Em junho do ano passado, o governo Temer enviou para a Câmara o Projeto de Lei nº 10.431/2018, alegando que precisava ser aprovado com urgência, para que o Brasil se adequasse às exigências internacionais de cumprimento das resoluções do Conselho de Segurança da ONU que determinassem o bloqueio de bens de pessoas acusadas de atos terroristas ou de financiamento do terrorismo. Sérgio Moro tem atuado pela aprovação do projeto desde outubro, com os mesmos argumentos. Em 12/2, os deputados o aprovaram. Ele começará, agora, a tramitar no Senado.
O discurso do governo é simplesmente mentiroso. O Brasil já conta com uma lei para garantir a rápida execução das sanções de bloqueio de bens determinadas pelo Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Trata-se da Lei nº 13.170, de 2015, segundo a qual a Advocacia-Geral terá até 24 horas para pedir ao Judiciário que execute essas sanções definidas pelo CSNU, e o juiz determinará, em no máximo outras 24 horas, o seu cumprimento. Somente depois de executadas as medidas, as pessoas físicas ou jurídicas afetadas serão intimadas pelo juiz, para que possam se defender e tentar desbloquear os bens.
O Projeto de Lei encaminhado por Temer, e defendido por Moro e Bolsonaro, visa justamente a revogar a Lei nº 13.170, de 2015, gerando três mudanças significativas, de extrema gravidade.
(I) Mudança na “designação nacional” de terroristas: a possibilidade de o governo bloquear bens de movimentos sociais sem controle do Judiciário
A Lei nº 13.170, de 2015, determinava que o Ministério da Justiça deve informar o Ministério das Relações Exteriores sobre sentenças judiciais condenatórias relacionadas à prática de atos terroristas, para que, quando necessário, estas sejam encaminhadas ao Conselho de Segurança da ONU – para facilitar o bloqueio dos bens dessas pessoas físicas ou jurídicas em outros países, por exemplo. Esse procedimento recebe o nomes de “designação nacional”, porque diz respeito à indicação de terroristas (ou seus financiadores) pelo Brasil, para que sejam incluídos na lista da ONU.
O Projeto de Lei defendido por Moro cria uma hipótese absurda, no art. 25: a de que basta um pedido da Polícia Federal ou do Ministério Público, sem necessidade de ordem judicial, para que o governo brasileiro faça a outros países o pedido de indisponibilidade de bens em razão de terrorismo ou seu financiamento. A Polícia Federal está subordinada ao Ministério da Justiça; em suma, o governo não teria nenhum mecanismo de controle para impedi-lo de pedir arbitrariamente a seus aliados da extrema-direita de outros países – como Colômbia – que bloqueiem bens da Via Campesina (organização internacional de movimentos camponeses, integrada por movimentos como o MST, a Comissão Pastoral da Terra e o MAB, movimento dos atingidos por barragens), por exemplo, por rotular como “terroristas” suas ocupações de latifúndios.
Para piorar ainda mais, a redação vaga de outro dispositivo do projeto (art. 3º, III), combinada com o art. 25, abria margem para que também bastasse um pedido da Polícia Federal para o governo determinar o bloqueio de bens de pessoas e movimentos dentro do Brasil, sem qualquer controle judicial ou defesa prévia.
A oposição denunciou essas arbitrariedades, e conseguiu que esses dois dispositivos fossem suprimidos, ontem, quando o PL foi aprovado na Câmara dos Deputados. Porém, ainda subsistiram graves retrocessos no texto, motivo pelo qual o PSOL e o PT votaram pela rejeição do projeto. Indicamos esses pontos a seguir.
(II) O procedimento de exceção para o cumprimento de sanções do Conselho de Segurança da ONU, sem possibilidade de ampla defesa ou controle de legalidade pelo Judiciário
O projeto de lei determina que as resoluções do Conselho de Segurança da ONU que versarem sobre terrorismo, financiamento ao terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa são dotadas de executoriedade imediata no Brasil. Isso significa que, uma vez que o Conselho de Segurança determine o bloqueio dos bens de uma pessoa física ou jurídica, ou a proibição de entrada ou saída de alguém do território nacional, as empresas que atuam no Brasil deverão automaticamente cumprir a sanção: bloquear contas bancárias dos acusados, por exemplo.
