Por Rogério Tomaz Jr., no blog Conexão Brasília-Maranhão:
Não me refiro ao orgulho ou ao patriotismo expresso na paixão e na defesa incondicional da cultura popular brasileira.
Chamo Ariano Suassuna de o mais brasileiro entre todos os brasileiros porque ninguém jamais reuniu tantas e tão intensas características – mesmo as dissonantes do tipo padrão – comuns à nossa alma, ao conjunto de elementos que formam o nosso espírito.
Ariano tinha a simplicidade e a humildade de um camponês que sabe precisamente a importância da terra e valor do trabalho, mas não precisa fazer alarde de nada na vida.
Ao mesmo tempo em que exibia essa face do matuto, do jeca tatu tão discriminado pelo povo da cidade, Ariano tinha uma erudição cultural à qual raríssimas pessoas puderam se equiparar.
Seu ar prosaico, distraído e relaxado - de nordestino que adora deitar na rede para refletir profundamente sobre a morte da bezerra - escondia a disciplina hercúlea para a pesquisa e a produção literária, assim como o rigor extremo e o alto nível de exigência que encontramos mais comumente em acadêmicos e cientistas, nem sempre em artistas.
De forma semelhante, conjugava tanto a arte do improviso – tão bem empregado nas suas aulas-shows – quanto o laborioso e metódico ofício do ourives literário. O “jeitinho brasileiro” se encontrava com o gênio diligente e cuidadoso.
Como tantos conterrâneos, estampava no rosto o sorriso e a doçura da eterna criança, ao passo em que podia ficar mais enfezado do que siri em lata de querosene quando escutava alguma asneira, especialmente algo que considerasse ofensivo à cultura popular brasileira.
Expressava suas convicções com o vigor de um militante político – e nunca hesitou em assumir seu lado na política – ao tempo em que sabia reconhecer um equívoco (ou um exagero) próprio e se redimir por isso, como ocorreu com Chico Science e o nascente movimento manguebeat, no início dos anos 1990.
Era conhecido como o mais ferrenho e intransigente defensor da cultura brasileira, mas jamais escondeu que suas maiores influências artísticas são autores estrangeiros.
Seu bom humor tipicamente nordestino – que ri da própria desgraça como remédio para a mesma – era amplamente conhecido, mas não negava seus momentos de turrão e ranzinza.
Ostentava com prazer a paixão irracional pelo futebol da qual tantos compatriotas também sofrem.
Carregava a curiosidade aguda em relação a tudo que dizia respeito ao universo da arte, tanto quanto o orgulho bairrista do qual não abria mão “nem pr’um trem”. Costumava dizer que os rappers americanos não chegavam aos pés dos repentistas sertanejos e que o rap não se comparava à embolada.
À parte tudo isso, escreveu magistrais obras que, em outro idioma ou talvez em outro país, teriam virado referências universais, mas jamais se preocupou com a fama efêmera das multidões, embora prezasse imensamente o reconhecimento e o carinho do público.
A criação da maior parte de suas personagens foi inspirada no romanceiro ibérico medieval, mas da contemporaneidade tupiniquim extraía a riqueza essencial dos tipos que povoaram sua lavra.
Ariano, mais do que um Quixote da cultura brasileira, era como o avô que todos gostaríamos de visitar aos domingos, o amigo que gostaríamos de levar ao estádio, o professor que sonhávamos ter na escola, o conselheiro a quem recorreríamos nos momentos de dúvida, o companheiro que ouviria nossas lamúrias no bar, o porteiro do nosso edifício ou o síndico do condomínio, o dono da banca de revistas ou da padaria da esquina, o cronista que leríamos no jornal todos os dias, o apresentador do programa de variedades no fim da noite, o taxista que te atualiza com as notícias e tendências da cidade… ele era tudo isso e muito mais.
Ariano Suassuna foi e é uma síntese do povo que o inspirou. O mais brasileiro entre todos os brasileiros.
***
Numa das quatro ou cinco vezes que nos falamos, sempre rapidamente, no intervalo ou fim de algum evento no qual ele brilhara, lhe contei uma ideia para um futuro livro que ainda pretendo escrever: “Nordestemido povo – contos e causos nordestinos”, expliquei. “Bom título”, comentou. “Siga em frente”, acrescentou. Também disse que ele seria uma fonte obrigatória. Se colocou à disposição. Quase dez anos após esse breve diálogo, em Salvador, se não estou enganado. E hoje descobri que Ariano Suassuna não era imortal.
