quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O Brasil e os erros do ''esquerdismo''

Por Atilio A. Boron, no site Carta Maior:

No domingo, 7 de outubro, acontecerá o primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil. Tudo parece indicar que o ultradireitista Jair Bolsonaro prevalecerá nessa instância, mas que seria derrotado no segundo turno por Fernando Haddad, que foi escolhido por Lula da Silva para ser seu representante, conformando a chapa com Manuela D’Ávila. Deste modo, o tão celebrado (pelos cientistas políticos e “opinólogos” dos grandes meios) “centro político” desapareceu quase sem deixar rastros no Brasil. Isso se dá porque, com políticas como as impulsadas pelo regime golpista desse país, uma opção centrista carece de sentido por completo.

Diante da brutal reinstalação de um neoliberalismo puro e duro a partir da gestão de Michel Temer, similar ao impulsado por Mauricio Macri na Argentina, poucas coisas seriam menos razoáveis – e possíveis – que apostar em um compromisso ou um acordo entre quem governa hoje para o benefício de uma minoria opulenta aliada aos interesses imperiais, e quem pretende trabalhar para o povo e as grandes maiorias nacionais. Resumindo, é quase certo que a disputa final será entre Bolsonaro e Haddad. Os representantes do “centro político”, a ambientalista Marina Silva e o ex-governador paulista Gerardo Alckmin – candidato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso –, se afundam entre 7 e 6 % das intenções de voto respectivamente, enquanto o versátil Ciro Gomes, candidato desenvolvimentista, não consegue sair do terceiro lugar, cada vez mais distante dos líderes. 

Nos últimos dias, Bolsonaro agregou à sua campanha o apoio de importantes setores do establishment dispostos a qualquer coisa com tal de evitar o retorno do “populismo” lulista ao Palácio do Planalto. Mas, ainda assim, o ex-capitão do Exército, que dedicou seu voto de destituição de Dilma a um camarada de armas que a havia torturado, concita uma rejeição de 44 % da população, o que impõe a ele um teto difícil de perfurar. Diante desta configuração de fatores, não seria estranho que Michel Temer tivesse que entregar a faixa de mando a Fernando Haddad no próximo dia 1º de janeiro.

Diante disso, surge a pergunta: qual deve ser a postura da esquerda diante desse provável segundo turno entre uma força reacionária, xenófoba, fascista e outra que representa uma alternativa que, sem ser radical, significa um movimento numa direção moderada de socialismo? No passado, este dilema se apresentou às forças de esquerda no Brasil, que tiveram que escolher entre a candidatura direitista de Aécio Neves e a continuidade de Dilma Rousseff, e preferiram optar pela neutralidade. Pouco depois, o mesmo aconteceria na Argentina, quando as alternativas eram Mauricio Macri e Daniel Scioli, e a ultraesquerda escolheu o caminho autocomplacente da pureza dogmática e do descompromisso com as demandas e as necessidades da classe trabalhadora, decretando a mesma postura que no Brasil: “ambos são a mesma coisa”. 

Contudo, nem Dilma era Aécio nem Scioli era Macri, e os setores populares, com seus renovados sofrimentos e privações, estão experimentando, de forma selvagem, as diferenças entre uns e outros, negadas pelo infantilismo esquerdista e sua visão abstrata da política. Numa leitura talmúdica e antidialética do marxismo, tanto Macri quanto Scioli, ou Aécio e Dilma, são políticos burgueses, e portanto “dava no mesmo o triunfo de um ou de outro”. Franklin D. Roosevelt e Adolf Hitler eram políticos burgueses, como hoje são Donald Trump e Bernie Sanders. Porém, foram ou são o mesmo? De forma nenhuma! E não se faz política com abstrações desse tipo, que talvez sirvam para propagar um mal curso da ciência política, ou de teoria marxista. Mas a vida real passa por outro lado. A eficácia da ação política se encontra na arte de navegar em um mar de sutis matizes e contradições, nunca no diáfano lago das categorias abstratas, sempre “claras e distintas”, como queria Descartes. 

Em seu radicalismo retórico, a ultraesquerda se desnuda como tributária de uma visão da política que é própria do liberalismo, que concebe a história como a dinâmica impulsada pelos “grandes líderes”, e descarta por completo a atuação das forças sociais envolvidas, mesmo que, como se comprova no caso da Argentina, estas poderiam estabelecer limites sobre o que os seus chefes podem fazer. O genocídio dos pobres, dos aposentados e das crianças impulsado por Macri na Argentina é possível porque a força social que encabeça o governo está disposta a acompanhá-lo em tão funesto projeto. Por mais que Scioli defendesse um programa parecido – coisa que não descarto a priori – não teria podido, porque sua base social seria diferente da do macrismo e poderia impor um limite a essa nefasta iniciativa, que seu hipotético governo não poderia ignorar. Seria o caso de também lembrar à ultraesquerda que é a luta de classes que faz a história e não tal ou qual líder em particular?