Somente se não houver o cumprimento da decisão, o Ministério da Justiça fará o pedido ao Judiciário, que terá prazo de 24 horas para determinar as medidas pertinentes para o cumprimento da sanção. A pessoa afetada poderá, então, impugnar a sanção, mas, segundo o projeto de lei, poderá alegar somente que foi excluída da lista de sanções do CSNU (ou que o prazo da sanção expirou), que houve erro na sua identificação ou dos ativos a serem bloqueados. Não poderá aduzir, em sua defesa, argumentos de direito ou outras razões de fato. Diferentemente da Lei nº 13.170, de 2015, portanto, o PL nº 10.431/2018 impede o Poder Judiciário brasileiro de realizar o controle da legalidade dos atos do Conselho de Segurança da ONU.
Obviamente, o terrorismo merece todo repúdio – como está inscrito, aliás, no art. 4º, VIII, da nossa Constituição. Em nome do imprescindível enfrentamento ao terrorismo, entretanto, não se pode admitir que sejam jogados na lata do lixo os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, e a garantia fundamental de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, cláusulas pétreas da nossa Constituição (art. 5º, LV e XXXV, respectivamente).
Observe-se, aliás, que a Corte Europeia de Justiça decidiu, no caso Kadi, em 2008, que deveria ser anulado o ato da União Europeia que bloqueou bens de um cidadão, com base em resolução do Conselho de Segurança da ONU, que incluíra seu nome na lista de supostos terroristas. A decisão afirmou que o ato violava a Carta da União Europeia, ao impor sanções definidas de modo arbitrário pelo Conselho de Segurança da ONU, ignorando o direito ao devido processo legal, e sem apresentar justificativa para elas. O professor brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade – maior referência brasileira em Direito Internacional, ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, atual Juiz da Corte Internacional de Justiça, em Haia – já se manifestou de modo favorável à decisão da Corte Europeia, e da possibilidade de controle de legalidade das decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Na versão do texto aprovada pela Câmara, estabeleceu-se somente que, ao invés de imediatamente executáveis, as resoluções do CSNU devem ser internalizadas por ato sigiloso do Ministério da Justiça, para que tenham eficácia na nossa ordem interna. Permaneceram, no entanto, os retrocessos fundamentais que consistem na essência do projeto, em comparação com a Lei que já tratava do tema: mantiveram-se a vedação ao controle judicial da legalidade da sanção do CSNU e a violação aos direitos ao contraditório e ampla defesa.
A ampliação do Estado de exceção, pelo PL, é ainda mais grave porque não se aplica somente ao bloqueio de bens, mas a quaisquer sanções determinadas pelo Conselho de Segurança da ONU, envolvendo terrorismo e seu financiamento, ou proliferação de armas de destruição em massa. O PL cita, exemplificativamente, que o mesmo rito sumário – sem autorização prévia de um juiz, nem possibilidade posterior de exercício de ampla defesa nem efetivo controle de legalidade por parte do Judiciário – aplica-se também a sanções como as de entrada e saída de pessoas do território nacional.
(III) Construindo as bases jurídicas para a “Operação Condor 2.0”?
O PL dedica um capítulo inteiro, por fim, a instituir uma nova hipótese de rito sumário para bloqueio de bens de pessoas acusadas de terrorismo: a requerimento de autoridades estrangeiras. Para estes casos, os Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores avaliarão se o pedido tem “bases razoáveis”, e encaminharão o pedido à Justiça, que deverá executar a sanção em até 24 horas, abrindo-se prazo posterior para que a pessoa acusada possa se defender. Neste caso (contrariamente ao que estabelece para o cumprimento das sanções do CSNU), o PL explicita que a defesa poderá alegar a “ausência de bases razoáveis para estabelecer a relação entre os ativos e os fatos investigados”.
O absurdo, aqui, é a possibilidade de execução sumária de uma sanção contra uma pessoa física ou jurídica, sem prévia defesa, a pedido de qualquer autoridade estrangeira, como resultado de “investigações administrativas ou criminais e ações em curso”. Não se exige, portanto, que o pedido tenha por base uma sentença judicial, nem sequer tenha tido qualquer espécie de controle judicial, no país de origem nem no Brasil.
