Folha qualificando de “ditabranda” a sanguinária ditadura militar, o jornalista Rodrigo Vianna, do blog “Escrevinhador”, publicou entrevista com Carlos Eugênio Paz, ex-dirigente da ANL e um dos personagens do filme “Cidadão Boilesen”. A conversa ajuda a desmentir a grotesca resposta do ombudsman da Folha. Reproduzo trechos da entrevista:

RV- Durante o período em que você esteve à frente da ALN (1970/1972), soube do envolvimento direto do Grupo Folha com a Oban e o DOI-CODI?

O Grupo Folha, que apoiou o golpe de estado de direita de 31 de março de 1964 desde suas primeiras horas – basta ver as manchetes, as reportagens e os editoriais da Folha de S.Paulo da época –, colaborou diretamente com a repressão política. Carros de suas publicações eram usados para disfarçar investigações e cercos e chegaram inclusive a transportar companheiros presos para o DOI-CODI. Agentes da Operação Bandeirantes serviam-se dos carros do grupo para transitarem sem serem identificados por nós como policiais.

RV- A ALN chegou queimar carros da Folha? Por quê?

Sim, a Ação Libertadora Nacional queimou vários carros da Folha como represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão e o uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, o Grupo Folha, participando diretamente da guerra, era passível de sofrer as sanções e as represálias da guerra.

RV- A ALN chegou a elaborar lista com nomes dos principais financiadores da Oban? Quem estava nessa lista? Alguém ligado à "Folha" constava?

A ALN tinha conhecimento de vários financiadores da Oban. Entre eles estavam o senhor Frias, presidente do Grupo Folha, o presidente da Ultragaz, Henning Albert Boilesen, o presidente do Grupo Ultra, Peri Igel, o presidente do Bradesco, Amador Aguiar, o presidente da Fiesp, Theobaldo de Nigris, que inclusive cedia a sede desta entidade para reuniões arrecadatórias, e muitos outros. Havia provas cabais e contundentes. Uma amostra disso foi o justiçamento de Boilesen, que mesmo na época ficou claro ser um quadro do sistema repressivo. Hoje, com o filme "Cidadão Boilesen", de Chaim Litewski, fica mais ainda.

RV- Em seu livro “Viagem à luta armada”, você relata o caso de Solange (militante que foi torturada na OBAN, sobreviveu, e depois ajudou a reconhecer Boilesen como torturador). Você lembra algum militante de esquerda ter dado informações diretas, semelhantes às de Solange, sobre a presença de carros da "Folha" nas operações da Oban?

Lembro sim. Houve companheiros que, presos nas mãos do DOI-CODI, foram transportados em carros da Folha. Assim como fiz no caso da companheira Solange, reservo-me o direito de não citar seus nomes, por respeito a eles e às normas de segurança. Quero dizer que compreendo o desejo de sigilo por parte de todos os companheiros da ALN e sempre o respeitarei.

RV- Como avaliou o fato da Folha – que nunca se pronunciou sobre esses episódios nebulosos – ter se referido à ditadura como "ditabranda", em recente editorial?

O Grupo Folha apoiou o golpe de estado, financiou e participou diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso. Aliás, comportamento adotado pela direita brasileira em seu conjunto. Hoje falam de democracia como se tivessem sido democratas a vida inteira. Roberto Marinho, por ocasião de seu falecimento, foi saudado como um democrata, Frias também. Grupos econômicos que financiaram a repressão hoje saúdam a democracia. Um dos defensores e redatores do AI-5, o coronel Jarbas Passarinho, posa de tolerante e democrata.

Ao mesmo tempo, quando falamos de abrir os arquivos da ditadura, quando pedimos os corpos de nossos desaparecidos para que suas famílias possam, enfim, chorá-los e descansar, quando queremos saber como esses assassinatos foram perpetrados, muitas vozes se levantam nos acusando de revanchistas. O Grupo Folha está, quando fala de "ditabranda", onde sempre esteve, à direita da sociedade, e defende a ditadura. Talvez eles achem que se devesse, na época, ter cometido ainda mais e mais graves crimes contra o povo brasileiro.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Direitos humanos e a gritaria da mídia

O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), elaborado sob a coordenação do ministro Paulo Vannuchi, está gerando baita gritaria dos setores mais retrógrados da sociedade. Parece até que está em gestação uma santíssima aliança, composta por generais, latifundiários e barões da mídia, disposta a atazanar o governo Lula. Como notou o blogueiro Rodrigo Vianna, só falta a chamamento nos jornais, rádios e televisões para as famigeradas “Marchas com Deus, pela família e pela liberdade” para lembrar os preparativos do golpe militar de 1964.

