Por Roberto Amaral, em seu blog:
A insurgência que domina as ruas de nossos vizinhos, abalando os alicerces do establisment, desmontando mitos de estabilidade, é a resposta anunciada ao fracasso do neoliberalismo e de sua política de supressão de direitos, pari passu à acumulação de riqueza pela extremada minoria de 1% de beneficiários que em nossos países controlam a economia e todas as expressões de poder. A política econômica que elevou a pobreza no Chile a níveis insuportáveis – filha da ditadura Pinochet –, é a matriz da insana “Pauta Guedes” que aprofunda a desigualdade social, reduz a quase zero os investimentos geradores de emprego, ao tempo em que desfia a rede de proteção social que remonta ao trabalhismo de Vargas.
Não contem, porém, os mais afoitos, com a reprodução mecanicista, entre nós, da resistência e dos levantes que hoje percorrem a América espanhola como rastilho de pólvora. Entre nossos vizinhos, além de uma maturação de dezenas de anos de lutas e resistência, há de se considerar os avanços da organização social em contraste com a crise brasileira dos partidos e da mobilização popular. Ademais de tudo o que parece tão óbvio, é bom relembrar que os processos sociais guardam suas especificidades, e, em nosso continente contrapõem a velocidade das mudanças políticas entre os vizinhos hispânicos ao ritmo notavelmente mais lento das mudanças no Brasil.
Feitas as ressalvas necessárias - até porque o registro de hoje ainda anota o avanço do conservadorismo de extrema-direita -, é de supor que a continuidade do projeto neoliberal nos reserva dias de profunda gravidade.
Mas o processo social, embora as rupturas à vezes preguem surpresa nos analistas, não é fruto nem dos céus nem do acaso.
O que serão os dias vidouros, e o que eles nos reservam, será ditado pelo nível de organização a que chegarem as grandes massas.
Neste país de imoral concentração de renda, sobrevivem como podem cerca de 28 milhões de brasileiros classificados como “mão de obra subutilizada” e um pouco menos de 13 milhões de desempregados. A categoria dos sem carteira assinada no setor privado bateu recorde na série histórica. Os números, em sua crueza (e ainda não dizem tudo), simplesmente traduzem o apreço que nossas ‘elites’ rentistas têm pelo país e sua gente, massa de manobra para o lucro concentrado. A propósito, e trata-se, apenas de um indicador, o lucro do Bradesco no último trimestre, diz o G1 (31.11.19), cresceu 16,5%; no acumulado do ano o lucrou chega a 17,7 bilhões, uma alta de 26,4% na comparação com o mesmo período de 2018. E não se trata de fato isolado. Aguardemos os balanços do Itaú e do Santander. Assim se revela de corpo inteiro o caráter da pauta econômica, a serviço dos donos do poder. Na equação das políticas governamentais e nas planilhas dos prepostos da classe dominante não há espaço para o povo.
Filha do colonizador ibérico, herdeira do escravismo e do monopólio da terra, nossa classe dominante fez-se rica graças a um desenvolvimento predatório da terra e de sua gente. Vive ainda hoje de costas para o país e seu destino, com um pé na terra que explora e outro na metrópole dominante, para onde se voltam também seus sonhos e de onde recolhe ideologia. Sua riqueza é o outro lado da exploração de nossos povos mediante a estrutura social que montou. Para essa gente, como lembrava Celso Furtado, o capital humano só tem relevância como força de trabalho.
O neoliberalismo anacrônico aguça a selvageria do capitalismo brasileiro, aprofunda a insanável oposição entre os interesses das classes dominantes e as demandas populares por cidadania, e não há cidadania nem democracia que se preze quando as populações são punidas com o desemprego, o subemprego e a marginalização. Daí a repressão do Estado de classe -- variável em tom segundo o desafio- - nas poucas oportunidades em que o processo social enseja a emergência das massas, reivindicando seus direitos, porque neoliberalismo econômico é incompatível com a plenitude democrática, e a eventual continuidade da “Pauta Guedes” depende do avanço do Estado autoritário pelo qual forcejam o capitão Bolsonaro e sua trupe, e, por isso mesmo, se entrelaçam as lutas sociais e o aprofundamento do processo democrático, sempre ameaçado entre nós ;or constituir uma garantia do avanço do processo social.
Quando estão dadas todas as condições para a agudização da crise social, o governo aposta na contenção da economia, em nome de um ajuste fiscal que não leva em conta a necessidade urgente de retomada do desenvolvimento, a única alternativa até aqui conhecida para enfrentar o desemprego e a fome.
