Por Marcus Ianoni, no site Brasil Debate:
Várias vozes da direita, em diversos tons e conteúdos, atribuem à esquerda um marxismo cultural ou uma revolução gramsciana, termos concebidos por esses críticos como práticas que propiciam conspirações surdas. As novas direitas vêm se levantando contra esse marxismo cultural, que, banalizações pseudointelectuais à parte, atribuem, aqui no Brasil, a Gramsci e, nos EUA, à Escola de Frankfurt. Vou me referir apenas ao marxista italiano.
Se deixarmos de lado o viés conspiratório de personalidades bizarras como Olavo de Carvalho e do futuro chanceler Ernesto Araújo, e se tentarmos nos munir do realismo analítico e dos conceitos de Gramsci para entender o processo político brasileiro, quem lançou mão, a qualquer preço, do “gramscismo” tão denunciado pelos conservadores, a não ser eles próprios?
Na elaboração teórica de Gramsci, destaca-se a reflexão sobre a questão da hegemonia, que diz respeito aos aspectos culturais e ideológicos do exercício da liderança política. Hegemonia diz respeito à dimensão não coercitiva da dominação, quando esta se sustenta em uma direção política de natureza moral, intelectual e ideológica, ficando a força como retaguarda e salvaguarda indispensável, mas não como vanguarda. Hegemonia e legitimidade são conceitos muito próximos.
Imagino que, se efetivamente o processo de transformação democrática do capitalismo e no capitalismo tentado nos governos Lula e Dilma tivesse sido apoiado não somente nas decisões de políticas públicas, mas também em uma estratégia clara e explícita de publicização política do programa transformador, poderia ter havido mais êxito na construção de uma base de apoio consciente das características da mudança em curso.
Lula se esforçou nesse sentido, mas não o suficiente, pois a própria estratégia não foi definida com precisão. Por exemplo: ele disse, desde a posse, que queria que todos os brasileiros fizessem três refeições diárias. Ou seja, aliou-se aos pobres. Mas falou várias vezes, também, que os empresários nunca ganharam tanto dinheiro quanto em seus governos. Isto é, ele não foi de encontro aos ricos, pelo contrário. (Bater de frente contra a dominação do capital me parece uma opção temerária.)
O maior líder petista defendeu várias vezes a democracia como diálogo, como participação e como inclusão social, mas também implementou várias ações nesse sentido, como as conferências nacionais de políticas públicas e direitos e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o chamado Conselhão, reunindo atores do Estado e da sociedade civil.
Em todo o caso, faltou politizar, no sentido de unificar ação e pensamento, prática e teoria. Faltou a politização enquanto processo de explicitação do projeto e de esclarecimento contínuo – para o governo, para o PT, para a base aliada, para o eleitorado em geral, para os trabalhadores, para as frações de classe da burguesia – do que era o social-desenvolvimentismo (rótulo que, avalio, melhor expressa o que se tentou fazer de Lula ao fim do primeiro mandato de Dilma) e do que é o neoliberalismo.
Quais as características de um e de outro modelo de capitalismo? Onde o país estava, para onde a prática governamental queria induzi-lo a chegar e qual seria o programa de transição? Que forças precisariam alavancar o social-desenvolvimentismo e como elas promoveriam a concertação? Quem se opunha ao modelo proposto e por qual motivo? Embora as pressões estruturais das relações econômicas e interesses neoliberais, a começar na política macroeconômica, fossem imensas, ensejando algumas tendências de compromisso nessa área, como se poderia alcançar um arranjo monetário, cambial e fiscal mais favorável ao crescimento com distribuição de renda?
Um projeto de transformação social, sobretudo quando ele possui uma vocação volitiva nacional e popular, precisa de estratégia, requer aliados e ideias. Isso é especialmente importante quando se nada contra a correnteza, dada a resiliência do neoliberalismo, mesmo no contexto da maré rosa na América Latina, na primeira década desse século 21, e também na segunda década, quando, nos desdobramentos da crise de 2008, emergiu na OCDE uma nova ofensiva apoiada na ortodoxia econômica, em torno da consolidação fiscal, impactando ideologicamente e politicamente outras regiões do mundo.