Suponhamos que os governos do Brasil, Chile e Colômbia, atualmente governados por forças da direita mais extremada, articulem-se para promover uma perseguição conjunta a movimentos sociais. Imaginemos que o Chile – que já utilizou a Lei Antiterrorista, há anos, para criminalizar a resistência indígena Mapuche – criminalize como terrorista a Resistência Urbana (articulação internacional de movimentos que atuam nas cidades, como o MTST, brasileiro, e o chileno Movimiento de Pobladores Ukamau, entre outros). Sem qualquer processo judicial, caso peça ao Brasil que bloqueie os bens do MTST, esse pedido será submetido somente à análise dos Ministros da Justiça e das Relações Exteriores do governo Bolsonaro, antes de ser executado.
Diante do avanço da articulação internacional da extrema-direita, esse PL torna-se ainda mais preocupante por facilitar, mediante a suspensão de direitos e garantias, que governos “cooperem” para perseguirem pessoas e movimentos sociais. Ninguém poderá alegar surpresa, caso seja um dos instrumentos da edição de uma nova Operação Condor, levada a cabo entre ditaduras sul-americanas nas décadas de 1970 e 1980, com cooperação da CIA, para coordenar a perseguição, tortura e eliminação de militantes de esquerda.
(IV) Um projeto feito sob encomenda do GAFI: “Guerra ao terror”, Estado de exceção global e o mercado financeiro
Não é novidade que a “guerra ao terror” tenha se constituído, em especial após os atentados de 11 de setembro de 2001, como o grande discurso de justificação do aprofundamento das medidas de exceção no mundo, em especial por parte dos Estados Unidos, que promoveram guerras, tortura e grampos ilegais como políticas sistemáticas, além das dezenas de prisões secretas ilegais da CIA, espalhadas por diversos países.
Outra tônica da guerra ao terror, que aparece no PL nº 10.431/2018, tem sido excluir do Poder Judiciário a possibilidade de apreciar e anular sanções executadas pelos governos, quando a alegação é de combate ao terrorismo. Por vezes, os próprios juízes acataram, vergonhosamente, essa barreira ao controle de legalidade dos atos do Poder Executivo. Foi esse o caso da Suprema Corte dos EUA, no paradigmático e absurdo caso Maher Arar, há alguns anos: o mais alto tribunal estadunidense recusou-se a sequer examinar o recurso desse cidadão canadense, que fora arbitrariamente acusado de terrorista pela CIA, deportado e mantido preso por mais de um ano, sob torturas, em uma prisão secreta no Oriente Médio, para ao final, constatada sua completa inocência, ser solto, sem receber qualquer indenização por parte do governo estadunidense.
Além de promover violações massivas de direitos, a “guerra ao terror” obviamente não foi eficaz no enfrentamento ao terrorismo. O objetivo real, claro, nunca foi esse; afinal, os Estados Unidos, que utilizaram sua força para promover essa política globalmente, como um dos principais eixos de sua política exterior neste século, têm uma longa trajetória – que se estende até o presente – de terrorismo de Estado e de financiamento e apoio a diversos grupos terroristas, inclusive a Al Qaeda e o Estado Islâmico (ISIS). Sobre o tema, leia-se o indispensável livro “A origem do Estado Islâmico: o fracasso da Guerra ao Terror e a ascensão jihadista”, de Patrick Cockburn.
A “guerra ao terror”, a serviço do aprofundamento global dos mecanismos de exceção, serve a outros interesses. Quando observamos qual a origem das pressões para que o Brasil tenha aprovado a Lei Antiterrorismo, em 2016, e encaminhe agora esta nova lei que suspende direitos e garantias cidadãs, entendemos que interesses são esses.
Diversos ministros, desde o governo Dilma até o de Bolsonaro, argumentam que essas Leis seriam necessárias para atender às recomendações do GAFI, o Grupo de Ação Financeira Internacional. Criado em 1989, pelos Ministros do G-7 (países mais ricos do mundo), o GAFI é um grupo intergovernamental destinado a elaborar propostas de combate à lavagem de dinheiro e, desde o 11 de setembro, ao terrorismo. Suas recomendações não são vinculantes juridicamente, não geram nenhum tipo de obrigação do ponto de vista do direito internacional. Há uma chantagem econômica, porém, por parte do mercado financeiro internacional: as agências internacionais de classificação de risco ameaçam rebaixar o status de investimento de um país, caso não cumpra as recomendações do grupo.
