Por André Pasti e Iago Vernek, na revista CartaCapital:
As últimas semanas do departamento jurídico do principal conglomerado de comunicação brasileiro, o grupo O Globo, não devem ter sido das mais fáceis. Primeiro, o afastamento de William Waack, âncora de um dos principais jornais da emissora, devido ao vazamento de vídeos que mostram o jornalista tendo atitudes racistas. Agora, os dirigentes do grupo Globo viram a acusação de que a empresa pagou propina para adquirir direitos de transmissão de futebol virar manchete em jornais do mundo todo.
As últimas semanas do departamento jurídico do principal conglomerado de comunicação brasileiro, o grupo O Globo, não devem ter sido das mais fáceis. Primeiro, o afastamento de William Waack, âncora de um dos principais jornais da emissora, devido ao vazamento de vídeos que mostram o jornalista tendo atitudes racistas. Agora, os dirigentes do grupo Globo viram a acusação de que a empresa pagou propina para adquirir direitos de transmissão de futebol virar manchete em jornais do mundo todo.
O grupo foi acusado por Alejandro Burzaco, ex-executivo da empresa Torneos y Competencias (TyC), no escândalo de corrupção da FIFA em investigação nos Estados Unidos. Além da Globo, outros gigantes da comunicação como a estadunidense Fox e a mexicana Televisa foram citados em suas denúncias. Burzaco só poupou o grupo Clarín, sócio da TyC, nessas delações.
A notícia parece ter atingido a Globo, que negou tudo e apresentou uma defesa através de comunicado oficial, relatado por 6 minutos em pleno Jornal Nacional, além de cobertura diária do caso. O irônico é que a empresa tem colocado em pauta, de forma seletiva e hipócrita, a “corrupção” como problema central do Brasil e assumido delações como provas de envolvimento em corrupção.
Mas, para além da hipocrisia do grupo, o caso traz pistas sobre a capacidade de a Globo intervir politicamente nos rumos do futebol. Entender o papel do monopólio da Globo e dos grandes conglomerados envolvidos nesse escândalo no funcionamento do nosso futebol é fundamental para pensar outras formas de organizar o esporte e sua relação com a mídia.
Os “rolos” no negócio midiático do futebol
O esquema de propinas que Burzaco afirma existir seria a ponta do iceberg de irregularidades e pactos políticos que sustentaram o poder das empresas de mídia no futebol.
Os direitos de transmissão de futebol correspondentes aos torneios nacionais e à seleção brasileira são controlados pela CBF. Há trinta anos a Globo vence a concorrência e detém os direitos televisivos do campeonato brasileiro, apesar das constantes ofensivas das outras redes de televisão.
O negócio da transmissão de futebol é muito lucrativo: apenas as receitas publicitárias da empresa com a transmissão do Campeonato Brasileiro de 2017 foram da ordem de 1,8 bilhão de reais, enquanto o repasse anual aos clubes pelo direito de transmissão é de 1,3 bilhão. Esse repasse é uma das principais formas de financiamento dos clubes. Ele reproduz e amplia as desigualdades no futebol nacional: mais da metade do montante total foi distribuída aos “quatro grandes” do Rio de Janeiro e de São Paulo, sendo que Flamengo e Corinthians obtiveram 170 milhões de reais cada.
Nos jogos da seleção brasileira, a Globo mantém o monopólio de exibição há mais de duas décadas. Para se ter uma ideia da vantagem desse monopólio, os ganhos da empresa no ano de 2014, com a Copa do Mundo, subiram 8% em publicidade, fechando um faturamento líquido anual de R$ 12,4 bilhões. Globo e CBF já firmaram um novo acordo de transmissão exclusiva dos jogos da seleção até 2022, em TV aberta, fechada e pay-per-view.
O controle do grupo Globo das transmissões do futebol nacional está sendo investigado pelo órgão brasileiro anti-monopólio, o Cade. Outros grupos de mídia acusam diversos problemas com o modelo atual dos direitos de transmissão, que privilegia a Globo.
Parte dos privilégios da Globo são explicados pela ausência de uma regulação que impeça os monopólios da mídia no país. Essa lacuna possibilitou à Globo o controle da propriedade cruzada de meios de comunicação, de vários tipos de mídia: o grupo é dono da principal rede da TV aberta, de mais de 30 canais na TV paga (incluindo os canais SporTV), de duas das principais redes de rádio nacionais, jornais, revistas e dezenas de outros veículos de mídia, como mostra o Monitoramento da Propriedade da Mídia.
