Por Antonio Martins, no sítio Outras Palavras:
Três meses depois de iniciado em Nova York, o movimento das ocupações de praças, nos Estados Unidos, continua mobilizado e capaz de produzir surpresas. Espalhou-se por dezenas de cidades. Enfrenta agora, além de investidas pontuais da polícia, o avanço do inverno. Mas além de organizar, esporadicamente, enormes manifestações (dezenas milhares de pessoas nas ruas de Oakland-Califórnia, em 2 de novembro, por exemplo), converteu-se numa usina de debate político.
Boston, em cuja vizinhança estão duas das mais conhecidas universidades norte-americanas (Harvard e o Massachussets Institute of Technology-MIT), é caso. O Occupy Boston propõe, todos os dias, uma agenda vasta e múltipla. São debates, intervenções artísticas (“tambores do Brasil”, inaugura os trabalhos nesta segunda, 14/11), manifestações-relâmpago, contatos com a comunidade. Há cenas curiosas. Na última quarta (9/11), um protesto contra o endividamento dos estudantes – que está beirando 1 trilhão de dólares e pode se transformar numa crise semelhante à das hipotecas – foi aberto por uma bandeira dos Estados Unidos e uma faixa contra o capitalismo… Na segunda, depois da batucada brasileira, haverá um encontro com a população do subúrbio de Roxbury, onde 42% das crianças vivem em situação de pobreza.
Noam Chomsky foi a estrela da programação em 22 de outubro. Ele falou no âmbito de uma das invenções do “Occupy Boston”: as Conferências Howard Zinn, que colocam, os manifestantes, várias vezes por semana, em contato com importantes intelectuais norte-americanos. Como era de esperar, encarnou, em sua fala, dois personagens: o teórico erudito e o ativista.
Foi providencial. Diante de um movimento que começa a se questionar sobre seu próprio futuro, Chomsky lembrou que a superação do capitalismo não se fará em algumas semanas. Vivemos, ele frisou, um momento de encruzilhada e incerteza, em que, além do aumento persistente da desigualdade e do esvaziamento da democracia, pairam ameaças como o recrudescimento do caos econômico e a tentação de buscar, nas guerras, a solução para a crise.
Os novos movimentos, pensa Chomsky, podem ter papel histórico decisivo. A esta altura, só a mobilização social parece capaz de levar a humanidade a optar, na encruzilhada, por um caminho que preserve a amplie conquistas civilizatórias cruciais. Para tanto, não bastam as ocupações. É preciso um enorme esforço para compreender o mundo contemporâneo e transformá-lo oferecendo não apenas denúncias – mas novas formas de sociabilidade.
É um trabalho de décadas. No entanto, certas oportunidades geradas pela própria crise precisam ser aproveitadas no momento em que surgem. Chomsky destaca, na palestra, novas formas de produção. Se no final de 2008 o Estado norte-americano salvou da falência a indústria automobilística e se tornou seu sócio principal, por que não reivindicar que as empresas fosse geridas pelos trabalhadores? Numa conjuntura em que há tantos desempregados qualificados, que tal estimular um plano nacional de construção de ferrovias de alta velocidade, impulsionado pelo Estado?
O sentido geral da fala ao “Occupy Boston” – e, por extensão, aos novos movimentos – parece ser: “Vocês são a esperança, mas estão apenas começando. Não se entusiasmem demais com o que já fizeram. Busquemos juntos as formas de construir, em meio à crise, um mundo mais humano”. A fala de Chomsky começa a seguir: (A.M.)
*****
É um pouco difícil fazer uma Conferência Howard Zinn em uma atividade do movimento Occupy Boston. Surgem sentimentos distintos. Primeiro, tristeza por Howard não estar aqui, para participar e fortalecer, de seu modo particular, algo que teria sido um sonho em sua vida. Além disso, sinto entusiasmo pelo fato de o sonho ter se realizado. É um sonho no qual ele baseou muito de seu trabalho. Estar aqui com vocês teria sido a realização.
O movimento Occupy é entusiasmante. Espetacular, sem precedentes; nunca houve nada parecido de que eu possa me lembrar. Se os vínculos e associações que estão sendo estabelecidos aqui, nesses eventos excepcionais, se sustentarem por um longo período – porque as vitórias não vêm rapidamente – isso pode se tornar um momento muito significativo na história norte-americana.
O fato de as manifestações não terem precedentes é muito revelador. Vivemos um período único – não apenas esse momento, mas desde os anos 70. Naquela década começou um grande ponto de virada na história americana. Por séculos, desde que o país começou, existe uma sociedade em desenvolvimento, com altos e baixos. Mas o progresso geral era em direção à riqueza, industrialização e desenvolvimento – mesmo no escuro. Havia, inclusive em tempos muito difíceis, uma constante expectativa de que as coisas continuariam caminhando numa direção que suscitava esperanças.
Eu sou velho o suficiente para lembrar da Grande Depressão. Depois dos primeiros anos, em meados da década de 30, ainda que a situação fosse objetivamente muito mais complicada que hoje, o espírito era muito diferente. Existia um sentimento de que iríamos superar as dificuldades, até entre as pessoas que estavam desempregadas. Vai melhorar. O movimento militante dos trabalhadores estava se organizando. Foi chegando ao ponto das greves sit-down, que são muito assustadoras para o mundo dos negócios. Era possível compreender isso nos jornais de negócios da época. Uma greve sit-down estava a apenas um passo de tomar as fábricas. Além disso, as leis do New Deal estavam começando a surgir, graças a pressão popular. Existia um sentimento de que tiraríamos algo daquilo.
