1. A recente condenação de Lula, em recurso, por alegado crime de corrupção, tem alimentado dentro e fora do Brasil confrontos que têm implicações mais amplas do que a atuação do judiciário brasileiro neste caso ou as implicações políticas da condenação ou absolvição de Lula para o futuro próximo do Brasil. Sendo Lula o candidato às próximas eleições presidenciais que lidera as intenções de voto em todos os cenários nas sondagens, apesar das condenações e das continuadas campanhas mediáticas e ataques nas redes sociais, compreende-se a tentativa, por parte do bloco no poder no Brasil, de impedir a sua candidatura. Mas a passagem dessa tentativa pela ação do poder judiciário suscita preocupações que vão além da situação do Brasil, sobre a tolerância ou mesmo a defesa, nos regimes democráticos, de violações de direitos e da ordem constitucional, em nome da luta contra a corrupção, o terrorismo ou a imigração ilegal e como arma política.
2. Juristas conceituados, dentro e fora do Brasil, têm demonstrado a existência de irregularidades que violam ou prejudicam os direitos de Lula: a suspensão da presunção de inocência; a rejeição da relevância de provas que refutem os argumentos da acusação; escutas ilegais; a urgência com que o julgamento do recurso de Lula foi agendada, passando à frente de 347 outros processos, ao mesmo tempo que prescreviam acusações contra políticos de outros partidos, por vezes inexplicavelmente retidas durante anos. A estas violações juntam-se as campanhas mediáticas que promoveram, antes do julgamento, a difusão da “convicção” de procuradores sobre a culpabilidade de Lula, mesmo admitindo a ausência de provas que a sustentassem, ou a afirmação pública de um juiz pertencente ao tribunal que julgou o recurso de Lula, antes ainda da audiência, de que a sentença do juiz Moro em primeira instância seria “irretocável”...
3. Num trecho do voto do juiz Victor Laus, um dos três magistrados da audiência de recurso que condenou Lula em segunda instância e que lhe aumentou a pena, a conceção que presidiu ao processo é explicitada de forma inequívoca: “Quem responde a crime tem que ter participado dele; e para ter participado alguma coisa de errado ele fez”, acrescentando: “Se alguém fez algo de errado e esse algo de errado é crime, essa pessoa responde. Ponto.
Ou seja: é culpado quem responde em tribunal, independentemente do que for apurado no julgamento. Assim, antes mesmo de terem ouvido as alegações da defesa, os três juízes tinham já o seu voto final escrito, que se limitaram a ler no final da audiência.
Passando por alto ou minimizando como “erros” as irregularidades cometidas no processo de Lula, João Miguel Tavares defendeu, em comentário recente, que o “que está em causa são diferentes visões sobre a forma de enfrentar o problema da corrupção. Uma visão, como é o caso da portuguesa, que exige ao Ministério Público não só que prove que o corrupto recebeu uma vantagem indevida mas também a identificação do serviço exacto que ele prestou ao corruptor. E a visão, que tem sido a dos juízes brasileiros no processo Lava-Jato, que considera que esta exigência levada às últimas consequências dificultaria de tal forma a prova do crime que quase todos os corruptores ficariam impunes”.
A “visão” existente em Portugal prejudicaria assim a eficácia da luta contra a corrupção, fragilizada pelo alegado excesso de exigência na produção de provas e pelo respeito do princípio da presunção de inocência até à pronúncia de sentença. Ponderar provas existentes não é o mesmo que substituir provas por convicções, ou rejeitar aquelas que não servem à acusação, como tem sido documentado no processo de Lula. Quanto à eficácia comparada da justiça portuguesa e da brasileira no combate à corrupção, vale a pena recordar que, apesar da ampliação mediática de alguns casos, o Brasil continua a ter as suas principais instituições dominadas por políticos indiciados ou investigados por corrupção - a começar pelo atual Presidente -, que, por via de foros privilegiados ou de convenientes demoras nos processos, vão passando incólumes pelas investigações, mesmo quando não faltam provas...
4. O processo de Lula alerta-nos para a facilidade com que são hoje postos em causa, em nome da eficácia da justiça, os direitos que configuram o que Isaiah Berlin, retomando uma expressão usada por Hegel, chamou as liberdades negativas, as que asseguram a proteção contra a arbitrariedade e a garantia da integridade e segurança pessoal. Ainda que, historicamente, essas liberdades tenham sido respeitadas de maneira desigual, condicionadas por desigualdades de recursos e de poder e pelo reconhecimento desigual da cidadania, elas têm sido consideradas, mesmo em democracias de baixa intensidade, como a linha vermelha que não se pode ultrapassar, e que teria no poder judiciário os seus defensores. Que as violações desses direitos sejam defendidas ou toleradas em nome de um bem maior converte a proteção da lei em fonte de insegurança, os juízes em justiceiros que criam situações de exceção aplicadas seletivamente e concentram em figuras de super-juízes as funções de acusar, julgar e condenar.
