Foto: Ricardo Stuckert |
Numa situação que se pudesse chamar de normal, num país no qual os meios de comunicação se preocupassem com as questões que interessam a todas as pessoas, qualquer que fosse a preferencia política, renda mensal ou cor da pele, uma parcela ponderável de brasileiros estaria fazendo um balanço da vitoriosa caravana de Lula pelo Nordeste e preparando os passos para a etapa seguinte, possivelmente em Minas Gerais. A razão é elementar.
Comprovado que o colapso das instituições atingiu o nível da demência, apenas a partir de iniciativas dessa natureza, que traduzem um esforço para ir às fontes da vontade popular, em contato direto com o eleitor, que se prepara uma saída democrática, lúcida, para crise. O resto é desvio de atenção e perda de energias, para não falar em coisa pior.
Ninguém vai negar o impacto da delação sem prova de Antônio Palocci. Da Zorra Total na Lava Jato depois que se revelou que Joesley Batista capturou o Ministério Público para fazer o trabalho de proteção a família e aos amigos. Ou das malas de R$ 51 milhões de Geddel.
Mas aqui estamos falando de episódios que ocorrem entre as paredes fechadas, já irrespiráveis, no circuito da crise. Contribuem para elevar a temperatura política, ampliar a desconfiança do povo e ampliar o impasse estrutural em que o país se encontra desde o golpe que derrubou Dilma. Estes movimentos não têm capacidade de oferecer uma porta de saída para a recuperação do país. Nesta paisagem, com estes atores, o que se produz é o enredo do golpe dentro do golpe, com a exclusão do povo das decisões fundamentais.
Estamos falando de cenas que a população não dirige, sequer controla, onde se apresenta de mãos amarradas, sem rosto e sem identidade. A depender de quem controla o cronometro político que aciona cada personagem, é assim que a sucessão presidencial irá se processar: a partir de fatos consumados que a maioria dos brasileiros deve receber e se submeter, inclusive o veto jurídico a Lula.
É preciso abrir uma cortina, apontar o que está por trás do espetáculo, denunciar quem movimenta os marionetes.
Trata-se de mobilizar quem tem força para traçar o próprio caminho. Esta possibilidade foi aberta pela caravana. Atendendo a um chamado para ir ao encontro de Lula, centenas de milhares de pessoas ocuparam praças, ruas e mesmo estradas de 9 estados brasileiros para gritar seu protesto e afirmar uma esperança na defesa de seus direitos. Dez meses depois de submeter o Partido dos Trabalhadores à mais deprimente derrota de sua história, em novembro de 2016, a população mostrou outra cara.
Nesse mundo pé no chão, onde o prefeito é muitas vezes um simples vizinho e os vereadores, pessoas que podem ser avistadas no bar onde todos dividem o café com leite pela manhã e a pinga à noite, beneficiários do furacão anti-PT correram atrás do prejuízo depois que caíram as fichas de Temer-Meirelles e o vendaval mudou de direção.
Forçados por eleitores inconformados e furiosos, marcaram atos por conta própria, criando a exótica situação de um povo que vai atrás de Lula para dar um abraço - em vez de jogar tomates, ovos ou gritar palavrões, como tem sido mais comum em 99% dos colegas de profissão.
Lembrando a fábula do sertão sobre uma galinha que aprendeu a chocar ovos de patos e marrecos e acabou tendo de aprender a nadar para não perder os novos filhos, o governador Wellington Dias afirma ao 247 que "mesmo prefeitos conservadores já aprenderam que devem mudar para sobreviver. E isso trabalha pelo Lula."
Vale a pena ouvir algumas vozes que contam essa história. Há quem enxergue um componente religioso, quase místico, nesse apego popular ao presidente Lula. A devoção é mesmo grande, mas parece traduzir uma visão política em estado puro.
"Se ele roubou ou não eu não sei," me disse Helena Luz, aposentada, 74 anos, tomando o sol da manhã no Patanal, bairro de Picos, 76 000 habitantes no interior do Piauí. "Mas aqui não fez falta. Antes, as casas do bairro eram cobertas com compensado de madeira. Agora, todas têm telha."
Declarando-se "fã do velho", expressão que lembra todos os 71 anos de Lula, o servente Paschoal Antônio dos Santos passou duas décadas e meia numa rota imigratória São Paulo-Piauí. Quando a economia do Sul aquecia, aparecia por lá. Quando piorava, retornava ao Estado natal, onde a família tem umas terras mas nunca teve recursos para a lavoura. Após quatro idas e voltas, fixou-se no Piauí há dez anos. Foi uma ideia acertada. Com um empréstimo no banco regional, estatal, ("pagando bem devagarinho") conseguiu plantar 800 pés de caju. "Agradeço a Deus e a ele," diz, referindo-se a Lula. Da vida em São Paulo, onde chegou a assistir o renascimento as lutas sindicais na década de 1970, guarda uma mágoa. Foi servente em grandes empresas, tinha um salário que era baixo "mas matava a fome" mas nunca teve a chance de progredir. "Eu queria virar soldador, mas as empresas não ensinam nada. Só contratam quem já chega sabendo", diz, lamentando não estar na idade certa quando os cursos técnicos explodiram.
Estes são os brasileiros que as caravanas podem colocar de pé.
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