É bem diferente hoje. Agora, existe um sentimento universal de falta de esperança, ou de desespero. Penso que isso é novo na história norte-americana, e tem uma base objetiva. Em 1930, trabalhadores desempregados podiam prever realisticamente que teriam empregos novamente. Hoje – quando o nível de desemprego em fábricas é aproximadamente igual o da Depressão – sabemos que, se as tendências atuais persistirem, os empregos não vão voltar.
A mudança ocorreu nos anos 70, por várias razões. Uma delas, discutida principalmente por Robert Bernard, que estuda história econômica e tem diversos trabalhos sobre o tema, é uma queda dos lucros. Isso, em conjunto com outros fatores, levou a grandes mudanças na economia – invertendo 700 anos de progresso em direção à industrialização e ao desenvolvimento. Embicamos para um processo de desindustrialização e de de-desenvolvimento. A produção industrial prossegue, é claro, mas em outros continentes. Gera muitos lucros, mas não ajuda a força de trabalho. Junto com isso, ocorreu uma mudança significativa na economia: das empresas produtivas, que produzem o que as pessoas precisam, para a manipulação financeira. A financeirização da economia decolou na época.
Antes da década de 70, os bancos eram apenas bancos. Eles faziam o que os bancos devem fazer em uma economia capitalista: tomam capital que não está sendo utilizado – por exemplo, numa conta bancária – e o transferem para um propósito potencialmente útil, como comprar uma casa ou colocar o filho na faculdade. Não existiam crises financeiras. Era um período de enorme crescimento na história norte-americana, ou na história econômica geral. Nas décadas de 50 e 60, vivemos um crescimento sustentado e igualitário. Os mais pobres avançavam tanto quanto os mais ricos. Muitas pessoas alcançaram padrões de vida razoáveis – o que chamavam de “classe media”.
Era real, e a década de 60 acelerou esse processo. O ativismo daquela época, depois de uma década politicamente sombria, estabeleceu conquistas civilizatórias de grande alcance. Os anos 70 chegaram e de repente aconteceram mudanças drásticas na industrialização e transferência da produção para outros países. A importância das instituições financeiras aumentou imensamente. Além disso, nos anos 50 e 60, houve um desenvolvimento do que mais tarde se tornaria uma economia de alta tecnologia. Computadores, internet, a revolução de tecnologia da informação baseou-se principalmente nos anos 50 e 60, e substancialmente no setor estatal. Demorou algumas décadas para que realmente decolasse, mas foi desenvolvida nessa época.
A década de 1970 começou um tipo de círculo vicioso que levou à crescente concentração de riqueza nas mãos do setor financeiro, algo que não beneficia a economia. A concentração de riqueza leva à concentração do poder político — o que produz mudanças na legislação, ampliando e acelerando o círculo. Decisões como as mudanças na tributação, nas regras de governança corporativa e a desregulação foram adotadas pelos dois partidos, em consensos. Em paralelo, houve um aumento muito forte no custo das eleições, que tornou os partidos ainda mais dependentes das corporações.
Alguns anos depois, começou um processo diferente. Os partidos, em sua essência, dissolveram-se. Antes, um parlamentar que desejasse um posto de presidente de uma comissão ou outra posição de responsabilidade no Congresso, esperava alcançá-la por meio de experiência e trabalho. Mais recentemente, começou-se a investir dinheiro no partido, para progredir. Isso tornou todo o sistema mais atrelado ao setor corporativo, dentro do qual as instituições financeiras têm papel crescente. Deu-se uma concentração enorme de riquezas, principalmente em favor do 1% mais rico da população.
Enquanto isso, começou a se abrir, para a maioria, um período de estagnação – ou mesmo declínio. As pessoas mantinham-se com meios bastante artificiais – como empréstimos, com muitas dívidas. Longas jornadas de trabalho para muitos. O sistema político começou a se dissolver. Sempre houve uma diferença entre política pública e vontade da população, mas essa diferença cresceu astronomicamente. Vemos isso claramente, agora.
O maior assunto em Washington, o que concentra atenção de todos, é o déficit. Para o público, não se trata de um problema muito gave – o que está correto. O problema é a falta de emprego, não o déficit. Agora, existe uma comissão de parlamentares para enfrentar o déficit, mas não para resolver a questão do desemprego.
Se observarmos com atenção, veremos que o público tem opiniões claras, mesmo diante do déficit. Segundo as pesquisas, a sociedade apoia fortemente o aumento dos impostos pagos pelos ricos, que foram muito reduzidos durante o período de estagnação. A maioria também é a favor de manter os benefícios sociais limitados existentes. Mas a comissão parlamentar encarregada de reduzir o déficit provavelmente fará o oposto. Ou eles entrarão em acordo, decidindo em sentido contrário ao que a sociedade deseja, ou irão disparar um procedimento legislativo automático que terá os mesmos efeitos. É algo que acontecerá muito em breve. A comissão de déficit irá tomar uma decisão em algumas semanas. Os movimentos Occupy poderiam ser uma base para tentar lutar contra esta punhalada no coração do país.