Maria da Conceição Tavares (Insigth Inteligência.n.86) nos adverte que “O Brasil caminha para fechar a década com sua pior performance econômica nos últimos 120 anos. A construção pesada deve cair 40% no acumulado de cinco anos. O peso da indústria no PIB desabará para o menor nível desde que a série histórica é calculada (...) Os desempregados, os subempregados, desalentados e o precariado que inundam o país somam 40 milhões de brasileiros, recorde de iniquidade de todos os tempos”. As alternativas a esse quadro, ensina ainda Conceição, são os investimentos e o emprego [este dependente daquele], mas o neoliberalismo aposta na contração da economia e na supressão de direitos sociais.
Ao invés de desenvolvimento, as expectativas são, pois, de um pífio crescimento do PIB em algo jamais superior a 1%, clamoroso contraste com aquele Brasil do Estado desenvolvimentista que fenece sob a égide de Bolsonaro-Guedes-Maia quando, nomeadamente entre 1950 e 1980, o Brasil cresceu, em média, 4,5% ao ano, e nos governos Lula enfrentou o tsunami da crise do capitalismo internacional e ainda reduziu as desigualdades sociais e evitou que se instalassem os efeitos da estagnação.
A lição foi desaprendida, mesmo após os fracassos de Collor e FHC, principalmente no segundo mandato do ex-“príncipe de nossos sociólogos”, que, ao final, nos deixou de cócoras diante do capital internacional, de bolsos vazios e a braços com a crise fiscal.
Apesar da estabilização dos preços (marco do primeiro mandato), o desenvolvimento não foi retomado, derrotado, mais uma vez, por uma política econômica liberal, cacoete ideológico da classe dominante, incompatível com desenvolvimento e progresso social cujo cerne é a distribuição de renda.
O preço de tanta vilania será cobrado pela história, mais cedo ou mais tarde, como antecipam chilenos, equatorianos e, por outros meios, bolivianos, uruguaios e argentinos que acabam de derrotar o neoliberalismo de Macri que levou a economia de seu país aos frangalhos, o mesmo destino que nos espera, se o bolsonarismo não for contido tempo.
Se nossa retrógrada e perversa classe dominante estiver disposta colher alguma lição do que ocorre no mundo (a ebulição social não deixou o Iraque e já chegou ao Líbano, à Ásia com Hong Kong e à Europa), é a de que as grandes massas, em algum momento que os sismógrafos da ciência política não podem antecipar, tendem a assumir o papel de sujeito histórico e avançam politicamente por não estarem mais dispostas a aceitar as condições em que vivem. Os sistemas, por mais fechados e autoritários, não serão capazes de conter a frustração de expectativas.
Wanderley Guilherme dos Santos
A insurgência que domina as ruas de nossos vizinhos, abalando os alicerces do establisment, desmontando mitos de estabilidade, é a resposta anunciada ao fracasso do neoliberalismo e de sua política de supressão de direitos, pari passu à acumulação de riqueza pela extremada minoria de 1% de beneficiários que em nossos países controlam a economia e todas as expressões de poder. A política econômica que elevou a pobreza no Chile a níveis insuportáveis – filha da ditadura Pinochet –, é a matriz da insana “Pauta Guedes” que aprofunda a desigualdade social, reduz a quase zero os investimentos geradores de emprego, ao tempo em que desfia a rede de proteção social que remonta ao trabalhismo de Vargas.
Não contem, porém, os mais afoitos, com a reprodução mecanicista, entre nós, da resistência e dos levantes que hoje percorrem a América espanhola como rastilho de pólvora. Entre nossos vizinhos, além de uma maturação de dezenas de anos de lutas e resistência, há de se considerar os avanços da organização social em contraste com a crise brasileira dos partidos e da mobilização popular. Ademais de tudo o que parece tão óbvio, é bom relembrar que os processos sociais guardam suas especificidades, e, em nosso continente contrapõem a velocidade das mudanças políticas entre os vizinhos hispânicos ao ritmo notavelmente mais lento das mudanças no Brasil.
Feitas as ressalvas necessárias - até porque o registro de hoje ainda anota o avanço do conservadorismo de extrema-direita -, é de supor que a continuidade do projeto neoliberal nos reserva dias de profunda gravidade.
Mas o processo social, embora as rupturas à vezes preguem surpresa nos analistas, não é fruto nem dos céus nem do acaso.
O que serão os dias vidouros, e o que eles nos reservam, será ditado pelo nível de organização a que chegarem as grandes massas.
