segunda-feira, 17 de março de 2014

Venezuela enfrenta "guerra econômica"

Por Luciana Taddeo, de Caracas, no sítio Opera Mundi:

Entre as casas humildes do 23 de Janeiro, comunidade popular de Caracas, trabalhadores erguem durante a manhã moradias no terreno cedido pela dona de uma casa demolida. Em breve, ela e duas outras famílias irão receber residências em melhores condições.

A maioria desses operário largou o emprego anterior e todos trabalham na brigada de construção de moradias e infraestrutura, em um dos projetos da Comuna El Panal 2021, que já construiu mais de uma dezena de moradias, substituiu metros de tubulação de esgotos e atua na construção de áreas esportivas.

“Todo mundo aqui sabe que esse trabalho é para nós mesmos. Fazemos um percurso pelo bairro, vemos em que situação as moradias se encontram e encontramos a maneira de ajudar os que mais precisam. Apresentamos o projeto para instituições e eles nos dão recursos para que nós façamos todo o trabalho aqui”, explicou a Opera Mundi Antonio Zambrano, um dos porta-vozes da comuna, referência no país.

Para os jovens que atuam na brigada, com cerca de 30 integrantes, a iniciativa é uma oportunidade de trabalho. “Chegamos sem experiência e logo poderemos fazer nossas próprias casas sozinhos”, contou Orlando José Sanjuan, que terminou a formação escolar e quer estudar contabilidade. “Pouco a pouco, vamos aprendendo”, complementa seu colega Joscar Subero Isaac Villarruel, também de 20 anos, que termina os estudos e tentará atuar no setor petroquímico.

Segundo Judith Guerra, outra das porta-vozes do projeto, muitos trabalhadores aprenderam o ofício no processo. Alguns haviam abandonado os estudos e começaram a atuar na comunidade. “As pessoas já conhecem o lugar, sabem por onde vai o tubo e não temos que arrebentar tudo para ver por onde passa. E assim se gera fonte de trabalho”, esclareceu. De acordo com ela, esse projeto conta com assessoria de arquitetos e engenheiros de instituições governamentais.

Paralelamente às construções, a Comuna El Panal 2021, constituída por cinco conselhos comunais, tem uma empresa empacotadora de açúcar, uma rádio e promete lançar um sinal na TV a cabo para a comunidade. “Margarita, quem é o dono desta empresa?”, questionou José Lugo, porta-voz da unidade de formação da empresa têxtil da Comuna, que produz milhares de artigos semanais, entre mochilas, moletons e camisetas. “Somos nós, os produtores e a comunidade”, respondeu a costureira.

“Como chama o dono dessa empresa, Zulay?”, pergunta outra trabalhadora. “Zulay”, disse ela, inundando o lugar de risadas, enquanto mede um longo tecido azul, que em breve vai virar mercadoria. “Isso é uma questão de consciência”, explicou Lugo, contando que os salários de cada uma das trabalhadoras da empresa comunal são definidos por elas mesmas.

Segundo ele, inicialmente o Estado investiu no espaço de trabalho e maquinaria. Atualmente, eles têm um fundo de mantimento da empresa, um para os produtores e um de reinvestimento social – dedicado à sociedade. “Já é assim”, responde sobre a independência da empresa em relação a recursos estatais. “Nós pagamos os salários, decidimos o que vamos fazer e a quanto vamos vender”, destacou.

Essência da denominada “Revolução Bolivariana”, iniciada pelo falecido presidente Hugo Chávez, as “Comunas” são uma forma de organização popular por meio do autogoverno. Uma comuna é formada por diversos conselhos comunais, instância que reúne moradores de uma região para debater problemas, necessidades e projetos para a comunidade local.

No ano passado, a pasta responsável por sua consolidação, liderada pelo ministro Reinaldo Iturriza, realizou um censo para determinar localização e atividades dessa e de outras iniciativas coletivas. Ficou demonstrada a existência de mais de 40 mil conselhos comunais em todo o país, 1,4 mil comunas e 28,7 mil movimentos sociais.

“Chávez pensava que era possível um sistema econômico perfeito, com o Estado transferindo os recursos para o poder popular, dentro das comunidades organizadas”, avaliou Lugo, contando que a empresa comunal têxtil já tem dois anos de existência, gerando empregos na comunidade. Com isso, disse, fazemos “produtos que vão diretamente ao povo sem necessidade de terceirização, baixando os custos. Não vamos entregar a uma empresa privada para que isso seja vendido”.