Não é o caso de entrar nos detalhes, mas o que acontece há trinta anos é um tipo de pesadelo que foi antecipado pelos economistas clássicos. Quem lê A riqueza das nações, percebe que mesmo Adam Smith considerou a possibilidade de comerciantes e industriais na Inglaterra decidirem transferir seus negócios para outros países, investir neles e importar produtos estrangeiros. Eles poderiam lucrar com isso, mas a Inglaterra seria prejudicada. Smith continuou, afirmando que comerciantes e industriais prefeririam operar em seus próprios países, o que por vezes denominou “viés doméstico”. É como se a Inglaterra de então fosse salva da ruína do que hoje chamamos “globalização neoliberal” por uma mão invisível. No clássico A riqueza das nações, esta é a única ocorrência da célebre expressão “mão invisível”.
Outro grande economista clássico, David Ricardo, notou a mesma coisa e torceu para que não acontecesse. Um tipo de esperança sentimental. Não aconteceu por muito tempo, mas está acontecendo agora. Nos últimos trinta anos é exatamente isso que está em processo. Para a população em geral – os 99%, no imaginário do movimento Occupy – a situação está realmente difícil e pode piorar. Pode ser um período de declínio irreversível. Para o 1%, ou ainda o 0,1%, está tudo bem. Estão no topo, mais ricos e mais poderosos que nunca, controlando o sistema político e desconsiderando o público. Se podem, por que não continuar assim? É para isso Adam Smith e David Ricardo alertaram.
Tomemos o Citigroup, que por décadas foi a mais corrupta das corporações financeiras dos Estados Unidos. Ele foi repetidamente resgatado pelos contribuintes: nos primeiros anos do governo Reagan e novamente agora. Não vou me ater à corrupção. Vocês provavelmente sabem, e é espantoso. Alguns anos atrás, eles criaram uma oferta para investidores. Desejavam atrair quem tivesse interesse de colocar dinheiro no que chamaram de “índice plutonomy” [um híbrido de plutocracia e economia (nota da tradução)]. Diziam que o “índice plutonomy” era uma forma de superar os rendimentos do mercado de ações.
E quanto ao resto da sociedade? Nós os deixamos à deriva. Nós não nos importamos realmente, nem precisaremos deles. Eles precisam estar por perto para providenciar um Estado poderoso para nos proteger e para nos resgatar, quando estivermos com problemas. Mas, essencialmente, eles não têm função. Por vezes, são chamados de precariado, pessoas que vivem uma existência precária na periferia da sociedade. Só que não é mais a periferia; está se tornando uma parte substancial da sociedade nos Estados Unidos e também em outros países.
Isso é considerado uma coisa boa. Certa vez, [o então presidente do Banco Central], Alan Greenspan – que, antes da quebra, era “Santo Alan”, aclamado por economistas como um dos grandes economistas de todos os tempos – depôs ao Congresso. Eram os anos do governo Clinton e ele explicava as maravilhas da economia. Disse que muito do sucesso estava baseado no que ele chamou de “crescente insegurança do trabalhador”. Se os trabalhadores estão inseguros, se eles são precariado, não farão demandas, não ganharão salários, não receberão benefícios e nós podemos deixá-los de lado, se não gostarmos deles. Isso é bom para a economia… Era o que Greenspan chamava tecnicamente de economia saudável. Ele foi muito elogiado por isso…
Bem, agora o mundo está realmente se dividindo entre plutonomy e o precariado – novamente, para citar o imaginário do movimento Occupy, o 1% e os 99%. O plutonomy é onde está a ação. Poderia continuar assim, e nesse caso a inversão história que começou em 1970 se tornaria irreversível. É nesse caminho que estamos. Os movimentos Occupy são a primeira grande reação popular que pode evitar isso. Será necessário enfrentar o fato de que essa é uma luta longa e difícil. Vocês não irão vencer amanhã. Vocês precisam continuar e formar estruturas que serão sustentadas em tempos difíceis e então poderão alcançar grandes vitórias. Há muitas coisas que podem ser feitas.
Mencionei antes que, nos anos 30, uma das ações mais efetivas foram as greves sit-down. A razão era muito simples: era o passo imediatamente anterior a tomar a indústria. Durante os anos 70, quando o declínio se instalava, surgiram alguns eventos importantes. Em 1977, a US Steel decidiu fechar uma de suas maiores fábricas: Youngstown, em Ohio. Em vez de simplesmente deixá-la sair, os trabalhadores e a comunidade decidiram unir-se, comprar a fábrica e convertê-la em uma indústria gerida pelos trabalhadores. Não venceram – mas poderiam, com maior apoio popular. Foi uma vitória parcial, porque apesar de terem perdido, incentivaram outras lutas atuais – em Ohio e outros lugares.
Há, hoje, uma profusão – centenas, talvez milhares – de fábricas pequenas ou não tão pequenas que são (total ou parcialmente) de propriedade de trabalhadores. Poderiam ser geridas pelos trabalhadores. Existe base para uma revolução real. Ela pode ganhar terreno. É um processo que se dá aqui mesmo. Em um dos subúrbios de Boston, uma multinacional decidiu fechar uma fábrica produtiva, funcional e rentável –mas não suficientemente rentável, para eles. Os trabalhadores e o sindicato ofereceram-se para comprar e gerir a fábrica. A multinacional decidiu fechá-la – provavelmente, por razões de consciência de classe. Se houvesse apoio popular suficiente, se algo como esse movimento tivesse envolvido as pessoas, os trabalhadores poderiam ter conseguido.
