Passado pouco mais de um mês depois da confirmação da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, pode-se perceber a nítida consolidação de uma linha editorial bastante simpática e favorável ao novo governo. Os grandes meios de comunicação estão totalmente alinhados com a equipe do capitão e fazem questão de expressar tal entusiasmo a cada dia.
É bem verdade que ainda são encontradas algumas lamentações, aqui e acolá, relativas a algumas das muitas trapalhadas que vêm sendo cometidas por integrantes do futuro esquadrão e mesmo quando patrocinadas pelo chefe da equipe e seus familiares. Os exemplos são inúmeros. Mas os que mais chamam a atenção desses analistas relacionam-se às declarações comprometedoras de nossa diplomacia e relações comerciais, como é o caso do apoio à mudança da embaixada brasileira para Jerusalém ou ao rebaixamento de prioridade a ser concedida ao Mercosul.
Por outro lado, os comentaristas favoráveis ao establishment tentam justificar as inabilidades cometidas na área ambiental e de sustentabilidade do futuro governo. Argumentam que se trata de intenções que serão vencidas, em futuro próximo, graças ao pragmatismo da política e à força dos interesses econômicos. Bolsonaro considera que esse debate a respeito de aquecimento global não passa de influência nefasta de um certo “marxismo cultural”. O futuro presidente já deixou claro em inúmeras oportunidades que não pretende manter as políticas de combate ao desmatamento ou de desrespeito às terras indígenas. Mas, ao que tudo indica, está sendo aconselhado a recuar de sua esdrúxula proposta inicial de fundir o Ministério do Meio Ambiente à pasta da Agricultura.
Guedes: o eficiente da vez
De forma geral, o gancho encontrado pelos articulistas vinculados ao interesse do financismo relaciona-se à agenda econômica. Nesse campo estão quase todos de acordo com as diretrizes gerais traçadas pelo futuro superministro Paulo Guedes. Essa conduta de apoio incondicional à equipe de Bolsonaro opera como houvessem perdoado todas as posições e declarações do capitão a respeito da tortura, da apologia da ditadura militar, dos direitos das minorias, da pena de morte, da liberação do porte de arma, entre tantas outras manifestações públicas comprometedoras de qualquer limite razoável da ordem democrática e civilizacional.
E tudo se passa como se houvesse um retorno no túnel do tempo, para o segundo mandato da Presidenta Dilma Rousseff. Naquele período, dentre as inúmeras armações para justificar a necessidade do golpeachment, as páginas dos jornais e os programas de TV nos empanturravam de notícias e opiniões dando conta das supostas trapalhadas fiscais e da incompetência da equipe responsável pela economia à época. E aí veio o famoso mantra de que “bastava” tirar a legítima ocupante do Palácio e convencer Michel Temer a trazer um time de economistas sérios e responsáveis. A solução da crise e a retomada do crescimento seriam favas contadas.
Porém, todos sabemos qual foi o final dessa aventura criminosa e irresponsável. A chegada da duplinha dinâmica dos banqueiros Meirelles& Goldfajn à Esplanada só fez aprofundar a política do austericídio, jogando o Brasil na maior recessão de toda a sua História. Idolatrados pela grande imprensa por seu tão cantado perfil “técnico e eficiente”, eles conseguiram ajudar nessa impressionante proeza. Em poucos meses transformaram o governo Temer naquele de mais baixo índice de popularidade de todos os tempos.
Previdência não resolve o problema fiscal
No entanto, o capital tem pressa e não se incomoda muito com esses rituais de lealdade e demais ritos da liturgia da seara da política. Seus interesses e sua lógica de operação são de natureza distinta. Mais do que nunca, agora vale a máxima do rei morte, rei posto. E o que temos para o jantar é um economista de perfil conservador e monetarista, bastante alinhado com o pensamento hegemônico no sistema financeiro, que está designado como responsável pelo conjunto das medidas e posições do futuro na área da economia.
Ocorre que, apesar de todos os sinais preocupantes e os temores justificados em sentido contrário, ainda estamos operando num quadro em que a ordem democrática e institucional depende do Congresso Nacional e de algum grau de respeito à Constituição. E isso significa que boa parte das medidas previstas por Paulo Guedes para “arrumar a casa” carecem de aprovação pelas duas casas do poder legislativo. É bem verdade que o início do mandato presidencial é sempre facilitado pela chegada de um governo novo, embalado pela maioria de votos obtidos em eleição recente. Mas nada deverá ser assim tão fácil como supõem alguns.
A profundidade da crise econômica e a gravidade da crise social contribuem para acelerar o relógio das exigências de uma forma ampla. A própria campanha de Bolsonaro foi exitosa em interpretar esse sentimento generalizado de desalento e desamparo que aflige a grande maioria da população. Essa foi uma das razões que contribuíram para a dinâmica eleitoral, que culminou na escolha de uma espécie de salvador da pátria. Isso permite intuir que a cobrança popular deverá ser menos condescendente quanto ao cumprimento de tais expectativas.