2. Juristas conceituados, dentro e fora do Brasil, têm demonstrado a existência de irregularidades que violam ou prejudicam os direitos de Lula: a suspensão da presunção de inocência; a rejeição da relevância de provas que refutem os argumentos da acusação; escutas ilegais; a urgência com que o julgamento do recurso de Lula foi agendada, passando à frente de 347 outros processos, ao mesmo tempo que prescreviam acusações contra políticos de outros partidos, por vezes inexplicavelmente retidas durante anos. A estas violações juntam-se as campanhas mediáticas que promoveram, antes do julgamento, a difusão da “convicção” de procuradores sobre a culpabilidade de Lula, mesmo admitindo a ausência de provas que a sustentassem, ou a afirmação pública de um juiz pertencente ao tribunal que julgou o recurso de Lula, antes ainda da audiência, de que a sentença do juiz Moro em primeira instância seria “irretocável”...
3. Num trecho do voto do juiz Victor Laus, um dos três magistrados da audiência de recurso que condenou Lula em segunda instância e que lhe aumentou a pena, a conceção que presidiu ao processo é explicitada de forma inequívoca: “Quem responde a crime tem que ter participado dele; e para ter participado alguma coisa de errado ele fez”, acrescentando: “Se alguém fez algo de errado e esse algo de errado é crime, essa pessoa responde. Ponto.
Ou seja: é culpado quem responde em tribunal, independentemente do que for apurado no julgamento. Assim, antes mesmo de terem ouvido as alegações da defesa, os três juízes tinham já o seu voto final escrito, que se limitaram a ler no final da audiência.
Passando por alto ou minimizando como “erros” as irregularidades cometidas no processo de Lula, João Miguel Tavares defendeu, em comentário recente, que o “que está em causa são diferentes visões sobre a forma de enfrentar o problema da corrupção. Uma visão, como é o caso da portuguesa, que exige ao Ministério Público não só que prove que o corrupto recebeu uma vantagem indevida mas também a identificação do serviço exacto que ele prestou ao corruptor. E a visão, que tem sido a dos juízes brasileiros no processo Lava-Jato, que considera que esta exigência levada às últimas consequências dificultaria de tal forma a prova do crime que quase todos os corruptores ficariam impunes”.
A “visão” existente em Portugal prejudicaria assim a eficácia da luta contra a corrupção, fragilizada pelo alegado excesso de exigência na produção de provas e pelo respeito do princípio da presunção de inocência até à pronúncia de sentença. Ponderar provas existentes não é o mesmo que substituir provas por convicções, ou rejeitar aquelas que não servem à acusação, como tem sido documentado no processo de Lula. Quanto à eficácia comparada da justiça portuguesa e da brasileira no combate à corrupção, vale a pena recordar que, apesar da ampliação mediática de alguns casos, o Brasil continua a ter as suas principais instituições dominadas por políticos indiciados ou investigados por corrupção - a começar pelo atual Presidente -, que, por via de foros privilegiados ou de convenientes demoras nos processos, vão passando incólumes pelas investigações, mesmo quando não faltam provas...
4. O processo de Lula alerta-nos para a facilidade com que são hoje postos em causa, em nome da eficácia da justiça, os direitos que configuram o que Isaiah Berlin, retomando uma expressão usada por Hegel, chamou as liberdades negativas, as que asseguram a proteção contra a arbitrariedade e a garantia da integridade e segurança pessoal. Ainda que, historicamente, essas liberdades tenham sido respeitadas de maneira desigual, condicionadas por desigualdades de recursos e de poder e pelo reconhecimento desigual da cidadania, elas têm sido consideradas, mesmo em democracias de baixa intensidade, como a linha vermelha que não se pode ultrapassar, e que teria no poder judiciário os seus defensores. Que as violações desses direitos sejam defendidas ou toleradas em nome de um bem maior converte a proteção da lei em fonte de insegurança, os juízes em justiceiros que criam situações de exceção aplicadas seletivamente e concentram em figuras de super-juízes as funções de acusar, julgar e condenar.
Assim vão crescendo os espaços para a ampliação do arbítrio e criminalização da oposição política e do dissenso, em nome de cruzadas promovidas como grandes causas civilizacionais. Será este um sinal de que estaríamos a entrar na era da pós-justiça e do pós-direito, parceiros da pós-democracia e da pós-verdade?
* Publicado originalmente no site português Público.
* Publicado originalmente no site português Público.
* João Arrisco Nunes é investigador do Centro de Estudos Sociais e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
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