Fatos assim estão ocorrendo, e alguns deles são grandes. Há não muito tempo, durante a crise, Barack Obama encampou a indústria automobilística. Hoje, ela é basicamente propriedade pública. Várias coisas poderiam ter sido feitas. Uma é o que se deu. Recuperá-la e devolvê-la aos proprietários, ou a um proprietário similar, para que siga seu caminho tradicional. A outra possibilidade era o governo entregar as empresas aos trabalhadores; e eles fazerem dela uma instituição de propriedade dos trabalhadores, um grande sistema industrial gerido por trabalhadores. Um sistema que se responsabiliza por boa parte da economia e que produz o que as pessoas precisam. E há muitas coisas de que as pessoas precisam. Todos sabemos, ou deveríamos saber, que os Estados Unidos estão muito atrasados, em termos mundiais, nos transportes de alta velocidade. Isso é muito sério: afeta as vidas das pessoas e a economia.
Tenho uma história pessoal. Fiz palestras na França, há alguns meses, e acabei em Avignon, no sul. De lá, tive que tomar um trem para o aeroporto, em Paris. A viagem demorou duas horas. É a mesma distância de Washington a Boston. É um escândalo. Temos capacidade para um sistema de transportes semelhante ao francês, e uma força de trabalho capacitada. A construção precisaria de algum apoio popular. Produziria mudanças imensas na economia. Só para tornar os fatos ainda mais surreais, informo: enquanto se evitava essa opção, o governo Obama enviou o secretário de Transportes para a Espanha, encarregando-o de negociar a construção de linhas de trem de alta velocidade nos Estados Unidos. Isso poderia ser feito próprio Rust Belt [o Cinturão da Ferrugem, grande concentração de indústria pesada no noroeste dos EUA, hoje decadente], que está sendo fechado. Não há razão econômica para que isso aconteça. Há razões de classe e falta de mobilização política.
Há muitos desenvolvimentos perigosos no cenário internacional. Dois deles são uma espécie de sombra sobre quase tudo o que discutimos. Há, pela primeira vez na história da humanidade, ameaças reais à paz e à sobrevivência das espécies. Uma delas faz parte do cenário desde 1945: é quase um milagre termos escapado das armas nucleares. É uma ameaça que está sendo, hoje, ponderada pelo governo e pelos aliados. Algo tem que ser feito sobre isso, ou viveremos grandes problemas. A outra, é claro, é a catástrofe ambiental. Todos os países do mundo estão falando, mesmo que timidamente, em fazer algo em relação a isso. Os Estados Unidos também estão caminhando, mas no sentido de acelerar a ameaça. Os EUA são hoje o único país que, além de não fazerem nada construtivo a respeito, andam para trás.
O Congresso está agora revertendo a legislação instituída pelo governo de Richard Nixon (Ele foi o último presidente liberal dos Estados Unidos, e isso mostra, literalmente, o que está acontecendo). Os congressistas estão desmontando as medidas limitadas que o governo Nixon tomou para tentar enfrentar a catástrofe ambiental emergente. Este movimento está ligado a uma enorme máquina de propaganda, que pinta o aquecimento global como fraude da esquerda. Por que prestar atenção a esses cientistas?
Estamos realmente regredindo para o período medieval. Não é uma piada. Se isso está acontecendo no país mais poderoso e mais rico na história, então essa crise não será evitada e tudo isso sobre o que estamos falando não irá importar, em uma geração ou duas.
Ao contrário! Tudo está acontecendo agora e algo tem que ser feito logo, e de forma dedicada e continuada. Não será fácil ter sucesso. Haverá barreiras, dificuldades e fracassos no caminho. A menos que o processo que está tomando espaço aqui e ao redor do mundo, a não que vocês continuem a crescer e se tornar uma força social importante no mundo, as chances de um futuro decente não são muito altas.”
(Após a fala, Chomsky responde a três perguntas do público. Uma delas é sobre representação e a possibilidade de convocar uma greve geral. A seguir, sua fala)
Vocês poderão pensar na greve geral como uma ideia possível, quando a população estiver pronta para isso. Não podemos, é óbvio, sentar aqui e decretar uma greve geral. É preciso haver aprovação e vontade de assumir os riscos, por parte de uma larga parcela da população. Isso exige organização, educação e ativismo. Educação não significa dizer às pessoas em quê elas devem acreditar. Significar aprender, também. Há uma frase de Marx: “A tarefa não é compreender o mundo, mas transformá-lo”. Há uma variante que deveria ser considerada: “Se você quer mudar o mundo numa direção qualquer, você precisa tentar compreendê-lo antes”.
Compreendê-lo não significa ouvir uma fala ou ler um livro, embora isso seja útil. A compreensão vem do aprendizado. O aprendizado deriva da participação. Aprende-se com os outros. Aprende-se com as pessoas que estamos tentando organizar. É preciso conquistar experiência e compreensão necessários para tornar possível implementar ideias e táticas.
Há um longo caminho a percorrer. Não acontece num estalar de dedos. Conquista-se, com trabalho longo e dedicado. Penso que, em muitos sentidos, o aspecto mais interessante do movimento Occupy é a construção de associações e laços que estão se multiplicando. Eles precisam ser mantidos e estendidos para uma ampla parcela da população, que ainda não sabe o que está ocorrendo. Se isso se der, então será possível levantar questões sobre tática como esta, que em certo momento serão muito apropriadas.