Obstáculos
O avanço das comunas, no entanto, ainda enfrenta problemas. E segundo Iturriza, era motivo de angústia do falecido presidente. Em outubro de 2012, pouco depois da reeleição, Chávez realizou um conselho de ministros que ficou conhecido como “Golpe de Timão”. No discurso, abordou reorientações que deveriam ser aplicadas na gestão iniciada em 1999, e insistiu no lema “Comuna ou Nada”.

“Nicolás [Maduro], te encomendo isso como te encomendaria minha vida: as comunas, o estado social de direito e de justiça”, disse, a seu então vice-presidente. “Todos e todas temos a ver com isso, é parte da alma deste projeto. É para atuar já, senhores ministros e ministras, as comunas”, delineou Chávez.

Maduro foi eleito após a morte de Chávez com uma responsabilidade clara: o enfoque na “cultura comunal”. Dessa forma, 2013 foi um ano de iniciativas destinadas a impulsionar e dar visibilidade às experiências comunais no país, como a realização do censo e encontros de “comuneros” em diferentes ocasiões para a troca de experiências.

Segundo Julio Mota, da Comuna El Tambor, constituída no estado andino de Mérida, o ministério teve, em 2013, uma “abordagem muito mais intensiva” para apoiar estas iniciativas. Em entrevista por telefone, Mota afirmou que muitos conselhos comunais estavam debilitados por causa da baixa participação nas atividades produtivas. Com o maior acompanhamento, no entanto, novas políticas de gestão estão sendo vislumbradas.

Melhoras vieram com os congressos de “comuneiros” feitos no país, nos quais se falou sobre as necessidades gerais das organizações e se debateu a consolidação da economia comunal. Em um destes encontros, mais de cinco mil pessoas puderam negociar seus produtos gerados nas comunas sem a necessidade de intermediários para transporte e comercialização.

Segundo Mota, o foco é na economia comunal, para que essas iniciativas possam ser “um processo muito maior, uma cidade comunal”. Ele contou que, nesses encontros, “pudemos nos conhecer entre produtores e identificar que temos um tremendo potencial produtivo. Mas ainda temos muitas debilidades, como na participação no momento de produzir e no econômico”, continuou, ressaltando que o transporte de carregamentos às principais cidades ainda é uma das principais dificuldades dos produtores.

A comuna El Tambor está há três anos em processo de organização e produz café agroecológico, hortaliças, abono orgânico, entre outros, com a atuação de cerca de 50 produtores. De acordo com Mota, em 2013, um quilo de banana vendido na porta de fazenda custava 1,2 bolívares, enquanto nos mercados era vendido a 15 ou até 20 bolívares.

“Guerra econômica”
A especulação de comerciantes na chamada “guerra econômica” foi um dos fatores que levou Maduro a iniciar no ano passado uma “ofensiva econômica”, com intervenção a empresas que, segundo o governo, aumentavam o valor real dos produtos em até 1200%. Tanto para o ministério como para os “comuneiros”, as comunas são essenciais para combater essas distorções.

Segundo Mota, para esse passo seja dado, é preciso que as comunas possam deixar de usar transportadores e comerciantes intermediários, vendendo matérias primas ou produtos processados, com valor agregado, diretamente ao consumidor. “Estamos tentando fazer essa troca comercial em nível local, regional, com plataformas permanentes, para institucionalizar esses mercados”, diz, explicando que já há experiências em que já se pôde romper com o mecanismo dos mercados centrais das cidades, “que são uma máfia tremenda”.

Segundo ele, no entanto, apesar dos avanços percebidos com o apoio ministerial, ainda há um longo caminho. “O processo da economia comunal ainda é insipiente. Temos vários locais produtivos, mas pouco dessa produção é colocado a serviço do sistema econômico comunal. O primeiro que temos que fazer é garantir para as comunas a mobilização dessas matérias primas, para ir gerando esses mercados em nível regional”, detalhou.

“Nossa comuna vai desde os mil metros do nível do mar até mais de três mil metros, ou seja, temos vários pisos produtivos. Lamentavelmente, ainda lidamos com a perda de terreno do plantio de café para a produção expansiva de gado e temos uma parte alta se vem introduzindo o monocultivo, principalmente da batata, também de maneira intensiva”, lamentou, destacando os desafios que essa forma de organização, idealizada por Chávez, e atualmente em desenvolvimento, ainda terá que superar.

0 comentários: