Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Inspiração da Operação Lava Jato, como se deduz pela leitura de um artigo de 2004 redigido pelo juiz Sérgio Moro, a Mãos Limpas italiana produziu 12 suicídios, entre milhares de empresários, políticos e operadores presos e denunciados por corrupção. No caso mais conhecido, o deputado socialista Sergio Moroni matou-se com um tiro na boca aos 45 anos, na casa onde residia em companhia da mulher e da filha. Antes da tragédia, Moroni enviou uma carta ao presidente da Assembleia Nacional, onde denunciou: “Não creio que nosso país irá construir o futuro que merece, cultivando um clima de progrom contra a classe política”.
Preso em companhia de Antônio Palocci na Lava Jato, ambos acusados de corrupção e lavagem de dinheiro, o sociólogo Branislav Kontic tentou o suicídio no fim de semana retrasado, um dia depois que o juiz Sérgio Moro agravou sua condição carcerária. Moro transformou a prisão temporária – com prazo máximo de cinco dias renováveis por mais 5 – em prisão provisória, que pode prolongar-se indefinidamente, mesmo sem culpa formada. Já atingiu o prazo de um ano e meio no caso do empresário Marcelo Odebrecht, da empreiteira do mesmo sobrenome.
Socorrido às pressas depois de ingerir uma dose cavalar de 40 comprimidos de um anti-depressivo tomado com receita médica, o cartão do plano de saúde lhe permitiu ser internado num hospital privado da capital paranaense.
Embora tenha sido apresentado nos jornais como sócio da empresa de Antônio Palocci, Brani, como é conhecido desde os tempos de estudante, era empregado com registro em carteira, salário mensal pouco superior a 17 000 reais brutos. (A quebra das contas bancárias revelou um saldo de R$ 1500, ou mil e quinhentos reais). Tanto a representação policial que motivou a prisão, como o despacho de Sérgio Moro, não economizam palavras para descrever a atuação de Brani junto a Palocci como um assessor ocupado em serviços típicos de um auxiliar próximo, mas subalterno. Não faltam e-mails e mesmo menções a seu nome. Ele recebe pedidos para marcar encontros, transmite recados, recebe e reenvia mensagens eletrônicas. Em nenhum momento, contudo, é descrito como um personagem que é ouvido nas tomadas de decisão e conversas de fundo. Não comparece a reuniões importantes nem pedem sua opinião a respeito de coisa alguma.
Enquanto a Polícia luta para demonstrar que Palocci é o “Italiano”, personagem essencial nas tratativas da Odebrecht com os governos Lula e Dilma, Brani aparece nos documentos com o apelido que não permite confusões. É um ponto a seu favor.
Os executivos da empreiteira, interessados em proteger e esconder aliados dentro de vários governos – fosse Lula, Dilma, mas também Serra e Alckmin, como se confirma pela representação da Polícia Federal – não acharam necessário esconder quem era Brani. A explicação lógica é que não representava risco nem ameaça. Se havia uma quadrilha em ação, uma organização criminosa, como sustenta a Lava Jato, que acusa Brani de corrupção e lavagem de dinheiro, o uso de seu nome verdadeiro pelo patrocinador do esquema sugere que não recebia o tratamento de quem estava dentro dela.
Uma dúvida – é isso mesmo, dúvida – que os documentos trazem contra ele diz respeito aos computadores encontrados no escritório de Palocci. Na operação de busca e apreensão, os policiais encontraram monitores e teclados mas não encontraram as GPUs. Brani explicou no depoimento que os equipamentos anteriores, antigos, foram substituídos por laptops. A polícia desconfia. Não acredita na história. Mas não tem indícios para provar outra tese.
Outro ponto envolve o Instituto Lula, uma investigação que até agora é um tiro n’água, pois se baseia na denúncia de que a Odebrecht iria comprar uma imensa área para Lula erguer a fundação que leva seu nome. O problema é que até agora não se sabe sequer se o negócio se realizou. A Polícia encontrou e-mails de Marcelo Odebrecht recebidos por Brani que tratavam do assunto. Sempre na posição de quem exerce funções de despacho e não é o destino final nem intermediário a ser consultado. As mensagens são de setembro de 2010. Perguntado sobre o assunto no interrogatório em Curitiba, Brani disse, seis anos depois, que não se recordava de uma mensagem com este conteúdo. A Polícia insistiu, com uma pergunta especulativa. Quis saber se o interrogado estava alegando falha de memória. Brani fechou a porta e respondeu que não. Conforme o despacho judicial, ressaltou “que caso fosse esse o assunto tratado nos documentos, o declarante tem certeza de que se recordaria”.
No despacho que transformou a prisão temporária em preventiva, na véspera da tentativa de suicídio, Sérgio Moro definiu a alegação de Brani “pouco plausível” e concluiu: “pelo menos em cognição sumária, não aparenta haver consistência nas negativas genéricas”.
No despacho, Moro permite-se uma avaliação sobre a democracia brasileira. Diz que vivemos numa “democracia vendida”.
Em 1975, quando eu e Brani nos tornamos amigos, nos corredores que ligavam os cursos de Ciências Sociais e Filosofia na USP, o sociólogo Emile Durkhein era um autor obrigatório nos cursos de Sociologia, mas inteiramente fora de moda. Um dos pais do funcionalismo, Durkhein foi um pensador preocupado em impedir o desmoronamento das sociedades modernas.
Seu pesadelo ideológico era a Comuna de Paris, aquele processo revolucionário que colocou a capital francesa de pernas para o ar, sendo esmagado por tropas estrangeiras e uma elite subjugada. Numa obra clássica, O Suicídio, Durkhein se recusa a aceitar a noção de que a morte voluntária de uma pessoa é um fenômeno individual, que pode ser explicado exclusivamente por características pessoais ou psicológicas. Tampouco poderia servir como julgamento de caráter, pelo qual a fraqueza moral de uma pessoa poderia explicar a decisão de matar-se, quem sabe pelo medo de enfrentar suas responsabilidades ou pagar por erros eventuais.
De seu ponto de vista, o suicídio é sempre uma atitude social. Pode ser “narcisista”, quando reflete a atitude de quem se julga bom demais para enfrentar carências e dificuldades do mundo. Pode ser um “protesto”, cujo exemplo mais conhecido envolve o tiro no peito de Getúlio Vargas, que impediu um golpe de Estado em agosto de 1954. Também diz respeito a monges budistas que, na década de 1960, incendiavam as vestes para denunciar a guerra do Vietnã. Ou pode ser uma expressão da “anomalia social”, que ocorre em situações em que a vida social torna-se um caos, e a ordem não pode ser mantida com base nas regras e valores que a constituíram.
Em qualquer caso, a lição a ser apreendida é que o suicídio – e as tentativas que podem levar ou não a um desfecho trágico e irreparável – envolvem sempre uma atitude social, e contém uma mensagem que não pode ser desprezada.
“Espero contribuir para uma reflexão mais justa,” escreveu o italiano Sergio Moroni, pouco antes de puxar o gatilho, denunciando “o longo véu de hipocrisia que tem acobertado por longos anos o modo de vida dos partidos e dos sistemas de financiamento de campanha”.
Fora os ministros e aliados de Michel Temer que trabalharam noite e dia para impedir investigações da Lava Jato, chegando a dar um golpe de Estado para atingir seus objetivos, conheço poucos brasileiros que assumem abertamente sua oposição às investigações contra corrupção. Todos sabem que ela representa um atraso para o país, corrói a democracia e estimula a desigualdade, o privilégio, a injustiça.
A luta contra a corrupção, contudo, não pode ser uma ameaça à liberdade. Não pode basear-se em atos que questionam os direitos fundamentais do regime democrático, até porque não se conhece regime mais corrupto do que o de uma ditadura. Num regime onde até informações verdadeiras são corrompidas pela censura, imagine o que acontece com os negócios de Estado, vamos combinar.
A investigação deve prosseguir, enquanto houverem indícios. O absurdo é manter uma pessoa presa, sem condenação, numa prática que,mesmo aceita em situações excepcionais, juristas respeitados denunciam como forma de tortura, produzindo dores emocionais e traumas profundos, como sabe toda pessoa com conhecimento rudimentar de psicologia.
A prisão é um abuso, a negação de um princípio fundamental, que é a presunção da inocência, prevista pela Constituição.