Essencial é retomar o crescimento da economia
Os arautos do financismo tentam unificar o discurso em torno da necessidade de resolver o problema do déficit fiscal das contas da União. As estimativas para 2018 são de encerrar as contas com um valor negativo de R$ 170 bilhões. A previsão inicial para 2019 é de um saldo negativo de R$ 140 bi. Ora, parece mais do que evidente que essa realidade das contas públicas foi agravada pela recessão econômica, intencionalmente provocada pelos responsáveis tão marcados pela eficiência. Não existe saída para esse quadro complexo que não seja pela retomada do crescimento econômico. Manter a obstinação com o corte generalizado de despesas não é solução inteligente, caso se tenha em mente um projeto de desenvolvimento de uma Nação a médio e longo prazos.
A maioria dos países capitalistas desenvolvidos percebeu que não bastava o discurso liberaloide conservador para solucionar questão econômica. A tentativa de saída da crise, iniciada em 2008/9 nos Estados Unidos e na própria União Europeia, só foi possível com a adoção das chamadas medidas contra cíclicas. Exatamente o oposto do sugerido por Paulo Guedes. Assim, nos momentos de crise, o Estado deve ser chamado a aumentar seu nível de despesas, tanto para minorar os efeitos da crise social como para estimular o setor privado a recuperar seu investimento e promover o crescimento geral das atividades da economia.
No entanto, a teia de defesa dos interesses do sistema financeira não perde a oportunidade. E mais uma vez volta à cena o surrado blábláblá da Reforma da Previdência. Esse assunto é apresentado como a única maneira de resolver o imbroglio fiscal em que estamos metidos. Trata-se de uma grande enganação. Não existe mudança nas regras previdenciárias, por mais elevada que seja a dose de maldades ali embutidas, capaz de reduzir esse déficit. As despesas estão dadas. Todos beneficiários de aposentadorias e pensões continuarão a receber seus rendimentos normalmente em 2019 ou 2020. Esse, aliás, é um dos pressupostos assegurados por nosso sistema judiciário - o direito adquirido.
A recuperação do equilíbrio nas contas públicas passa, fundamentalmente, pela recuperação das receitas do governo. A crise e a redução drástica das atividades econômicas provocaram, para além da tragédia do desemprego e das falências, a queda significativa na arrecadação de tributos. E esse raciocínio vale tanto para os impostos de uma forma geral, como também para as fontes específicas de receita do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Como a contribuição para o modelo gerido pelo INSS incide sobre a folha de pagamento, o fato é que houve uma diminuição brutal das receitas previdenciárias. Até 2015, por exemplo, as contas do RGPS estavam equilibradas.
Financismo: olho gordo na previdência
A verdadeira intenção desse novo ataque ao nosso sistema de previdência social não é a questão fiscal. O objetivo do financismo sempre foi o de se apropriar desse enorme fundo público, que deverá ter movimentado por volta de R$ 600 bi em 2018, com o cumprimento de benefícios previdenciários para mais de 35 milhões de pessoas. A verdadeira guerra midiática estabelecida contra o modelo definido pela Constituição em 1988 pretende desmoralizar o nosso sistema público e inviabilizá-lo em termos econômicos e financeiros no futuro. Assim como foi feito com a saúde e com a educação, onde a privatização crescente foi comendo o sistema estatal e público pelas beiradas.
Isso significa, portanto, uma mudança essencial no modelo. Ele deixa de ser um direito de cidadania que o Estado presta de forma universal à sua população. E se transforma em mais um produto mercadológico, como tantos outros, a ser oferecido pelo sistema financeiro a seus clientes. São os tão famosos planos “prev”, que os empregados dos grandes bancos se vêm obrigados a nos enfiar goela abaixo. Paga hoje pelo plano quem pode e se beneficia lá na frente quem conseguir. Todos sabemos muito bem como são plenamente assegurados os direitos do consumidor na sua relação mercantil com o cartel do conglomerado financeiro.
Paulo Guedes pretende atropelar o Congresso Nacional com suas propostas de zerar o déficit fiscal em um ou dois anos. Balela! Joga apenas para sua plateia de gente refinada do topo da pirâmide, que não depende dos benefícios do INSS. O regime previdenciário necessita apenas de retomada do emprego para que suas contas voltem a ficar equilibradas. Mas não se ouve uma palavra a respeito dos privilégios existentes na previdência da alta oficialidade das Forças Armadas, da cúpula do Poder Judiciário e Ministério Público, sem contar as conhecidas distorções no modelo de aposentadorias e pensões do Congresso Nacional.
É razoável supor que o sistema previdenciário, de forma geral, necessite alterações. As mudanças na estrutura demográfica e no mercado de trabalho apontam para tanto. Envelhecimento da população e ingresso tardio no mercado de trabalho significam menos recursos ingressando nas contas do órgão gestor e maiores despesas pela frente. Porém, trata-se de uma transformação de longo prazo, com consequências intergeracionais. Nada que justifique essa fúria pela redução de direitos básicos, em um sistema onde quase 70% dos benefícios não ultrapassam o valor de um salário mínimo. Essa lógica que rege a obsessão pelo corte uníssono de despesas para ontem não resolve o problema de fundo.
A previdência social é um direito que a sociedade resolveu adotar seus membros. É um mecanismo estratégico de políticas públicas para preservar equilíbrio e reduzir desigualdades. A única certeza que devemos manter é nossa oposição intransigente a que se transforme em mercadoria a ser oferecida nas prateleiras do supermercado das finanças.
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