Uma boa comunicação política da estratégia também é fundamental. Ademais, pesou a pedagogia do exemplo, desperdiçada pelo envolvimento do PT em práticas irregulares de financiamento eleitoral. Liderança depende de valores, de legitimidade, de ideias-força eticamente lastreadas.
O partido que mais defendeu a reforma política acabou sendo prejudicado por não ter conseguido realizá-la, ao passo que os que mais se opuseram ao fim do financiamento empresarial, entre eles Bolsonaro, levaram a melhor, dada a hipocrisia e o ilusionismo que estão no cerne do combate à corrupção.
Enfim, transformação econômica, social e política depende de liderança, de coalizão envolvendo atores sociais e partidários, uma coalizão em torno de um programa, com seus protagonistas munidos de capacidade política e técnica para implementá-lo.
Penso que o mais viável é um programa alternativo ao neoliberalismo, um programa social-desenvolvimentista, cujas diretrizes principais precisam estar claras para o conjunto dos atores, da liderança aos apoiadores: um modelo econômico centrado na produção e no emprego, na geração de renda para o capital produtivo, para o trabalho assalariado e para os cofres públicos; o combate às desigualdades (social, racial, de gênero e regional) associado à inclusão da cidadania nos sistemas econômico e político; o aumento da arrecadação tributária através do crescimento do produto; a reforma tributária progressiva; a reforma política para fortalecer os partidos (e reduzir a fragmentação partidária), a representação, a participação e o controle democrático do Estado; a regulação contra a concentração da propriedade da mídia (conforme determina o Art. 220 da Constituição Federal); o fortalecimento do Estado republicano, para garantir os direitos civis, políticos e sociais e minimizar a captura do poder público pelas oligarquias, como tem sido a maioria dos representantes políticos e a burocracia togada. Outros pontos-chave podem compor esse programa.
No momento, que talvez não dure muito, quem efetivamente está implementando bem a tal metodologia da hegemonia cultural é a extrema-direita, com sua indústria de fake news, com seu exército neopentecostal, com seu discurso fácil e maniqueísta contra a corrupção, com sua aliança com a burocracia togada de Moro & cia. e demais elites do aparato repressivo, mas também com a indústria da mídia e, sobretudo, com o mercado e com seus acenos a Washington.
Nessa empreitada, diversos aparelhos privados de hegemonia (grande mídia, igrejas, organizações de representação de classe, universidades privadas, famílias, enfim) jogaram um papel importante na missão de desconstrução da imagem pública do PT, missão que operou, ao fim e ao cabo, como um fato-processo social coordenado sistemicamente, mesmo que sem necessariamente contar com uma direção centralizada.
Mas, Gramsci apreende o Estado como ditadura e hegemonia, coerção e consenso. O “projeto” do presidente eleito também tem se apoiado em intimidações e violências e não parece disposto a deixar de fazê-lo. Ainda que, na equação política de Bolsonaro, a variável da hegemonia tenha tido um destaque, trata-se de um uso um tanto quanto peculiar de dimensão moral e intelectual do poder, pois a imoralidade, a amoralidade e a anti-intelectualidade, sob roupagens disfarçadas, que enganam os desavisados, compõem de tal modo sua ação política que, ao fim e ao cabo, alimenta-se a subcultura autoritária.
Coerentemente, a autoritarismo nu e cru é cultivado pela liderança dessa coalizão conservadora, em que se alinham militares da reserva saudosistas do combate ao “comunismo”, magistrados dispostos a relativizar o regime ditatorial de 1964-1985 e empresários descomprometidos com os direitos civis e políticos, todos apoiadores do golpe de Estado contra Dilma Rousseff.
Mas a hegemonia e a legitimidade dependem, por um lado, de valores, de aspectos simbólicos, e, por outro lado, de pressupostos materiais mínimos, de resultados, de desempenho. Que resultados se pode esperar de um ultraliberalismo de extrema-direita? E o que o “partido da esquerda” democrática e eleitoralmente competitiva tem a oferecer como projeto de vontade coletiva transformadora nessa nova quadra histórica nacional?