Não me refiro ao orgulho ou ao patriotismo expresso na paixão e na defesa incondicional da cultura popular brasileira.
Chamo Ariano Suassuna de o mais brasileiro entre todos os brasileiros porque ninguém jamais reuniu tantas e tão intensas características – mesmo as dissonantes do tipo padrão – comuns à nossa alma, ao conjunto de elementos que formam o nosso espírito.
Ariano tinha a simplicidade e a humildade de um camponês que sabe precisamente a importância da terra e valor do trabalho, mas não precisa fazer alarde de nada na vida.
Ao mesmo tempo em que exibia essa face do matuto, do jeca tatu tão discriminado pelo povo da cidade, Ariano tinha uma erudição cultural à qual raríssimas pessoas puderam se equiparar.
Seu ar prosaico, distraído e relaxado - de nordestino que adora deitar na rede para refletir profundamente sobre a morte da bezerra - escondia a disciplina hercúlea para a pesquisa e a produção literária, assim como o rigor extremo e o alto nível de exigência que encontramos mais comumente em acadêmicos e cientistas, nem sempre em artistas.
De forma semelhante, conjugava tanto a arte do improviso – tão bem empregado nas suas aulas-shows – quanto o laborioso e metódico ofício do ourives literário. O “jeitinho brasileiro” se encontrava com o gênio diligente e cuidadoso.
Como tantos conterrâneos, estampava no rosto o sorriso e a doçura da eterna criança, ao passo em que podia ficar mais enfezado do que siri em lata de querosene quando escutava alguma asneira, especialmente algo que considerasse ofensivo à cultura popular brasileira.
Expressava suas convicções com o vigor de um militante político – e nunca hesitou em assumir seu lado na política – ao tempo em que sabia reconhecer um equívoco (ou um exagero) próprio e se redimir por isso, como ocorreu com Chico Science e o nascente movimento manguebeat, no início dos anos 1990.
Era conhecido como o mais ferrenho e intransigente defensor da cultura brasileira, mas jamais escondeu que suas maiores influências artísticas são autores estrangeiros.
Seu bom humor tipicamente nordestino – que ri da própria desgraça como remédio para a mesma – era amplamente conhecido, mas não negava seus momentos de turrão e ranzinza.
Ostentava com prazer a paixão irracional pelo futebol da qual tantos compatriotas também sofrem.
Carregava a curiosidade aguda em relação a tudo que dizia respeito ao universo da arte, tanto quanto o orgulho bairrista do qual não abria mão “nem pr’um trem”. Costumava dizer que os rappers americanos não chegavam aos pés dos repentistas sertanejos e que o rap não se comparava à embolada.
À parte tudo isso, escreveu magistrais obras que, em outro idioma ou talvez em outro país, teriam virado referências universais, mas jamais se preocupou com a fama efêmera das multidões, embora prezasse imensamente o reconhecimento e o carinho do público.
A criação da maior parte de suas personagens foi inspirada no romanceiro ibérico medieval, mas da contemporaneidade tupiniquim extraía a riqueza essencial dos tipos que povoaram sua lavra.
Ariano, mais do que um Quixote da cultura brasileira, era como o avô que todos gostaríamos de visitar aos domingos, o amigo que gostaríamos de levar ao estádio, o professor que sonhávamos ter na escola, o conselheiro a quem recorreríamos nos momentos de dúvida, o companheiro que ouviria nossas lamúrias no bar, o porteiro do nosso edifício ou o síndico do condomínio, o dono da banca de revistas ou da padaria da esquina, o cronista que leríamos no jornal todos os dias, o apresentador do programa de variedades no fim da noite, o taxista que te atualiza com as notícias e tendências da cidade… ele era tudo isso e muito mais.
Ariano Suassuna foi e é uma síntese do povo que o inspirou. O mais brasileiro entre todos os brasileiros.
***
Numa das quatro ou cinco vezes que nos falamos, sempre rapidamente, no intervalo ou fim de algum evento no qual ele brilhara, lhe contei uma ideia para um futuro livro que ainda pretendo escrever: “Nordestemido povo – contos e causos nordestinos”, expliquei. “Bom título”, comentou. “Siga em frente”, acrescentou. Também disse que ele seria uma fonte obrigatória. Se colocou à disposição. Quase dez anos após esse breve diálogo, em Salvador, se não estou enganado. E hoje descobri que Ariano Suassuna não era imortal.
1 comentários:
Nuca gostei tanto de ouvir alguém como Ariano Suassuna. Ouvir e ler. Ele não é imortal, mas é imorrível!Viverá sempre!
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