Voltando ao caso do Brasil: lavar as mãos no segundo turno brasileiro é uma política suicida para a esquerda radical, que seria a primeira vítima das hordas fascistas comandadas por Bolsonaro. Para intervir na conjuntura, qualquer força política ou social deve partir do reconhecimento de suas fortalezas e debilidades. Se a ultraesquerda, que proclama sua “neutralidade” na luta eleitoral, tivesse acumulado uma força política capaz de disputar a Presidência, então o voto poderia ser canalizado em sua própria direção. Mas esse não é o caso, lamentavelmente. As costumeiras críticas ao “malmenorismo” pretendem tapar o sol com um dedo, tentando inutilmente ocultar essa fraqueza de longa data e os limites da desprestigiada consigna do “dá no mesmo”, porque se algo o capitalismo tem demonstrado nas últimas décadas é a sua formidável capacidade de metabolizar a indignação social e erigir enormes obstáculos ao surgimento de uma consciência e uma organização política anticapitalistas. 

O desconhecimento desta realidade, e a opção pela neutralidade entre um fascista e um reformismo coerente – como o que representa a chapa entre Haddad e D’Ávila – só pode trazer renovados sofrimentos às classes populares do Brasil, dificultando ainda mais a organização do campo popular e afastando as perspectivas de uma revolução anticapitalista. A penosa experiência argentina deveria nos fazer refletir: Macri criminalizou os protestos sociais e montou um bem equipado aparato repressivo, que dificulta enormemente as imprescindíveis tarefas de organização e conscientização da classe trabalhadora. No caso de um triunfo de Bolsonaro, ajudado pela deserção da ultraesquerda, a situação do campo popular no Brasil seria ainda pior. Isso se, no caso de se tornar mais concreta a perspectiva de um triunfo de Haddad no segundo turno, a direita brasileira não se antecipar ao que seria um desastre para o seu projeto – pelo qual destituíram Dilma Rousseff, prenderam Lula da Silva e instauraram um fantoche como Michel Temer para impulsar uma legislação ultrarreacionária – e decida adiar ou interromper o processo eleitoral, ou anulá-lo caso aconteça e Bolsonaro seja derrotado. 

Ou até mesmo forçando a destituição de Temer e instaurando um governo de transição que “normalize” o país em um prazo de dois ou três anos, suficientes para inventar candidatos mais aptos que o ex-capitão do Exército, desarticular o que resta do movimento popular e desbaratar qualquer estratégia que este puder conceber para competir nas eleições. Como é bem sabido, o lawfare pode incluir qualquer coisa.

Em seu tempo, Lenin detectou sagazmente os erros do “esquerdismo” e como seu dogmatismo letrado atrasava em vez de acelerar o processo revolucionário, apesar das boas intenções. O exame da dolorosa experiência argentina deveria ser um antídoto para erradicar definitivamente a doença infantil do “esquerdismo” que tanto dano produziu à causa da revolução em toda a nossa América. A derrota de Bolsonaro é um imperativo categórico para as forças genuínas e realistas, empenhadas na construção de uma alternativa anticapitalista. 

Uma vez consumada, as forças de esquerda deverão aprofundar seus esforços para, de uma vez por todas, constituir uma maioria política e social – coisa que está tardando mais do que o esperado – que impulse a necessária radicalização de um eventual governo do PT e seus aliados. Sei que toda esta argumentação pode soar como inaceitável ou “malmenorista” para alguns setores do trotskismo, do anarquismo pós-moderno e do autonomismo da antipolítica. Mas, como dizia Gramsci, só a verdade é revolucionária, e no momento do segundo turno, essa verdade deverá se impor à inexorabilidade da lei da gravidade para impulsar as forças populares do Brasil a impedir o triunfo de um fascista. 

A não ser, claro, que os companheiros do gigante país sul-americano me convençam que estão em condições de conquistar o poder do Estado e impor o socialismo pela via insurrecional, deixando de lado as armadilhas e maquinações da democracia burguesa. Seria uma grande notícia, mas falando com a franqueza que deve caracterizar o diálogo entre revolucionários, creio que essa alternativa é, ao menos neste momento, absolutamente ilusória e fantasiosa – além de paralisante e suicida.

* Publicado originalmente no jornal argentino Página/12. Tradução de Victor Farinelli.

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