* Tradução de Daniela Frabasile.
Três meses depois de iniciado em Nova York, o movimento das ocupações de praças, nos Estados Unidos, continua mobilizado e capaz de produzir surpresas. Espalhou-se por dezenas de cidades. Enfrenta agora, além de investidas pontuais da polícia, o avanço do inverno. Mas além de organizar, esporadicamente, enormes manifestações (dezenas milhares de pessoas nas ruas de Oakland-Califórnia, em 2 de novembro, por exemplo), converteu-se numa usina de debate político.
Boston, em cuja vizinhança estão duas das mais conhecidas universidades norte-americanas (Harvard e o Massachussets Institute of Technology-MIT), é caso. O Occupy Boston propõe, todos os dias, uma agenda vasta e múltipla. São debates, intervenções artísticas (“tambores do Brasil”, inaugura os trabalhos nesta segunda, 14/11), manifestações-relâmpago, contatos com a comunidade. Há cenas curiosas. Na última quarta (9/11), um protesto contra o endividamento dos estudantes – que está beirando 1 trilhão de dólares e pode se transformar numa crise semelhante à das hipotecas – foi aberto por uma bandeira dos Estados Unidos e uma faixa contra o capitalismo… Na segunda, depois da batucada brasileira, haverá um encontro com a população do subúrbio de Roxbury, onde 42% das crianças vivem em situação de pobreza.
Noam Chomsky foi a estrela da programação em 22 de outubro. Ele falou no âmbito de uma das invenções do “Occupy Boston”: as Conferências Howard Zinn, que colocam, os manifestantes, várias vezes por semana, em contato com importantes intelectuais norte-americanos. Como era de esperar, encarnou, em sua fala, dois personagens: o teórico erudito e o ativista.
Foi providencial. Diante de um movimento que começa a se questionar sobre seu próprio futuro, Chomsky lembrou que a superação do capitalismo não se fará em algumas semanas. Vivemos, ele frisou, um momento de encruzilhada e incerteza, em que, além do aumento persistente da desigualdade e do esvaziamento da democracia, pairam ameaças como o recrudescimento do caos econômico e a tentação de buscar, nas guerras, a solução para a crise.
Os novos movimentos, pensa Chomsky, podem ter papel histórico decisivo. A esta altura, só a mobilização social parece capaz de levar a humanidade a optar, na encruzilhada, por um caminho que preserve a amplie conquistas civilizatórias cruciais. Para tanto, não bastam as ocupações. É preciso um enorme esforço para compreender o mundo contemporâneo e transformá-lo oferecendo não apenas denúncias – mas novas formas de sociabilidade.
É um trabalho de décadas. No entanto, certas oportunidades geradas pela própria crise precisam ser aproveitadas no momento em que surgem. Chomsky destaca, na palestra, novas formas de produção. Se no final de 2008 o Estado norte-americano salvou da falência a indústria automobilística e se tornou seu sócio principal, por que não reivindicar que as empresas fosse geridas pelos trabalhadores? Numa conjuntura em que há tantos desempregados qualificados, que tal estimular um plano nacional de construção de ferrovias de alta velocidade, impulsionado pelo Estado?
O sentido geral da fala ao “Occupy Boston” – e, por extensão, aos novos movimentos – parece ser: “Vocês são a esperança, mas estão apenas começando. Não se entusiasmem demais com o que já fizeram. Busquemos juntos as formas de construir, em meio à crise, um mundo mais humano”. A fala de Chomsky começa a seguir: (A.M.)
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É um pouco difícil fazer uma Conferência Howard Zinn em uma atividade do movimento Occupy Boston. Surgem sentimentos distintos. Primeiro, tristeza por Howard não estar aqui, para participar e fortalecer, de seu modo particular, algo que teria sido um sonho em sua vida. Além disso, sinto entusiasmo pelo fato de o sonho ter se realizado. É um sonho no qual ele baseou muito de seu trabalho. Estar aqui com vocês teria sido a realização.
O movimento Occupy é entusiasmante. Espetacular, sem precedentes; nunca houve nada parecido de que eu possa me lembrar. Se os vínculos e associações que estão sendo estabelecidos aqui, nesses eventos excepcionais, se sustentarem por um longo período – porque as vitórias não vêm rapidamente – isso pode se tornar um momento muito significativo na história norte-americana.
O fato de as manifestações não terem precedentes é muito revelador. Vivemos um período único – não apenas esse momento, mas desde os anos 70. Naquela década começou um grande ponto de virada na história americana. Por séculos, desde que o país começou, existe uma sociedade em desenvolvimento, com altos e baixos. Mas o progresso geral era em direção à riqueza, industrialização e desenvolvimento – mesmo no escuro. Havia, inclusive em tempos muito difíceis, uma constante expectativa de que as coisas continuariam caminhando numa direção que suscitava esperanças.
Eu sou velho o suficiente para lembrar da Grande Depressão. Depois dos primeiros anos, em meados da década de 30, ainda que a situação fosse objetivamente muito mais complicada que hoje, o espírito era muito diferente. Existia um sentimento de que iríamos superar as dificuldades, até entre as pessoas que estavam desempregadas. Vai melhorar. O movimento militante dos trabalhadores estava se organizando. Foi chegando ao ponto das greves sit-down, que são muito assustadoras para o mundo dos negócios. Era possível compreender isso nos jornais de negócios da época. Uma greve sit-down estava a apenas um passo de tomar as fábricas. Além disso, as leis do New Deal estavam começando a surgir, graças a pressão popular. Existia um sentimento de que tiraríamos algo daquilo.