Os vínculos do grupo com o escândalo são muitos: além da proximidade da Globo com as federações estaduais e a CBF - envolvida de forma inegável nos escândalos de corrupção da FIFA -, o grupo também garantiu muitos dos acordos de transmissão por parcerias com cartolas dos clubes, alguns deles ocupando cargos políticos. A empresa Traffic, também denunciada no escândalo da FIFA, é de um sócio do grupo, dono da afiliada da rede Globo TV TEM, da região de Sorocaba (SP).
A situação dos direitos de transmissão e as acusações de corrupção por parte de grupos de comunicação, instituições nacionais e supranacionais do futebol, expõem uma estrutura política corrompida, um mercado de mídia concentrado e um tratamento do futebol e da comunicação apenas como mercadorias. Quem perde com isso é o torcedor e o futebol em geral.
Prejuízos vão muito além das propinas
O que está vindo à tona sobre o futebol e a mídia revela prejuízos maiores do que possíveis propinas. A monopolização da transmissão, a ausência de uma regulação que defenda o interesse público e a falta de participação da sociedade e dos diversos agentes envolvidos nas decisões vêm trazendo inúmeros problemas.
Como já apontamos aqui, há estados brasileiros que não assistem na televisão seus campeonatos estaduais, mas o do Rio de Janeiro. Além de invisibilizar o futebol regional, essa situação inviabiliza financeiramente os clubes dessas regiões. A concentração geográfica da veiculação de conteúdos faz com que os clubes do sudeste e sul, além de receberem as maiores cotas televisivas, tenham maior tempo de exposição. Assim, eles conseguem maiores receitas de patrocínio e renda. Pior para os clubes e jornais regionais, que se veem cada vez mais enfraquecidos em um modelo que amplia as desigualdades.
A Globo, em parceria com os cartolas e as federações, estabelece o calendário do esporte e os horários dos jogos. Ambos são duramente criticados. Jogadores e profissionais ligados ao futebol criticam o calendário, absurdamente extenso, que obriga jogadores e outros profissionais a uma rotina exaustiva de trabalho.
Já o horário é alvo de campanhas como “Jogo 10 da Noite, NÃO!” (do Coletivo Futebol, Mídia e Democracia), pois torcedores trabalhadores são muito prejudicados com os jogos às dez da noite, após a novela. O horário definido pela Globo prejudica os trabalhadores que não conseguem transporte público para retornar a suas casas, ou chegam no meio da madrugada.
Outro modelo é possível?
Apesar de o grupo Globo estar se adaptando às novidades do mercado de mídia e ser um dos maiores conglomerados midiáticos globais, algumas mudanças no mercado possibilitaram a muitos torcedores ter esperanças do fim no monopólio das transmissões. O avanço de empresas internacionais como Facebook, Google e Netflix, que já realizam experiências de transmissão de jogos, poderia trazer novidades ao mercado de transmissões.
Entretanto, um possível cenário de “transferência” de um monopólio a outro manteria a concentração da mídia e os problemas decorrentes, com grupos ainda maiores, que concentram poder de comunicação em nível internacional. Não é essa a solução para o problema.
As poucas experiências recentes de rompimento do monopólio de transmissão pela Globo se deram na TV por assinatura, com a participação de outros gigantes da comunicação global. Em 2011, a empresa americana Fox Sports conquistou os direitos de transmissão da Copa Libertadores da América e Copa Sulamericana em TV fechada.
Mais agressiva que a atuação do canal da Fox, foi a do Esporte Interativo (EI), canal esportivo de propriedade da americana Turner Broadcasting System, que por sua vez é de propriedade do conglomerado global Time Warner. Além de conquistar os direitos de transmissão da Copa dos Campeões da Europa, o EI negociou, no início de 2016, altas “luvas” com 15 clubes do Campeonato Brasileiro, sendo sete da Série A, para a transmissão dos jogos em TV fechada, entre 2019 e 2024. O processo ainda está em andamento.
Experiências como a democratização das transmissões de futebol na Argentina nos mostram que é possível pensarmos em outro modelo, benéfico aos clubes, torcedores e profissionais do esporte. Lá, reconheceram o futebol como um dos patrimônios culturais do país, ampliaram as transmissões na TV, rádio e online e redistribuíram as verbas, garantindo mais competitividade ao campeonato nacional.
No Brasil, é preciso associar o fim do monopólio das transmissões com mais democracia na organização do futebol. Clubes dos mais diversos lugares do país, jogadores e torcedores hoje não participam efetivamente das decisões do futebol - enquanto a Globo controla horário, calendário e verbas. A diversidade regional não está presente nas transmissões futebolísticas e o futebol feminino segue sendo invisibilizado.