Primeiro foram os chefes das forças armadas e o ministro da Justiça, o tucano infiltrado Nelson Jobim, que acusaram o plano de propor a apuração dos crimes cometidos pela ditadura. Depois, os arcaicos latifundiários, acostumados a usar trabalho escravo e infantil e a contratar jagunços para matar lideranças rurais, afirmaram que o programa discrimina o agronegócio. Já a cúpula da igreja católica, favorável aos dois itens anteriores, discordou de um ponto secundário, o veto ao uso de símbolos religiosos nos prédios públicos, esquecendo-se que o Brasil é um país laico.

Cheiro de oportunismo eleitoreiro

Agora, são os barões da mídia e seus colunistas de aluguel que erguem sua voz monocórdia para crucificar o plano. Nos editoriais dos jornalões e dos telejornais, ele é tachado de “autoritário”, de “atentar contra a liberdade de expressão” e ser o “primeiro passo para instituir uma ditadura” – logo eles que clamaram pelo golpe de 1964 e sustentaram o regime militar. Não há espaço para contestação nos veículos hegemônicos, inclusive nas emissoras privadas de radiodifusão – que, mais uma vez, desrespeitam o fato de que são concessões públicas e não bens particulares.

A baita gritaria é até estranha. Cheira oportunismo eleitoreiro num ano de sucessão presidencial. Afinal, o PNDH-3 foi debatido durante vários meses, envolveu centenas de entidades populares e distintos partidos políticos, e teve as suas linhas mestras aprovadas na Conferencia Nacional dos Direitos Humanos, em dezembro de 2008. Na ocasião, as confrarias dos barões da mídia – Abert, teleguiada pela TV Globo; ANJ, comandada pela “ditabranda” da Folha; e ANER, liderada pela golpista revista Veja – foram omissas. Preferiram, como sempre, fugir do debate democrático.

Nada contra o amiguinho FHC

Além disso, e o que é mais estranho, esta é a oitava conferência de direitos humanos. Na sétima, ocorrida em 2002, as empresas de radiodifusão já foram criticadas por estimular à violência; nela nasceu a campanha “quem financia a baixaria é contra a cidadania”. E este é o terceiro plano de direitos humanos. Antes dele, outros dois viraram decretos presidenciais e não mereceram tanto barulho. O decreto nº 1.904, assinado em 13 de maio de 1996, também procurou regulamentar o que está inscrito como princípio na Constituição Federal de 1988. Entre outros itens, ele decidiu:

“Propor a alteração na legislação existente sobre faixa etária”; “criar um sistema de avaliação permanente sobre critérios de classificação indicativa”; “promover o mapeamento de programas radiofônicos e televisivos que estimulem a apologia do crime, da violência, da tortura, das discriminações, do racismo, da ação de grupos de extermínio, de grupos paramilitares e da pena de morte, com vista a identificar responsáveis e adotar medidas legais pertinentes”. Já o decreto nº 4.229, de 13 de maio de 2002, reafirmou as indicações anteriores e acrescentou outras duas:

“Garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos; coibir a utilização de recursos públicos, inclusive de bancos oficiais, fundações, empresas públicas e de economia mista, para patrocinar eventos e programas que estimulem a prática de violência”.

Decreto deve sair do papel

É certo que FHC era e é amiguinho dos barões da mídia. É certo, ainda, que a maioria dos itens inscritos nos decretos presidenciais nunca saiu do papel. Mesmo assim, eles foram publicados no Diário Oficial. O decreto de 2002 falava até em “controle social dos meios de comunicação”, o que tira o sono dos empresários. Mas, no passado, não houve a baita gritaria contra a “censura” e o “autoritarismo estatal”. Já no governo Lula, tudo é que progressista vira alvo da fúria patronal. Os barões da mídia temem que a lei vire algo concreto, que deixe de ser peça de decoração.

No caso da classificação indicativa, prevista nos dois decretos de FHC, ela só mereceu solução legal por meio da edição da portaria nº 1.100, de 14 de julho de 2006, que regulamentou o seu exercício em diversões públicas, e da portaria nº 1.220, de 11 de julho de 2007, que definiu os critérios para as obras audiovisuais destinadas à televisão e congêneres. A mídia hegemônica fez de tudo para barrar esta iniciativa do governo Lula. A TV Globo até acionou seus artistas globais para bombardear, em propagandas caríssimas, a classificação indicativa.

