sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Cultura, austericídio e o Estado mínimo

Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:

A tragédia criminosa envolvendo o Museu Nacional no Rio de Janeiro nos entristece e nos revolta a todos. Muito já foi dito, ainda sob o impacto da emoção e da tristeza, a respeito da irresponsabilidade com que os dirigentes políticos trataram a questão ao longo dos últimos anos. No entanto, é necessário que se faça um balanço sério e rigoroso a respeito das condições que levaram a tal calamidade. Esse é o único caminho que pode evitar a repetição desse tipo de evento, ainda mais com as consequências terríveis para o futuro de nosso País.

A cultura é um dos pilares fundamentais das chamadas políticas sociais do Estado brasileiro. Tanto é assim que o Título VIII da Constituição Federal trata da Ordem Social e inclui também a questão cultural. Ali dentro, a Seção II do Capítulo III possui 4 artigos tratando especificamente do assunto. Assim, promover a preservação do patrimônio cultural faz parte explícita das políticas públicas obrigatórias para qualquer governo.

O problema é que as décadas todas sob a vigência absoluta da dominação ideológica do neoliberalismo constituíram um processo de isolamento e discriminação contra as políticas sociais. A supremacia do financismo foi vitoriosa a ponto de converter em política de governo a ideia de que o essencial é assegurar os recursos do Estado para os setores hegemônicos no interior das classes dominantes. A incorporação do conceito do superávit primário para dentro da Lei de Reponsabilidade e para o próprio texto constitucional é exemplo cabal desse movimento.

Assim, o conjunto das políticas públicas não-financeiras têm sofrido um processo sistemático de estrangulamento de seus recursos orçamentários. Para além dessa estratégia de sucateamento de áreas vitais como educação, saúde, previdência social, esportes, cultura, saneamento, segurança pública, assistência social, entre outras, a narrativa oficial do establishment propõe a retirada do Estado dessas atividades. Para esse pessoal pouco importa se existe determinação constitucional assegurando a obrigatoriedade dos serviços públicos a serem oferecidos a toda a população. Pouco importa se a legislação também obriga o fornecimento de um conjunto de direitos de cidadania. Para o pensamento ortodoxo e conservador, o importante a considerar é a abordagem simplista de que o orçamento atual não dá mais conta das atribuições previstas na Constituição. E ponto final.

Ora, a compressão relativa ou absoluta dos recursos destinados a tais áreas da administração pública compromete de forma substancial a qualidade e a quantidade dos serviços oferecidos. A prioridade número um do servilismo tecnocrata sempre foi a garantia das despesas necessárias para o pagamento de juros e demais serviços financeiros da dívida pública. Em seguida, meio a contragosto dos prepostos do financismo, surgem os gastos associados a mandamento constitucional, as tais “despesas obrigatórias”, das quais eles sempre se lamentam diante das câmeras de televisão. Estão aí gastos com previdência, saúde, educação e pessoal.

As demais rubricas da área social estão pouco seguras por falta de exigência legal. Assim, as áreas econômicas do governo têm por tradição apelar para expedientes como a política de contingenciamento, de forma a não questionar de forma explícita o valor previsto, mas simplesmente não realizando o gasto tal como definido na própria lei do orçamento. Não é por outra razão que os fundos constitucionais estão com dinheiro sobrando em caixa, uma vez que a prioridade do Ministério da Fazenda é usar tais saldos para gerar superávit primário e não gastar o dinheiro com a área legalmente definida.

Ora, frente a esse quadro não é difícil imaginar o que veio ocorrendo com o setor da cultura. Esse tipo de atividade não é considerado relevante por parte considerável do povo das finanças, uma vez que consideram o retorno meramente econômico desse tipo de investimento pouco significativo. Uma loucura! Isso me faz lembra a conhecida frase de um escritor alemão e simpatizante do nazismo, Hanns Johst. A passagem foi durante muito tempo erroneamente atribuída aos colaboradores diretos de Hitler - como Goebbels ou Göering, mas dizia o seguinte:

(...) “Quando eu ouço a palavra cultura, eu procuro pelo meu revólver” (...) [1]

Aqui no nosso quintal tupiniquim, a política do austericídio radicalizou a pouca importância historicamente atribuída ao orçamento da cultura. Ao longo dos últimos 3 anos, em particular, a situação tornou-se ainda mais dramática com as políticas do governo Temer destinadas à cultura. Houve a tentativa inicial de extinguir o ministério, um vai-e-vem de nomeações e demissões de responsáveis pela área, seguido das agora divulgadas reduções de verbas. O incêndio no Museu Nacional revelou-se como “apenas” mais uma etapa previsível dessa verdadeira crônica da desgraça anunciada.

Nestes tristes tempos em que a campanha de Jair Bolsonaro consegue ainda empolgar parcela da população brasileira, a intolerância e o apelo à violência armada fazem todo o sentido com a frase de Johst. “Essa coisa de cultura eu resolvo é na bala mesmo!”. Gastos desnecessários, espaços que costumam abrir caminho para pensamento crítico, manifestações que tendem a superar o convencional e questionar a ordem natural das coisas. Assim, essa prioridade vai para o final da fila, quando não é simplesmente excluída da lista.

Pois agora, depois da desgraça concluída, restam os balanços das perdas irreparáveis. E os eternos liberaloides, sempre de plantão para conceder suas entrevistas para os grandes meios de comunicação, voltam a deitar falação sobre os equívocos que teriam levado ao desastre. Do alto de sua instrução elevada, saem com suas panaceias como a suposta incompetência estrutural do Estado e que a solução seria apelar para a iniciativa privada, sempre tão eficiente em suas ações. E dá-lhe blá-blá-blá sugerindo até mesmo a privatização dos museus públicos como solução para o setor. Uma insanidade sem fim!

De acordo com a tão louvada imagem do Estado mínimo, imaginemos como o capital privado teria que se adaptar com o tratamento a ser conferido aos esqueletos de dinossauros, aos vestígios da presença humana com Luzia, aos exemplares raríssimos de bíblias e às dezenas de milhões de objetos ainda por serem catalogados em acervo. Uma tarefa tipicamente atribuída ao setor público. Mas isso não é problema na cabeça desse povo, pois tudo seria muito bem equacionado por meio da livre ação das forças de oferta e de demanda.

Não, definitivamente não! A cultura não deve ser tratada a bala, nem muito como mera mercadoria pelo capital.

Cultura é patrimônio material e imaterial. Cultura é bem público. Cultura deve receber apoio, carinho e recurso do Estado.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Nota

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Hanns_Johst

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