É bem diferente hoje. Agora, existe um sentimento universal de falta de esperança, ou de desespero. Penso que isso é novo na história norte-americana, e tem uma base objetiva. Em 1930, trabalhadores desempregados podiam prever realisticamente que teriam empregos novamente. Hoje – quando o nível de desemprego em fábricas é aproximadamente igual o da Depressão – sabemos que, se as tendências atuais persistirem, os empregos não vão voltar.
A mudança ocorreu nos anos 70, por várias razões. Uma delas, discutida principalmente por Robert Bernard, que estuda história econômica e tem diversos trabalhos sobre o tema, é uma queda dos lucros. Isso, em conjunto com outros fatores, levou a grandes mudanças na economia – invertendo 700 anos de progresso em direção à industrialização e ao desenvolvimento. Embicamos para um processo de desindustrialização e de de-desenvolvimento. A produção industrial prossegue, é claro, mas em outros continentes. Gera muitos lucros, mas não ajuda a força de trabalho. Junto com isso, ocorreu uma mudança significativa na economia: das empresas produtivas, que produzem o que as pessoas precisam, para a manipulação financeira. A financeirização da economia decolou na época.
Antes da década de 70, os bancos eram apenas bancos. Eles faziam o que os bancos devem fazer em uma economia capitalista: tomam capital que não está sendo utilizado – por exemplo, numa conta bancária – e o transferem para um propósito potencialmente útil, como comprar uma casa ou colocar o filho na faculdade. Não existiam crises financeiras. Era um período de enorme crescimento na história norte-americana, ou na história econômica geral. Nas décadas de 50 e 60, vivemos um crescimento sustentado e igualitário. Os mais pobres avançavam tanto quanto os mais ricos. Muitas pessoas alcançaram padrões de vida razoáveis – o que chamavam de “classe media”.
Era real, e a década de 60 acelerou esse processo. O ativismo daquela época, depois de uma década politicamente sombria, estabeleceu conquistas civilizatórias de grande alcance. Os anos 70 chegaram e de repente aconteceram mudanças drásticas na industrialização e transferência da produção para outros países. A importância das instituições financeiras aumentou imensamente. Além disso, nos anos 50 e 60, houve um desenvolvimento do que mais tarde se tornaria uma economia de alta tecnologia. Computadores, internet, a revolução de tecnologia da informação baseou-se principalmente nos anos 50 e 60, e substancialmente no setor estatal. Demorou algumas décadas para que realmente decolasse, mas foi desenvolvida nessa época.
A década de 1970 começou um tipo de círculo vicioso que levou à crescente concentração de riqueza nas mãos do setor financeiro, algo que não beneficia a economia. A concentração de riqueza leva à concentração do poder político — o que produz mudanças na legislação, ampliando e acelerando o círculo. Decisões como as mudanças na tributação, nas regras de governança corporativa e a desregulação foram adotadas pelos dois partidos, em consensos. Em paralelo, houve um aumento muito forte no custo das eleições, que tornou os partidos ainda mais dependentes das corporações.
Alguns anos depois, começou um processo diferente. Os partidos, em sua essência, dissolveram-se. Antes, um parlamentar que desejasse um posto de presidente de uma comissão ou outra posição de responsabilidade no Congresso, esperava alcançá-la por meio de experiência e trabalho. Mais recentemente, começou-se a investir dinheiro no partido, para progredir. Isso tornou todo o sistema mais atrelado ao setor corporativo, dentro do qual as instituições financeiras têm papel crescente. Deu-se uma concentração enorme de riquezas, principalmente em favor do 1% mais rico da população.
Enquanto isso, começou a se abrir, para a maioria, um período de estagnação – ou mesmo declínio. As pessoas mantinham-se com meios bastante artificiais – como empréstimos, com muitas dívidas. Longas jornadas de trabalho para muitos. O sistema político começou a se dissolver. Sempre houve uma diferença entre política pública e vontade da população, mas essa diferença cresceu astronomicamente. Vemos isso claramente, agora.
O maior assunto em Washington, o que concentra atenção de todos, é o déficit. Para o público, não se trata de um problema muito gave – o que está correto. O problema é a falta de emprego, não o déficit. Agora, existe uma comissão de parlamentares para enfrentar o déficit, mas não para resolver a questão do desemprego.
Se observarmos com atenção, veremos que o público tem opiniões claras, mesmo diante do déficit. Segundo as pesquisas, a sociedade apoia fortemente o aumento dos impostos pagos pelos ricos, que foram muito reduzidos durante o período de estagnação. A maioria também é a favor de manter os benefícios sociais limitados existentes. Mas a comissão parlamentar encarregada de reduzir o déficit provavelmente fará o oposto. Ou eles entrarão em acordo, decidindo em sentido contrário ao que a sociedade deseja, ou irão disparar um procedimento legislativo automático que terá os mesmos efeitos. É algo que acontecerá muito em breve. A comissão de déficit irá tomar uma decisão em algumas semanas. Os movimentos Occupy poderiam ser uma base para tentar lutar contra esta punhalada no coração do país.