Medidas ousadas do PNDH-3

Agora, os barões da mídia temem que PNDH-3, que adquiriu formato legal no decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, seja aplicado de fato. No geral, ele mantém a mesma orientação dos dois decretos anteriores, mas avança ao indicar meios para sua aplicação e fixar responsáveis. É isto, juntamente com o discurso eleitoreiro, que apavora os empresários. Como aponta Rogério Tavares, em excelente artigo no Observatório da Imprensa, “o maior mérito do decreto 7.037 é o de apontar caminhos institucionais mais definidos para a execução das ações que recomenda”.

Entre outras medidas ousadas, que atendem a históricas demandas dos movimentos sociais que lutam contra ditadura midiática e incorporam propostas aprovadas na 1ª Conferencia Nacional de Comunicação, realizada em dezembro passado, o decreto propõe:

- “Criação de marco legal regulamentando o artigo 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos direitos humanos nos serviços de radiodifusão concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas”;

- “Suspender patrocínio e publicidade oficial em meios que veiculam programações atentatórias aos direitos humanos”;

- “Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios dos direitos humanos, assim como dos que cometem violações”;

- “Avançar na regularização das rádios comunitárias e promover incentivos para que se afirmem como instrumentos permanentes de diálogo com as comunidades locais”.


Além disso, o decreto recomenda “inserir a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados na discussão sobre outorga e renovação das concessões públicas”; que o “Ministério Público assegure aplicação de mecanismos de punição aos veículos de comunicação, autores e empresas concessionárias”; “fomentar a criação e acessibilidade de Observatórios Sociais destinados a acompanhar a cobertura da mídia em direitos humanos”; “apoiar e desenvolver programas de formação em comunicação e direitos humanos para comunicadores comunitários”.

Violadores contumazes dos direitos humanos

Uma leitura honesta, sem as manipulações midiáticas, comprova que o decreto é civilizador e garante a defesa dos mais elementares direitos humanos. Ele não tem nada de autoritário. “No mundo todo, em um estado democrático de direito, liberdade de expressão que atente contra os direitos humanos não é liberdade de expressão. É infração constitucional e, em alguns casos, também é crime regulado pelo Direito Penal. Assim deve ser tratada”, afirma Rogério Tavares.

No mesmo rumo, o professor Laurindo Lalo Leal Filho critica a gritaria da mídia. “É só se falar em algum tipo de ação da sociedade para evitar os abusos freqüentemente cometidos pelos meios de comunicação que seus controladores, imediatamente, pulam... Isto ocorre porque programas veiculados diariamente por grande parte das emissoras de rádio e TV do Brasil são violadores contumazes dos direitos humanos. Basta ver como são tratados os negros nas telenovelas, os homossexuais nos programas de auditório e os pobres nos espetáculos policialescos”.

Urgência da pressão social

Além do objetivo eleitoral, de palanque da oposição demo-tucana, a gritaria dos barões da mídia visa fazer o governo Lula recuar da sua proposta – como parece já ocorrer no ponto da punição aos torturadores. Ao sabotarem a 1ª Confecom, Abert, ANJ e ANER esperavam inviabilizá-la e não conseguiram. Tiveram que assistir a comemoração dos movimentos sociais com as vitórias arrancadas. Agora, tentarão implodir o PNDH-3. Somente com muita pressão social será possível manter a essência do plano e colocá-lo em prática, assim como bancar as decisões da Confecom.

Como afirma Michelle Prazeres, num texto publicado no sítio Direito à Comunicação, “o PNDH transforma em propostas concretas algumas reivindicações históricas e algumas práticas bem sucedidas do movimento de comunicação. Sabemos que se trata de um plano. E sabemos que os planos precisam de muita mobilização e acompanhamento para sair do papel... Que 2010 seja um ano de lutas e conquistas para o movimento de comunicação. O plano aponta neste sentido”.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Mídia agourenta se inspira no Chile

Ainda é cedo para prever o resultado do segundo turno da eleição presidencial no Chile, marcada para 17 de janeiro. O postulante da direita, o megaempresário Sebastián Piñera, está à frente das pesquisas. Diante do risco de retrocesso, colunistas da mídia e intelectuais demo-tucanos já põem as suas garrinhas de fora para analisar os motivos da sonhada derrota do candidato da presidente Michele Bachelet e para tirar conclusões precipitadas sobre a sucessão presidencial no Brasil.