Com base nessa coerção econômica informal, o GAFI tem orientado e pressionado governos a violarem as liberdades de associação e de manifestação de movimentos sociais. O professor Eduardo Cambi e o pesquisador Felipe Ambrosio registram que “em fevereiro de 2012, a Transnational Institute e a Statewatch, duas organizações internacionais, após realizarem ampla pesquisa sobre o teor das reformas legais nacionais deflagradas pela Recomendação Especial VIII do GAFI, demonstraram que o sistema de avaliação desse organismo aprovou alguns dos mais restritivos regimes regulatórios de organizações sem fins lucrativos de todo o mundo, e encorajou fortemente governos que já têm caráter repressivo a introduzir novas regras capazes de restringir ainda mais o espaço político de ONGs e atores da sociedade civil” (ver aqui). Nos Estados Unidos, inclusive, a legislação antiterror tem sido utilizada para criminalizar grupos ambientalistas, como verifica a pesquisadora Veronica Freitas.
O relatório da Transnational Institute e da Statewatch, citado por Cambi e Ambrosio, conclui ainda que a “falta de controle democrático, fiscalização e accountability” sobre o GAFI “tem permitido regulações que violam os direitos humanos, a proporcionalidade e a efetividade”, mas que são propagandeadas como parte dos “padrões da boa governança” do sistema financeiro internacional.
O Brasil não deve se submeter a essa chantagem. Não é verdade que o descumprimento de recomendações do GAFI leve, por si só, ao rebaixamento do status de risco de investimento no país. Além disso, segundo explicam o professor Marcus Faro de Castro e o advogado Thiago Jabor (aqui, aqui, aqui e aqui), as chamadas agências de classificação de risco não passam de empresas privadas, que adotam critérios desprovidos de transparência, independência ou controle democrático, com métodos ocultos, muitas vezes protegidos por regras de propriedade intelectual. Não são instituições confiáveis, não ajudaram a prevenir a grande crise do capitalismo iniciada em 2007-2008 – nascida justamente a partir do setor financeiro dos Estados Unidos, que sempre recebeu a melhor avaliação de risco por parte das agências, que lucram com a ciranda das bolsas de valores. “Até mesmo entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI)”, adverte o professor Marcus Faro, “têm procurado sugerir que as ACRs sejam marginalizadas do processo de avaliação de riscos financeiros. Contudo, curiosamente, em nenhum dos seus aspectos, a atuação dessas agências foi considerada ilícita até hoje”.
Devemos abandonar, ademais, a ilusão neoliberal com a atração de capitais externos, como suposto grande meio para garantir o desenvolvimento nacional. Até mesmo economistas ortodoxos, antigos adeptos dessa tese, como o ex-Ministro de FHC Bresser-Pereira, convenceram-se de que essa estratégia é capaz somente de reafirmar nossa condição subdesenvolvida, periférica e dependente. O caminho para o desenvolvimento brasileiro não é a submissão às exigências dos países e instituições o capitalismo central, mas a desobediência – segundo argumenta, com base na observação empírica da história, o economista Ha-Joon Chang, professor de Cambridge, no já clássico livro “Chutando a escada”.
Observe-se, por fim, a seletividade e hipocrisia dos próceres da direita brasileira, em sua oscilação entre discurso nacionalista conservador e prática de reiterada submissão às grandes potências. Recusam-se a cumprir a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por não responsabilizar os agentes do Estado que praticaram tortura e outros crimes de lesa-humanidade durante a ditadura empresarial-militar de 1964-85. Recusaram-se a cumprir a recomendação do Conselho de Direitos Humanos da ONU para que se assegurasse ao ex-Presidente Lula o direito de ser candidato, no ano passado. Mas querem cumprir com celeridade as recomendações do GAFI, um mero grupo informal, criado pelos países ricos para promover seus interesses, e as decisões do Conselho de Segurança da ONU – órgão que precisa ser reformado, para que construamos uma ordem internacional multipolar, equilibrada, com maior peso e voz para a maioria dos países, que são os países periféricos ou subdesenvolvidos.
O efetivo combate ao terrorismo exige, sim, cooperação internacional, mas a partir de outro internacionalismo: a partir das periferias do mundo, vocacionado a transformar uma ordem mundial injusta e violenta, em que o terrorismo aparece como arma dos Estados e subproduto – injustificável – das situações de caos social e anomia que produzem.
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