O ponto a registrar é simples. Num país onde a liberdade é o valor fundamental, e sua supressão é uma expressão de anomia, os 40 comprimidos ingeridos por Branislav Kontic, o Brani, tiveram a utilidade de mostrar um estado de desmanche do Estado de Democrático de Direito construído no país. O risco de uma tragédia ajuda a lembrar que a vida humana segue o valor essencial de uma sociedade saudável.
Preso em companhia de Antônio Palocci na Lava Jato, ambos acusados de corrupção e lavagem de dinheiro, o sociólogo Branislav Kontic tentou o suicídio no fim de semana retrasado, um dia depois que o juiz Sérgio Moro agravou sua condição carcerária. Moro transformou a prisão temporária – com prazo máximo de cinco dias renováveis por mais 5 – em prisão provisória, que pode prolongar-se indefinidamente, mesmo sem culpa formada. Já atingiu o prazo de um ano e meio no caso do empresário Marcelo Odebrecht, da empreiteira do mesmo sobrenome.
Socorrido às pressas depois de ingerir uma dose cavalar de 40 comprimidos de um anti-depressivo tomado com receita médica, o cartão do plano de saúde lhe permitiu ser internado num hospital privado da capital paranaense.
Embora tenha sido apresentado nos jornais como sócio da empresa de Antônio Palocci, Brani, como é conhecido desde os tempos de estudante, era empregado com registro em carteira, salário mensal pouco superior a 17 000 reais brutos. (A quebra das contas bancárias revelou um saldo de R$ 1500, ou mil e quinhentos reais). Tanto a representação policial que motivou a prisão, como o despacho de Sérgio Moro, não economizam palavras para descrever a atuação de Brani junto a Palocci como um assessor ocupado em serviços típicos de um auxiliar próximo, mas subalterno. Não faltam e-mails e mesmo menções a seu nome. Ele recebe pedidos para marcar encontros, transmite recados, recebe e reenvia mensagens eletrônicas. Em nenhum momento, contudo, é descrito como um personagem que é ouvido nas tomadas de decisão e conversas de fundo. Não comparece a reuniões importantes nem pedem sua opinião a respeito de coisa alguma.
Enquanto a Polícia luta para demonstrar que Palocci é o “Italiano”, personagem essencial nas tratativas da Odebrecht com os governos Lula e Dilma, Brani aparece nos documentos com o apelido que não permite confusões. É um ponto a seu favor.
Os executivos da empreiteira, interessados em proteger e esconder aliados dentro de vários governos – fosse Lula, Dilma, mas também Serra e Alckmin, como se confirma pela representação da Polícia Federal – não acharam necessário esconder quem era Brani. A explicação lógica é que não representava risco nem ameaça. Se havia uma quadrilha em ação, uma organização criminosa, como sustenta a Lava Jato, que acusa Brani de corrupção e lavagem de dinheiro, o uso de seu nome verdadeiro pelo patrocinador do esquema sugere que não recebia o tratamento de quem estava dentro dela.
Uma dúvida – é isso mesmo, dúvida – que os documentos trazem contra ele diz respeito aos computadores encontrados no escritório de Palocci. Na operação de busca e apreensão, os policiais encontraram monitores e teclados mas não encontraram as GPUs. Brani explicou no depoimento que os equipamentos anteriores, antigos, foram substituídos por laptops. A polícia desconfia. Não acredita na história. Mas não tem indícios para provar outra tese.
Outro ponto envolve o Instituto Lula, uma investigação que até agora é um tiro n’água, pois se baseia na denúncia de que a Odebrecht iria comprar uma imensa área para Lula erguer a fundação que leva seu nome. O problema é que até agora não se sabe sequer se o negócio se realizou. A Polícia encontrou e-mails de Marcelo Odebrecht recebidos por Brani que tratavam do assunto. Sempre na posição de quem exerce funções de despacho e não é o destino final nem intermediário a ser consultado. As mensagens são de setembro de 2010. Perguntado sobre o assunto no interrogatório em Curitiba, Brani disse, seis anos depois, que não se recordava de uma mensagem com este conteúdo. A Polícia insistiu, com uma pergunta especulativa. Quis saber se o interrogado estava alegando falha de memória. Brani fechou a porta e respondeu que não. Conforme o despacho judicial, ressaltou “que caso fosse esse o assunto tratado nos documentos, o declarante tem certeza de que se recordaria”.