Eles comemoram o fato de que a popularidade não se transfere mecanicamente – nem Chile nem no Brasil. Bachelet tem o apoio de mais de 75% da população e não conseguiu emplacar a vitória da sua aliança, a Concertación. Lula, que bate recordes de popularidade, também teria as mesmas dificuldades, apostam os neoliberais de plantão. Outra comparação saudada é que no país vizinho a esquerda saiu rachada e a direita uniu suas forças. Por isso, os demo-tucanos sonham tanto com as candidaturas de Ciro Gomes, Marina Silva e Heloisa Helena. Querem repetir a tática chilena.

Particularidades de cada país

O estrategista chinês Sun Tzu, no livro “A arte da guerra”, já ensinou que “se você não conhece nem o inimigo nem a si próprio, perderá todas as batalhas”. Neste sentido, é bom prestar atenção à tática do bloco brasileiro conversador-neoliberal. Ela tem certa consistência. De fato, não é tão simples transferir votos. Isto não se dá automaticamente. Depende do carisma da candidata, das alianças forjadas, da plataforma eleitoral, entre outros quesitos. Além disso, a tendência é que as forças de esquerda e centro-esquerda saiam divididas na batalha sucessória de outubro próximo.

Mas apenas isto não justifica o otimismo agourento dos demo-tucanos. Para a sua tristeza, cada país tem suas peculiaridades. No Chile, a Concertación já está no poder desde 1989, desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet. No geral, ela manteve o programa econômico neoliberal e não promoveu maiores mudanças políticas e sociais. A aliança centrista sofre, portanto, um natural desgaste. No Brasil, a situação é diferente. O bloco popular-democrático que sustenta Lula está há pouco tempo no governo e não é visto, pela maioria do povo, como força conservadora. Além disso, a oposição de direita não está tão unida assim – que o digam Aécio Neves e José Serra.

“Expressão maior do pinochetismo”

De toda forma, qualquer que seja o resultado das eleições no Chile, ele dará muito que falar. O susto da presidente Michele Bachelet é evidente. No primeiro turno, em 13 de dezembro, o seu candidato, Eduardo Frei, obteve 29,6% dos votos, contra 44,05% do direitista Sebastián Piñera – uma distância folgada. Já o jovem Marco Enríquez-Ominami, de centro esquerda, teve 20,13%, e o candidato apoiado pelo Partido Comunista ficou com 6,21% dos votos. O PC e outras forças já anunciaram apoio critico a Eduardo Frei, mas o risco de retrocesso no Chile é preocupante.

O que incomoda na cobertura da mídia e no otimismo dos tucanos, alguns que inclusive viveram o terror do regime de Augusto Pinochet, é o silêncio sobre o que significaria a vitória de Piñera. Como alerta Gustavo de Mello, num excelente texto na Carta Maior, ele é a maior “expressão do pinochetismo”; freqüentou os porões da ditadura. O seu irmão, José Piñera, ministro de Pinochet, foi o criador da Administração dos Fundos de Pensões (AFP), que entregou ao capital privado os recursos dos chilenos; bancou a Lei Mineira, que isentou de impostos as multinacionais; e, como ministro do Trabalho, foi autor do Plano Laboral, que precarizou os direitos trabalhistas no país.

Fortuna nas sombras da ditadura

Na sombra do regime sanguinário, Sebastián Piñera fez fortuna. Hoje é dono de várias empresas, inclusive no ramo das comunicações. Boa parte desta riqueza foi construída com base em fraudes no sistema financeiro, segundo denúncias de autoridades da própria ditadura. Monica Madariaga, ex-ministra da Justiça, confirmou recentemente que Piñera teve ordem de prisão decretada pelas fraudes cometidas no Banco de Talca e por crimes contra a Lei Geral de Bancos.