São muitos os coletivos e organizações de futebol discutindo e pautando outro futebol no país, com democracia dentro e fora dos estádios. Para citar alguns: Movimento Agir – Arquibancada Ampla, Geral e Irrestrita, Coletivo Futebol, Mídia e Democracia, Respeito Futebol Clube, Dibradoras, Rede Brasileira de Futebol e Cultura e muitos grupos de torcedores organizados.
As relações dos grupos de mídia com cartolas corruptos e um comando autoritário do futebol revelam a urgência da democratização do futebol e da mídia. Outro modelo é possível, e sua elaboração deve partir de uma grande diversidade de vozes.
* André Pasti integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes e é torcedor do São Paulo FC. Iago Vernek é professor e também são-paulino.
A notícia parece ter atingido a Globo, que negou tudo e apresentou uma defesa através de comunicado oficial, relatado por 6 minutos em pleno Jornal Nacional, além de cobertura diária do caso. O irônico é que a empresa tem colocado em pauta, de forma seletiva e hipócrita, a “corrupção” como problema central do Brasil e assumido delações como provas de envolvimento em corrupção.
Mas, para além da hipocrisia do grupo, o caso traz pistas sobre a capacidade de a Globo intervir politicamente nos rumos do futebol. Entender o papel do monopólio da Globo e dos grandes conglomerados envolvidos nesse escândalo no funcionamento do nosso futebol é fundamental para pensar outras formas de organizar o esporte e sua relação com a mídia.
Os “rolos” no negócio midiático do futebol
O esquema de propinas que Burzaco afirma existir seria a ponta do iceberg de irregularidades e pactos políticos que sustentaram o poder das empresas de mídia no futebol.
Os direitos de transmissão de futebol correspondentes aos torneios nacionais e à seleção brasileira são controlados pela CBF. Há trinta anos a Globo vence a concorrência e detém os direitos televisivos do campeonato brasileiro, apesar das constantes ofensivas das outras redes de televisão.
O negócio da transmissão de futebol é muito lucrativo: apenas as receitas publicitárias da empresa com a transmissão do Campeonato Brasileiro de 2017 foram da ordem de 1,8 bilhão de reais, enquanto o repasse anual aos clubes pelo direito de transmissão é de 1,3 bilhão. Esse repasse é uma das principais formas de financiamento dos clubes. Ele reproduz e amplia as desigualdades no futebol nacional: mais da metade do montante total foi distribuída aos “quatro grandes” do Rio de Janeiro e de São Paulo, sendo que Flamengo e Corinthians obtiveram 170 milhões de reais cada.
Nos jogos da seleção brasileira, a Globo mantém o monopólio de exibição há mais de duas décadas. Para se ter uma ideia da vantagem desse monopólio, os ganhos da empresa no ano de 2014, com a Copa do Mundo, subiram 8% em publicidade, fechando um faturamento líquido anual de R$ 12,4 bilhões. Globo e CBF já firmaram um novo acordo de transmissão exclusiva dos jogos da seleção até 2022, em TV aberta, fechada e pay-per-view.
O controle do grupo Globo das transmissões do futebol nacional está sendo investigado pelo órgão brasileiro anti-monopólio, o Cade. Outros grupos de mídia acusam diversos problemas com o modelo atual dos direitos de transmissão, que privilegia a Globo.
Parte dos privilégios da Globo são explicados pela ausência de uma regulação que impeça os monopólios da mídia no país. Essa lacuna possibilitou à Globo o controle da propriedade cruzada de meios de comunicação, de vários tipos de mídia: o grupo é dono da principal rede da TV aberta, de mais de 30 canais na TV paga (incluindo os canais SporTV), de duas das principais redes de rádio nacionais, jornais, revistas e dezenas de outros veículos de mídia, como mostra o Monitoramento da Propriedade da Mídia.
Os vínculos do grupo com o escândalo são muitos: além da proximidade da Globo com as federações estaduais e a CBF - envolvida de forma inegável nos escândalos de corrupção da FIFA -, o grupo também garantiu muitos dos acordos de transmissão por parcerias com cartolas dos clubes, alguns deles ocupando cargos políticos. A empresa Traffic, também denunciada no escândalo da FIFA, é de um sócio do grupo, dono da afiliada da rede Globo TV TEM, da região de Sorocaba (SP).
A situação dos direitos de transmissão e as acusações de corrupção por parte de grupos de comunicação, instituições nacionais e supranacionais do futebol, expõem uma estrutura política corrompida, um mercado de mídia concentrado e um tratamento do futebol e da comunicação apenas como mercadorias. Quem perde com isso é o torcedor e o futebol em geral.