Não é o caso de entrar nos detalhes, mas o que acontece há trinta anos é um tipo de pesadelo que foi antecipado pelos economistas clássicos. Quem lê A riqueza das nações, percebe que mesmo Adam Smith considerou a possibilidade de comerciantes e industriais na Inglaterra decidirem transferir seus negócios para outros países, investir neles e importar produtos estrangeiros. Eles poderiam lucrar com isso, mas a Inglaterra seria prejudicada. Smith continuou, afirmando que comerciantes e industriais prefeririam operar em seus próprios países, o que por vezes denominou “viés doméstico”. É como se a Inglaterra de então fosse salva da ruína do que hoje chamamos “globalização neoliberal” por uma mão invisível. No clássico A riqueza das nações, esta é a única ocorrência da célebre expressão “mão invisível”.
Outro grande economista clássico, David Ricardo, notou a mesma coisa e torceu para que não acontecesse. Um tipo de esperança sentimental. Não aconteceu por muito tempo, mas está acontecendo agora. Nos últimos trinta anos é exatamente isso que está em processo. Para a população em geral – os 99%, no imaginário do movimento Occupy – a situação está realmente difícil e pode piorar. Pode ser um período de declínio irreversível. Para o 1%, ou ainda o 0,1%, está tudo bem. Estão no topo, mais ricos e mais poderosos que nunca, controlando o sistema político e desconsiderando o público. Se podem, por que não continuar assim? É para isso Adam Smith e David Ricardo alertaram.
Tomemos o Citigroup, que por décadas foi a mais corrupta das corporações financeiras dos Estados Unidos. Ele foi repetidamente resgatado pelos contribuintes: nos primeiros anos do governo Reagan e novamente agora. Não vou me ater à corrupção. Vocês provavelmente sabem, e é espantoso. Alguns anos atrás, eles criaram uma oferta para investidores. Desejavam atrair quem tivesse interesse de colocar dinheiro no que chamaram de “índice plutonomy” [um híbrido de plutocracia e economia (nota da tradução)]. Diziam que o “índice plutonomy” era uma forma de superar os rendimentos do mercado de ações.
E quanto ao resto da sociedade? Nós os deixamos à deriva. Nós não nos importamos realmente, nem precisaremos deles. Eles precisam estar por perto para providenciar um Estado poderoso para nos proteger e para nos resgatar, quando estivermos com problemas. Mas, essencialmente, eles não têm função. Por vezes, são chamados de precariado, pessoas que vivem uma existência precária na periferia da sociedade. Só que não é mais a periferia; está se tornando uma parte substancial da sociedade nos Estados Unidos e também em outros países.
Isso é considerado uma coisa boa. Certa vez, [o então presidente do Banco Central], Alan Greenspan – que, antes da quebra, era “Santo Alan”, aclamado por economistas como um dos grandes economistas de todos os tempos – depôs ao Congresso. Eram os anos do governo Clinton e ele explicava as maravilhas da economia. Disse que muito do sucesso estava baseado no que ele chamou de “crescente insegurança do trabalhador”. Se os trabalhadores estão inseguros, se eles são precariado, não farão demandas, não ganharão salários, não receberão benefícios e nós podemos deixá-los de lado, se não gostarmos deles. Isso é bom para a economia… Era o que Greenspan chamava tecnicamente de economia saudável. Ele foi muito elogiado por isso…
Bem, agora o mundo está realmente se dividindo entre plutonomy e o precariado – novamente, para citar o imaginário do movimento Occupy, o 1% e os 99%. O plutonomy é onde está a ação. Poderia continuar assim, e nesse caso a inversão história que começou em 1970 se tornaria irreversível. É nesse caminho que estamos. Os movimentos Occupy são a primeira grande reação popular que pode evitar isso. Será necessário enfrentar o fato de que essa é uma luta longa e difícil. Vocês não irão vencer amanhã. Vocês precisam continuar e formar estruturas que serão sustentadas em tempos difíceis e então poderão alcançar grandes vitórias. Há muitas coisas que podem ser feitas.
Mencionei antes que, nos anos 30, uma das ações mais efetivas foram as greves sit-down. A razão era muito simples: era o passo imediatamente anterior a tomar a indústria. Durante os anos 70, quando o declínio se instalava, surgiram alguns eventos importantes. Em 1977, a US Steel decidiu fechar uma de suas maiores fábricas: Youngstown, em Ohio. Em vez de simplesmente deixá-la sair, os trabalhadores e a comunidade decidiram unir-se, comprar a fábrica e convertê-la em uma indústria gerida pelos trabalhadores. Não venceram – mas poderiam, com maior apoio popular. Foi uma vitória parcial, porque apesar de terem perdido, incentivaram outras lutas atuais – em Ohio e outros lugares.
Há, hoje, uma profusão – centenas, talvez milhares – de fábricas pequenas ou não tão pequenas que são (total ou parcialmente) de propriedade de trabalhadores. Poderiam ser geridas pelos trabalhadores. Existe base para uma revolução real. Ela pode ganhar terreno. É um processo que se dá aqui mesmo. Em um dos subúrbios de Boston, uma multinacional decidiu fechar uma fábrica produtiva, funcional e rentável –mas não suficientemente rentável, para eles. Os trabalhadores e o sindicato ofereceram-se para comprar e gerir a fábrica. A multinacional decidiu fechá-la – provavelmente, por razões de consciência de classe. Se houvesse apoio popular suficiente, se algo como esse movimento tivesse envolvido as pessoas, os trabalhadores poderiam ter conseguido.