Num artigo bastante equilibrado, Manuel Cabieses, editor da revista chilena Punto Final, adverte para os riscos da eleição de Sebastián Piñera em 17 de janeiro. Ele é taxativo na sua conclusão: “A perigosa situação interna e regional que se criaria com a vitória da direita no Chile legitima a necessidade de se bloquear esta manobra das oligarquias. A realidade indica que não há outro caminho que votar em Eduardo Frei... E pôr-se a trabalhar por uma alternativa de esquerda que permita a libertação da arapuca do ‘mal menor’”. Reproduzo abaixo trechos da sua análise:

Aliado do narcoterrorista Uribe

É certo que, no plano da economia, salvo terminar de privatizar o que ainda não privatizaram a ditadura e a Concertación, um governo de Piñera não se diferenciaria muito de um de Frei. Mas haveria mudanças regressivas em outros âmbitos. Por exemplo, em direitos humanos. Ele ditaria uma anistia para os militares já condenados ou interromperia os processos de outros criminosos e torturadores. No terreno sindical, ele imporia a flexibilização trabalhista e outras medidas para debilitar o movimento dos trabalhadores. A repressão à luta social seria ainda mais dura. Por trás de uma pretensa defesa da “segurança cidadã”, se levantaria um Estado policial.

Piñera se declara admirador do governo da Colômbia e de seus métodos. Visitou a Colômbia em julho de 2008 e percorreu esse país no avião presidencial, acompanhando Álvaro Uribe e do então ministro da Defesa, José Manuel Santos, hoje candidato presidencial. Em outubro passado, Santos enviou ao Chile três membros de seu comando de campanha, Juan Carlos Echeverry, Tomás González e Santiago Rojas, para estudar a campanha e o estilo de Piñera. “Os problemas no Chile e na Colômbia não são tão distintos. Ambos os países estão preocupados com a segurança cidadã e o gasto social em saúde e educação”, declarou um dos assessores de Santos.

O governo de Uribe gerou o mais delicado problema que hoje enfrenta a América Latina ao firmar com os EUA um acordo que submete a soberania colombiana para permitir a instalação de sete bases militares norte-americanas. Se Piñera for eleito presidente, alinhará o Chile com a Colômbia e outros países da região que arriaram a bandeira da dignidade latino-americana. Uma perigosa tendência que vem ganhando força a partir do golpe de Estado em Honduras e que busca configurar um bloco contra Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, os países da Aliança Bolivariana dos Povos da América (ALBA).

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Golpe “hondurenho” ronda o Paraguai

Desde o final do ano passado, crescem os rumores de que um golpe ronda o vizinho Paraguai. O presidente Fernando Lugo, adepto da “teologia da libertação” e batizado pelo povo de “bispo dos pobres”, enfrenta intensa resistência no Legislativo, onde seus aliados estão em franca minoria, e assiste sucessivas crises entres os poderes. No início de 2010, nova crise institucional se instalou com a recondução aos seus cargos de dois ex-ministros do Supremo Tribunal. Aproveitando-se da briga entre o Legislativo e Judiciário, as forças direitistas tentam retornar ao governo central.

A ofensiva lembra muito o golpe de junho passado em Honduras. Para depor o presidente eleito democraticamente, que encerrou décadas de domínio oligárquico no Paraguai, a direita procura dar uma fachada de “legalidade” ao golpe de estado. As suas lideranças nem escondem mais este objetivo. Falam abertamente em promover um “hondurazo”. Em recente entrevista à Rádio Nacional, da Argentina, o senador Alfredo Luís Jaeggli, do Partido Liberal, defendeu a abertura do processo de impeachment contra Lugo. Vale conferir trechos desta descarada entrevista golpista:

Defesa declarada do “hondurazo”

RN: Por que a necessidade de forçar uma situação para impedir que um presidente termine o mandato?

ALJ: Olhe, o Paraguai é o único país, junto com Haiti e Cuba, que não fez uma reforma modernizadora. Vocês tiveram sua modernização, vocês sabem, com o governo de Menem. O Brasil teve também. O Uruguai também. A Bolívia também, mas desgraçadamente teve uma involução. Já o Paraguai permanece como nos anos 50. As instituições estão totalmente obsoletas. Necessitamos de reformas modernas e este é um dos problemas que apresenta o presidente Lugo...

RN: E o presidente Lugo é um obstáculo para esta modernização?

ALJ: Sim, sim, sim, assim como estou te dizendo...

RN: Então o melhor é afastá-lo e colocar no lugar dele o vice-presidente [Federico] Franco, que poderia impulsionar a modernização?

ALJ: Pelo menos é isso que eu penso e a idéia de muitos outros. Nós não podemos andar para trás, nós temos que impulsionar uma revolução. Nós tivemos 60 anos de ditadura, de castigo, de vandalismo. Nós temos que democratizar, tornar esse país atraente para investidores externos...