Prejuízos vão muito além das propinas
O que está vindo à tona sobre o futebol e a mídia revela prejuízos maiores do que possíveis propinas. A monopolização da transmissão, a ausência de uma regulação que defenda o interesse público e a falta de participação da sociedade e dos diversos agentes envolvidos nas decisões vêm trazendo inúmeros problemas.
Como já apontamos aqui, há estados brasileiros que não assistem na televisão seus campeonatos estaduais, mas o do Rio de Janeiro. Além de invisibilizar o futebol regional, essa situação inviabiliza financeiramente os clubes dessas regiões. A concentração geográfica da veiculação de conteúdos faz com que os clubes do sudeste e sul, além de receberem as maiores cotas televisivas, tenham maior tempo de exposição. Assim, eles conseguem maiores receitas de patrocínio e renda. Pior para os clubes e jornais regionais, que se veem cada vez mais enfraquecidos em um modelo que amplia as desigualdades.
A Globo, em parceria com os cartolas e as federações, estabelece o calendário do esporte e os horários dos jogos. Ambos são duramente criticados. Jogadores e profissionais ligados ao futebol criticam o calendário, absurdamente extenso, que obriga jogadores e outros profissionais a uma rotina exaustiva de trabalho.
Já o horário é alvo de campanhas como “Jogo 10 da Noite, NÃO!” (do Coletivo Futebol, Mídia e Democracia), pois torcedores trabalhadores são muito prejudicados com os jogos às dez da noite, após a novela. O horário definido pela Globo prejudica os trabalhadores que não conseguem transporte público para retornar a suas casas, ou chegam no meio da madrugada.
Outro modelo é possível?
Apesar de o grupo Globo estar se adaptando às novidades do mercado de mídia e ser um dos maiores conglomerados midiáticos globais, algumas mudanças no mercado possibilitaram a muitos torcedores ter esperanças do fim no monopólio das transmissões. O avanço de empresas internacionais como Facebook, Google e Netflix, que já realizam experiências de transmissão de jogos, poderia trazer novidades ao mercado de transmissões.
Entretanto, um possível cenário de “transferência” de um monopólio a outro manteria a concentração da mídia e os problemas decorrentes, com grupos ainda maiores, que concentram poder de comunicação em nível internacional. Não é essa a solução para o problema.
As poucas experiências recentes de rompimento do monopólio de transmissão pela Globo se deram na TV por assinatura, com a participação de outros gigantes da comunicação global. Em 2011, a empresa americana Fox Sports conquistou os direitos de transmissão da Copa Libertadores da América e Copa Sulamericana em TV fechada.
Mais agressiva que a atuação do canal da Fox, foi a do Esporte Interativo (EI), canal esportivo de propriedade da americana Turner Broadcasting System, que por sua vez é de propriedade do conglomerado global Time Warner. Além de conquistar os direitos de transmissão da Copa dos Campeões da Europa, o EI negociou, no início de 2016, altas “luvas” com 15 clubes do Campeonato Brasileiro, sendo sete da Série A, para a transmissão dos jogos em TV fechada, entre 2019 e 2024. O processo ainda está em andamento.
Experiências como a democratização das transmissões de futebol na Argentina nos mostram que é possível pensarmos em outro modelo, benéfico aos clubes, torcedores e profissionais do esporte. Lá, reconheceram o futebol como um dos patrimônios culturais do país, ampliaram as transmissões na TV, rádio e online e redistribuíram as verbas, garantindo mais competitividade ao campeonato nacional.
No Brasil, é preciso associar o fim do monopólio das transmissões com mais democracia na organização do futebol. Clubes dos mais diversos lugares do país, jogadores e torcedores hoje não participam efetivamente das decisões do futebol - enquanto a Globo controla horário, calendário e verbas. A diversidade regional não está presente nas transmissões futebolísticas e o futebol feminino segue sendo invisibilizado.
São muitos os coletivos e organizações de futebol discutindo e pautando outro futebol no país, com democracia dentro e fora dos estádios. Para citar alguns: Movimento Agir – Arquibancada Ampla, Geral e Irrestrita, Coletivo Futebol, Mídia e Democracia, Respeito Futebol Clube, Dibradoras, Rede Brasileira de Futebol e Cultura e muitos grupos de torcedores organizados.
As relações dos grupos de mídia com cartolas corruptos e um comando autoritário do futebol revelam a urgência da democratização do futebol e da mídia. Outro modelo é possível, e sua elaboração deve partir de uma grande diversidade de vozes.
* André Pasti integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes e é torcedor do São Paulo FC. Iago Vernek é professor e também são-paulino.
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