Em Charlottesville, Virginia, em 12 de agosto, soou o apito da panela de pressão. Bandos raivosos de racistas, xenófobos, fundamentalistas evangélicos e outros que tais, todos brancos, todos armados, alguns trajando uniformes de combate, proclamavam sua orgulhosa adesão aos delírios de Adolf, aos métodos da KKK, aos lemas alucinados anunciados por Donald Trump durante sua campanha à presidência dos Estados Unidos, notadamente o “America first”. Eles fazem parte do movimento Unir a Direita, que convocou a manifestação contra a remoção de uma estátua, erguida numa praça central da cidade, em homenagem ao general Robert Lee, comandante das forças dos estados confederados (favoráveis à manutenção do trabalho escravo) durante a Guerra de Secessão (1861-65). A manifestação, que deixou três mortos e dezenas de feridos, representou um divisor de águas na história contemporânea do país.
Não que seja novidade a extrema-direita vomitar a sua bile em praça pública. Ao contrário. A história estadunidense é marcada pela violência racista, e não apenas contra os negros. A doutrina sobre a qual se fundamenta a proibição ao uso de álcool e drogas, por exemplo, está estreitamente vinculada aos wasps (sigla, em inglês, de protestantes anglo-saxões brancos) que, horrorizados face à “invasão” de seu país por hordas bárbaras (imigrantes chineses que traziam o ópio, católicos e irlandeses regados a uísque, negros e hispânicos fumadores de maconha e outros bichos mais), expressavam a necessidade de disciplinar os costumes como forma de controle social. Avós dos apopléticos de Charlottesville, os wasps eram (e são) os arautos da ideologia do “destino manifesto”, segundo a qual os Estados Unidos têm a vocação de ser a primeira entre as nações, desde que se mantenha fiel aos fundamentos da bíblia (é dessa tradição, aliás, que nasceu a expressão “fundamentalismo”, equivocadamente associada ao Islã por “especialistas” e sabichões da mídia de plantão).
A novidade: o apito da panela de pressão reside no fato de que, pela primeira vez, a tropa de choque do nazismo está diretamente associada aos bandos instalados na Casa Branca, e mais especificamente ainda, ao próprio presidente. Até às vésperas dos acontecimentos em Charlottesville, um dos principais assessores de Trump era um simpático sujeito de nome Steve Bannon, fundador da rede de notícias Breitbart News, orientada por uma visão racista, xenofóbica, ultranacionalista, islamofóbica, antissemita e sexista. O pai de Trump era simpatizante da KKK (e, ao que parece, um de seus financiadores), e o principal líder da organização em atividade, David Duke, um dos principais agitadores de Charlottesville, cobrou do presidente o apoio à manifestação, como gesto de reciprocidade por sua adesão à campanha presidencial. Trump respondeu à altura: sem ter coragem, ainda, de endossar explicitamente os racistas, responsabilizou “os dois lados” pela violência (sic), referindo-se à contramanifestação pacífica e desarmada, convocada por grupos de defesa dos direitos humanos e representantes de minorias.
Não contente com isso, e como que para mostrar de que lado os ventos sopram em Washington, em 25 de agosto, Trump anunciou sua decisão de perdoar Joe Arpaio, que exerceu o cargo de xerife do condado de Maricopa (Arizona) durante 24 anos. O perdão foi uma medida sem precedentes na história dos Estados Unidos, por várias razões. O xerife havia sido condenado, em julho, por ter sistematicamente mantido práticas racistas que afrontavam as leis federais, incluindo a detenção de supostos imigrantes hispânicos baseando-se, simplesmente, em sua aparência (o que é expressamente proibido). Arpaio se notabilizou por suas “cidades de tenda”, cabanas erguidas no meio do deserto para onde eram conduzidos os prisioneiros, que sofriam os efeitos da variação extrema de temperatura (de mais de 50 graus durante o dia para algo perto do zero à noite), recebendo apenas duas refeições por dia, e sendo os homens obrigados a usar cuecas cor-de-rosa. É a primeira vez que um criminoso com esse perfil obtém o perdão presidencial. Não se trata de um simples caso de corrupção, golpe, tráfico de drogas ou de banditismo comum. Trata-se de anistiar uma prática que afronta princípios basilares da constituição do país. Além do mais, Arpaio nem chegou a cumprir um único dia de pena (outro fato inédito), e Trump sequer ouviu os pareceres de seus assessores jurídicos ou dos representantes do ministério da Justiça.
Essas medidas são completamente coerentes com a decisão, anunciada por Trump, e finalmente acatada pela Suprema Corte, de proibir a entrada, nos Estados Unidos, de imigrantes oriundos de sete países islâmicos cujos governos são suspeitos de apoiar o terrorismo. A islamofobia — a condenação do “outro” absoluto — é o pano de fundo sobre o qual se desenvolvem todos os demais movimentos racistas no país. Está aberta uma imensa avenida para grandes enfrentamentos, os quais darão livre curso às tensões raciais latentes que começaram a ganhar maior visibilidade após as duas eleições de Barack Hussein Obama (um preto com nome islâmico) à Casa Branca. Os enfrentamentos acontecerão. Charlottesville foi só o primeiro ensaio.
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