RN: Algo similar ao que ocorreu em Honduras: afastar Zelaya para o capital se sentir mais seguro para investir?

ALJ: Olhe, eu também tenho minhas idéias que são diferentes das de vocês a respeito do que aconteceu em Honduras. Eu sou parte da Fundação Liberdade, e essa fundação é parte da Fundação Naumann. O presidente hondurenho assumiu a presidência com um modelo liberal e logo o traiu indo para o caminho do socialismo do século XXI. Desculpem-me, mas, para mim, o que ocorreu em Honduras foi totalmente legal.

RN: Mas tem que haver uma razão. Você poderia enunciar quais são as razões?

ALJ: A primeira razão é que este pobre país não tem nenhuma mudança e com este senhor possivelmente vamos andar para trás ao invés de termos uma revolução. O que este senhor quer é liquidar os partidos e dar o poder para as organizações sociais. O que ele quer é apresentar como uma panacéia o socialismo do século XXI e para a grande maioria na Câmara dos Deputados e na Câmara dos Senadores, das quais somos representantes eleitos, isso não é assim. Nós temos que fazer o contrário de tudo isso.

Nós não estamos gostando do que está ocorrendo na Bolívia, na Venezuela e tampouco na Argentina, vamos ser honestos. Um pouco menos na Nicarágua, segundo nos parece. Podemos estar equivocados, mas os índices econômicos da Bolívia e da Venezuela estão muito pior do que antes. Então o que queremos é evitar isso, porque aqui a pobreza é extrema, temos que fazer esse país avançar. Temos que conseguir que haja indústrias, investimentos, crescimento econômico, democratizar, abrir o país, e este senhor quer exatamente o contrário...

RN: Em que países da América Latina esses planos de orientação liberal diminuíram a pobreza?

ALJ: No Chile. Que lhe parece? Não está de acordo comigo? Ou você acredita que foram os socialistas no Chile que fizeram a economia crescer. Eles não mudaram sequer a legislação trabalhista chilena. Essa legislação ainda é a de Pinochet. O que acha disso?

RN: Chama a atenção, senador, que você não mencionou a conduta pessoal do presidente Lugo e sabe que eu faço essa pergunta porque sou mulher...

ALJ: Olhe, honestamente lhe digo que sou muito prático e muito sincero. Se Lugo tivesse tido a conduta moral que teve, mas tivesse feito as reformas que foram feitas no Chile, não veria problemas. Simples assim.


Urgência da solidariedade internacional

Como se observa nesta asquerosa entrevista, as forças oligárquicas do Paraguai estão decididas a derrubar Fernando Lugo para impor “reformas modernizadoras”, nos moldes do ditador Augusto Pinochet e dos presidentes neoliberais Carlos Menem e FHC. Para elas, Honduras é o exemplo a seguir para barrar o “socialismo do século XXI”. Na avaliação destas forças antidemocráticas, de caráter fascista, o presidente Fernando Lugo coloca em risco os privilégios da oligarquia. Numa entrevista ao jornal argentino Página 12, o secretário-geral do Partido Comunista do Paraguai, Najeeb Amado, e o líder camponês Ernesto Benítez alertaram para o risco iminente do golpe.

Para eles, as recorrentes crises institucionais, forjadas pelas elites e amplificadas pela mídia, têm fragilizado o presidente eleito. Sua sustentação parlamentar também estaria declinando de modo acelerado. A ampla coalizão que apoiou Lugo se desfez. Desde o início do governo, ele enfrenta absoluto bloqueio à execução do seu programa. Propôs a reforma agrária, mas até o esforço para identificar o latifúndio improdutivo é acusado de “subversivo”. A crise institucional criada no Supremo serviu, agora, para unificar as forças oligárquicas, que partem para a ofensiva golpista.

O sítio Opera Mundi observa que a situação de Lugo é delicada. “O ex-presidente da República, Nicanor Duarte, do Partido Colorado, e o líder da UNACE, general Lino Oviedo, acusaram Lugo de estar por trás de uma manobra política. A posição é acompanhada por alguns aliados do vice-presidente, Federico Franco, que vive em constante conflito com Lugo... Alguns deputados já disseram que as forças armadas poderiam ir às ruas e outros que era possível um ‘hondurazo’... Tudo indica que Lugo, que terminou 2009 com polêmicos casos de paternidade, com relação ruim com o Congresso e sob ameaças de impeachment, deverá ter um 2010 bastante difícil”.