No despacho que transformou a prisão temporária em preventiva, na véspera da tentativa de suicídio, Sérgio Moro definiu a alegação de Brani “pouco plausível” e concluiu: “pelo menos em cognição sumária, não aparenta haver consistência nas negativas genéricas”.
No despacho, Moro permite-se uma avaliação sobre a democracia brasileira. Diz que vivemos numa “democracia vendida”.
Em 1975, quando eu e Brani nos tornamos amigos, nos corredores que ligavam os cursos de Ciências Sociais e Filosofia na USP, o sociólogo Emile Durkhein era um autor obrigatório nos cursos de Sociologia, mas inteiramente fora de moda. Um dos pais do funcionalismo, Durkhein foi um pensador preocupado em impedir o desmoronamento das sociedades modernas.
Seu pesadelo ideológico era a Comuna de Paris, aquele processo revolucionário que colocou a capital francesa de pernas para o ar, sendo esmagado por tropas estrangeiras e uma elite subjugada. Numa obra clássica, O Suicídio, Durkhein se recusa a aceitar a noção de que a morte voluntária de uma pessoa é um fenômeno individual, que pode ser explicado exclusivamente por características pessoais ou psicológicas. Tampouco poderia servir como julgamento de caráter, pelo qual a fraqueza moral de uma pessoa poderia explicar a decisão de matar-se, quem sabe pelo medo de enfrentar suas responsabilidades ou pagar por erros eventuais.
De seu ponto de vista, o suicídio é sempre uma atitude social. Pode ser “narcisista”, quando reflete a atitude de quem se julga bom demais para enfrentar carências e dificuldades do mundo. Pode ser um “protesto”, cujo exemplo mais conhecido envolve o tiro no peito de Getúlio Vargas, que impediu um golpe de Estado em agosto de 1954. Também diz respeito a monges budistas que, na década de 1960, incendiavam as vestes para denunciar a guerra do Vietnã. Ou pode ser uma expressão da “anomalia social”, que ocorre em situações em que a vida social torna-se um caos, e a ordem não pode ser mantida com base nas regras e valores que a constituíram.
Em qualquer caso, a lição a ser apreendida é que o suicídio – e as tentativas que podem levar ou não a um desfecho trágico e irreparável – envolvem sempre uma atitude social, e contém uma mensagem que não pode ser desprezada.
“Espero contribuir para uma reflexão mais justa,” escreveu o italiano Sergio Moroni, pouco antes de puxar o gatilho, denunciando “o longo véu de hipocrisia que tem acobertado por longos anos o modo de vida dos partidos e dos sistemas de financiamento de campanha”.
Fora os ministros e aliados de Michel Temer que trabalharam noite e dia para impedir investigações da Lava Jato, chegando a dar um golpe de Estado para atingir seus objetivos, conheço poucos brasileiros que assumem abertamente sua oposição às investigações contra corrupção. Todos sabem que ela representa um atraso para o país, corrói a democracia e estimula a desigualdade, o privilégio, a injustiça.
A luta contra a corrupção, contudo, não pode ser uma ameaça à liberdade. Não pode basear-se em atos que questionam os direitos fundamentais do regime democrático, até porque não se conhece regime mais corrupto do que o de uma ditadura. Num regime onde até informações verdadeiras são corrompidas pela censura, imagine o que acontece com os negócios de Estado, vamos combinar.
A investigação deve prosseguir, enquanto houverem indícios. O absurdo é manter uma pessoa presa, sem condenação, numa prática que,mesmo aceita em situações excepcionais, juristas respeitados denunciam como forma de tortura, produzindo dores emocionais e traumas profundos, como sabe toda pessoa com conhecimento rudimentar de psicologia.
A prisão é um abuso, a negação de um princípio fundamental, que é a presunção da inocência, prevista pela Constituição.
O ponto a registrar é simples. Num país onde a liberdade é o valor fundamental, e sua supressão é uma expressão de anomia, os 40 comprimidos ingeridos por Branislav Kontic, o Brani, tiveram a utilidade de mostrar um estado de desmanche do Estado de Democrático de Direito construído no país. O risco de uma tragédia ajuda a lembrar que a vida humana segue o valor essencial de uma sociedade saudável.
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