Várias vozes da direita, em diversos tons e conteúdos, atribuem à esquerda um marxismo cultural ou uma revolução gramsciana, termos concebidos por esses críticos como práticas que propiciam conspirações surdas. As novas direitas vêm se levantando contra esse marxismo cultural, que, banalizações pseudointelectuais à parte, atribuem, aqui no Brasil, a Gramsci e, nos EUA, à Escola de Frankfurt. Vou me referir apenas ao marxista italiano.
Se deixarmos de lado o viés conspiratório de personalidades bizarras como Olavo de Carvalho e do futuro chanceler Ernesto Araújo, e se tentarmos nos munir do realismo analítico e dos conceitos de Gramsci para entender o processo político brasileiro, quem lançou mão, a qualquer preço, do “gramscismo” tão denunciado pelos conservadores, a não ser eles próprios?
Na elaboração teórica de Gramsci, destaca-se a reflexão sobre a questão da hegemonia, que diz respeito aos aspectos culturais e ideológicos do exercício da liderança política. Hegemonia diz respeito à dimensão não coercitiva da dominação, quando esta se sustenta em uma direção política de natureza moral, intelectual e ideológica, ficando a força como retaguarda e salvaguarda indispensável, mas não como vanguarda. Hegemonia e legitimidade são conceitos muito próximos.
Imagino que, se efetivamente o processo de transformação democrática do capitalismo e no capitalismo tentado nos governos Lula e Dilma tivesse sido apoiado não somente nas decisões de políticas públicas, mas também em uma estratégia clara e explícita de publicização política do programa transformador, poderia ter havido mais êxito na construção de uma base de apoio consciente das características da mudança em curso.
Lula se esforçou nesse sentido, mas não o suficiente, pois a própria estratégia não foi definida com precisão. Por exemplo: ele disse, desde a posse, que queria que todos os brasileiros fizessem três refeições diárias. Ou seja, aliou-se aos pobres. Mas falou várias vezes, também, que os empresários nunca ganharam tanto dinheiro quanto em seus governos. Isto é, ele não foi de encontro aos ricos, pelo contrário. (Bater de frente contra a dominação do capital me parece uma opção temerária.)
O maior líder petista defendeu várias vezes a democracia como diálogo, como participação e como inclusão social, mas também implementou várias ações nesse sentido, como as conferências nacionais de políticas públicas e direitos e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o chamado Conselhão, reunindo atores do Estado e da sociedade civil.
Em todo o caso, faltou politizar, no sentido de unificar ação e pensamento, prática e teoria. Faltou a politização enquanto processo de explicitação do projeto e de esclarecimento contínuo – para o governo, para o PT, para a base aliada, para o eleitorado em geral, para os trabalhadores, para as frações de classe da burguesia – do que era o social-desenvolvimentismo (rótulo que, avalio, melhor expressa o que se tentou fazer de Lula ao fim do primeiro mandato de Dilma) e do que é o neoliberalismo.
Quais as características de um e de outro modelo de capitalismo? Onde o país estava, para onde a prática governamental queria induzi-lo a chegar e qual seria o programa de transição? Que forças precisariam alavancar o social-desenvolvimentismo e como elas promoveriam a concertação? Quem se opunha ao modelo proposto e por qual motivo? Embora as pressões estruturais das relações econômicas e interesses neoliberais, a começar na política macroeconômica, fossem imensas, ensejando algumas tendências de compromisso nessa área, como se poderia alcançar um arranjo monetário, cambial e fiscal mais favorável ao crescimento com distribuição de renda?
Um projeto de transformação social, sobretudo quando ele possui uma vocação volitiva nacional e popular, precisa de estratégia, requer aliados e ideias. Isso é especialmente importante quando se nada contra a correnteza, dada a resiliência do neoliberalismo, mesmo no contexto da maré rosa na América Latina, na primeira década desse século 21, e também na segunda década, quando, nos desdobramentos da crise de 2008, emergiu na OCDE uma nova ofensiva apoiada na ortodoxia econômica, em torno da consolidação fiscal, impactando ideologicamente e politicamente outras regiões do mundo.