Fatos assim estão ocorrendo, e alguns deles são grandes. Há não muito tempo, durante a crise, Barack Obama encampou a indústria automobilística. Hoje, ela é basicamente propriedade pública. Várias coisas poderiam ter sido feitas. Uma é o que se deu. Recuperá-la e devolvê-la aos proprietários, ou a um proprietário similar, para que siga seu caminho tradicional. A outra possibilidade era o governo entregar as empresas aos trabalhadores; e eles fazerem dela uma instituição de propriedade dos trabalhadores, um grande sistema industrial gerido por trabalhadores. Um sistema que se responsabiliza por boa parte da economia e que produz o que as pessoas precisam. E há muitas coisas de que as pessoas precisam. Todos sabemos, ou deveríamos saber, que os Estados Unidos estão muito atrasados, em termos mundiais, nos transportes de alta velocidade. Isso é muito sério: afeta as vidas das pessoas e a economia.
Tenho uma história pessoal. Fiz palestras na França, há alguns meses, e acabei em Avignon, no sul. De lá, tive que tomar um trem para o aeroporto, em Paris. A viagem demorou duas horas. É a mesma distância de Washington a Boston. É um escândalo. Temos capacidade para um sistema de transportes semelhante ao francês, e uma força de trabalho capacitada. A construção precisaria de algum apoio popular. Produziria mudanças imensas na economia. Só para tornar os fatos ainda mais surreais, informo: enquanto se evitava essa opção, o governo Obama enviou o secretário de Transportes para a Espanha, encarregando-o de negociar a construção de linhas de trem de alta velocidade nos Estados Unidos. Isso poderia ser feito próprio Rust Belt [o Cinturão da Ferrugem, grande concentração de indústria pesada no noroeste dos EUA, hoje decadente], que está sendo fechado. Não há razão econômica para que isso aconteça. Há razões de classe e falta de mobilização política.
Há muitos desenvolvimentos perigosos no cenário internacional. Dois deles são uma espécie de sombra sobre quase tudo o que discutimos. Há, pela primeira vez na história da humanidade, ameaças reais à paz e à sobrevivência das espécies. Uma delas faz parte do cenário desde 1945: é quase um milagre termos escapado das armas nucleares. É uma ameaça que está sendo, hoje, ponderada pelo governo e pelos aliados. Algo tem que ser feito sobre isso, ou viveremos grandes problemas. A outra, é claro, é a catástrofe ambiental. Todos os países do mundo estão falando, mesmo que timidamente, em fazer algo em relação a isso. Os Estados Unidos também estão caminhando, mas no sentido de acelerar a ameaça. Os EUA são hoje o único país que, além de não fazerem nada construtivo a respeito, andam para trás.
O Congresso está agora revertendo a legislação instituída pelo governo de Richard Nixon (Ele foi o último presidente liberal dos Estados Unidos, e isso mostra, literalmente, o que está acontecendo). Os congressistas estão desmontando as medidas limitadas que o governo Nixon tomou para tentar enfrentar a catástrofe ambiental emergente. Este movimento está ligado a uma enorme máquina de propaganda, que pinta o aquecimento global como fraude da esquerda. Por que prestar atenção a esses cientistas?
Estamos realmente regredindo para o período medieval. Não é uma piada. Se isso está acontecendo no país mais poderoso e mais rico na história, então essa crise não será evitada e tudo isso sobre o que estamos falando não irá importar, em uma geração ou duas.
Ao contrário! Tudo está acontecendo agora e algo tem que ser feito logo, e de forma dedicada e continuada. Não será fácil ter sucesso. Haverá barreiras, dificuldades e fracassos no caminho. A menos que o processo que está tomando espaço aqui e ao redor do mundo, a não que vocês continuem a crescer e se tornar uma força social importante no mundo, as chances de um futuro decente não são muito altas.”
(Após a fala, Chomsky responde a três perguntas do público. Uma delas é sobre representação e a possibilidade de convocar uma greve geral. A seguir, sua fala)
Vocês poderão pensar na greve geral como uma ideia possível, quando a população estiver pronta para isso. Não podemos, é óbvio, sentar aqui e decretar uma greve geral. É preciso haver aprovação e vontade de assumir os riscos, por parte de uma larga parcela da população. Isso exige organização, educação e ativismo. Educação não significa dizer às pessoas em quê elas devem acreditar. Significar aprender, também. Há uma frase de Marx: “A tarefa não é compreender o mundo, mas transformá-lo”. Há uma variante que deveria ser considerada: “Se você quer mudar o mundo numa direção qualquer, você precisa tentar compreendê-lo antes”.
Compreendê-lo não significa ouvir uma fala ou ler um livro, embora isso seja útil. A compreensão vem do aprendizado. O aprendizado deriva da participação. Aprende-se com os outros. Aprende-se com as pessoas que estamos tentando organizar. É preciso conquistar experiência e compreensão necessários para tornar possível implementar ideias e táticas.
Há um longo caminho a percorrer. Não acontece num estalar de dedos. Conquista-se, com trabalho longo e dedicado. Penso que, em muitos sentidos, o aspecto mais interessante do movimento Occupy é a construção de associações e laços que estão se multiplicando. Eles precisam ser mantidos e estendidos para uma ampla parcela da população, que ainda não sabe o que está ocorrendo. Se isso se der, então será possível levantar questões sobre tática como esta, que em certo momento serão muito apropriadas.
* Tradução de Daniela Frabasile.
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