Uma boa comunicação política da estratégia também é fundamental. Ademais, pesou a pedagogia do exemplo, desperdiçada pelo envolvimento do PT em práticas irregulares de financiamento eleitoral. Liderança depende de valores, de legitimidade, de ideias-força eticamente lastreadas.
O partido que mais defendeu a reforma política acabou sendo prejudicado por não ter conseguido realizá-la, ao passo que os que mais se opuseram ao fim do financiamento empresarial, entre eles Bolsonaro, levaram a melhor, dada a hipocrisia e o ilusionismo que estão no cerne do combate à corrupção.
Enfim, transformação econômica, social e política depende de liderança, de coalizão envolvendo atores sociais e partidários, uma coalizão em torno de um programa, com seus protagonistas munidos de capacidade política e técnica para implementá-lo.
Penso que o mais viável é um programa alternativo ao neoliberalismo, um programa social-desenvolvimentista, cujas diretrizes principais precisam estar claras para o conjunto dos atores, da liderança aos apoiadores: um modelo econômico centrado na produção e no emprego, na geração de renda para o capital produtivo, para o trabalho assalariado e para os cofres públicos; o combate às desigualdades (social, racial, de gênero e regional) associado à inclusão da cidadania nos sistemas econômico e político; o aumento da arrecadação tributária através do crescimento do produto; a reforma tributária progressiva; a reforma política para fortalecer os partidos (e reduzir a fragmentação partidária), a representação, a participação e o controle democrático do Estado; a regulação contra a concentração da propriedade da mídia (conforme determina o Art. 220 da Constituição Federal); o fortalecimento do Estado republicano, para garantir os direitos civis, políticos e sociais e minimizar a captura do poder público pelas oligarquias, como tem sido a maioria dos representantes políticos e a burocracia togada. Outros pontos-chave podem compor esse programa.
No momento, que talvez não dure muito, quem efetivamente está implementando bem a tal metodologia da hegemonia cultural é a extrema-direita, com sua indústria de fake news, com seu exército neopentecostal, com seu discurso fácil e maniqueísta contra a corrupção, com sua aliança com a burocracia togada de Moro & cia. e demais elites do aparato repressivo, mas também com a indústria da mídia e, sobretudo, com o mercado e com seus acenos a Washington.
Nessa empreitada, diversos aparelhos privados de hegemonia (grande mídia, igrejas, organizações de representação de classe, universidades privadas, famílias, enfim) jogaram um papel importante na missão de desconstrução da imagem pública do PT, missão que operou, ao fim e ao cabo, como um fato-processo social coordenado sistemicamente, mesmo que sem necessariamente contar com uma direção centralizada.
Mas, Gramsci apreende o Estado como ditadura e hegemonia, coerção e consenso. O “projeto” do presidente eleito também tem se apoiado em intimidações e violências e não parece disposto a deixar de fazê-lo. Ainda que, na equação política de Bolsonaro, a variável da hegemonia tenha tido um destaque, trata-se de um uso um tanto quanto peculiar de dimensão moral e intelectual do poder, pois a imoralidade, a amoralidade e a anti-intelectualidade, sob roupagens disfarçadas, que enganam os desavisados, compõem de tal modo sua ação política que, ao fim e ao cabo, alimenta-se a subcultura autoritária.
Coerentemente, a autoritarismo nu e cru é cultivado pela liderança dessa coalizão conservadora, em que se alinham militares da reserva saudosistas do combate ao “comunismo”, magistrados dispostos a relativizar o regime ditatorial de 1964-1985 e empresários descomprometidos com os direitos civis e políticos, todos apoiadores do golpe de Estado contra Dilma Rousseff.
Mas a hegemonia e a legitimidade dependem, por um lado, de valores, de aspectos simbólicos, e, por outro lado, de pressupostos materiais mínimos, de resultados, de desempenho. Que resultados se pode esperar de um ultraliberalismo de extrema-direita? E o que o “partido da esquerda” democrática e eleitoralmente competitiva tem a oferecer como projeto de vontade coletiva transformadora nessa nova quadra histórica nacional?
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