Neste país de imoral concentração de renda, sobrevivem como podem cerca de 28 milhões de brasileiros classificados como “mão de obra subutilizada” e um pouco menos de 13 milhões de desempregados. A categoria dos sem carteira assinada no setor privado bateu recorde na série histórica. Os números, em sua crueza (e ainda não dizem tudo), simplesmente traduzem o apreço que nossas ‘elites’ rentistas têm pelo país e sua gente, massa de manobra para o lucro concentrado. A propósito, e trata-se, apenas de um indicador, o lucro do Bradesco no último trimestre, diz o G1 (31.11.19), cresceu 16,5%; no acumulado do ano o lucrou chega a 17,7 bilhões, uma alta de 26,4% na comparação com o mesmo período de 2018. E não se trata de fato isolado. Aguardemos os balanços do Itaú e do Santander. Assim se revela de corpo inteiro o caráter da pauta econômica, a serviço dos donos do poder. Na equação das políticas governamentais e nas planilhas dos prepostos da classe dominante não há espaço para o povo.
Filha do colonizador ibérico, herdeira do escravismo e do monopólio da terra, nossa classe dominante fez-se rica graças a um desenvolvimento predatório da terra e de sua gente. Vive ainda hoje de costas para o país e seu destino, com um pé na terra que explora e outro na metrópole dominante, para onde se voltam também seus sonhos e de onde recolhe ideologia. Sua riqueza é o outro lado da exploração de nossos povos mediante a estrutura social que montou. Para essa gente, como lembrava Celso Furtado, o capital humano só tem relevância como força de trabalho.
O neoliberalismo anacrônico aguça a selvageria do capitalismo brasileiro, aprofunda a insanável oposição entre os interesses das classes dominantes e as demandas populares por cidadania, e não há cidadania nem democracia que se preze quando as populações são punidas com o desemprego, o subemprego e a marginalização. Daí a repressão do Estado de classe -- variável em tom segundo o desafio- - nas poucas oportunidades em que o processo social enseja a emergência das massas, reivindicando seus direitos, porque neoliberalismo econômico é incompatível com a plenitude democrática, e a eventual continuidade da “Pauta Guedes” depende do avanço do Estado autoritário pelo qual forcejam o capitão Bolsonaro e sua trupe, e, por isso mesmo, se entrelaçam as lutas sociais e o aprofundamento do processo democrático, sempre ameaçado entre nós ;or constituir uma garantia do avanço do processo social.
Quando estão dadas todas as condições para a agudização da crise social, o governo aposta na contenção da economia, em nome de um ajuste fiscal que não leva em conta a necessidade urgente de retomada do desenvolvimento, a única alternativa até aqui conhecida para enfrentar o desemprego e a fome.
Maria da Conceição Tavares (Insigth Inteligência.n.86) nos adverte que “O Brasil caminha para fechar a década com sua pior performance econômica nos últimos 120 anos. A construção pesada deve cair 40% no acumulado de cinco anos. O peso da indústria no PIB desabará para o menor nível desde que a série histórica é calculada (...) Os desempregados, os subempregados, desalentados e o precariado que inundam o país somam 40 milhões de brasileiros, recorde de iniquidade de todos os tempos”. As alternativas a esse quadro, ensina ainda Conceição, são os investimentos e o emprego [este dependente daquele], mas o neoliberalismo aposta na contração da economia e na supressão de direitos sociais.
Ao invés de desenvolvimento, as expectativas são, pois, de um pífio crescimento do PIB em algo jamais superior a 1%, clamoroso contraste com aquele Brasil do Estado desenvolvimentista que fenece sob a égide de Bolsonaro-Guedes-Maia quando, nomeadamente entre 1950 e 1980, o Brasil cresceu, em média, 4,5% ao ano, e nos governos Lula enfrentou o tsunami da crise do capitalismo internacional e ainda reduziu as desigualdades sociais e evitou que se instalassem os efeitos da estagnação.
A lição foi desaprendida, mesmo após os fracassos de Collor e FHC, principalmente no segundo mandato do ex-“príncipe de nossos sociólogos”, que, ao final, nos deixou de cócoras diante do capital internacional, de bolsos vazios e a braços com a crise fiscal.
Apesar da estabilização dos preços (marco do primeiro mandato), o desenvolvimento não foi retomado, derrotado, mais uma vez, por uma política econômica liberal, cacoete ideológico da classe dominante, incompatível com desenvolvimento e progresso social cujo cerne é a distribuição de renda.
O preço de tanta vilania será cobrado pela história, mais cedo ou mais tarde, como antecipam chilenos, equatorianos e, por outros meios, bolivianos, uruguaios e argentinos que acabam de derrotar o neoliberalismo de Macri que levou a economia de seu país aos frangalhos, o mesmo destino que nos espera, se o bolsonarismo não for contido tempo.
Se nossa retrógrada e perversa classe dominante estiver disposta colher alguma lição do que ocorre no mundo (a ebulição social não deixou o Iraque e já chegou ao Líbano, à Ásia com Hong Kong e à Europa), é a de que as grandes massas, em algum momento que os sismógrafos da ciência política não podem antecipar, tendem a assumir o papel de sujeito histórico e avançam politicamente por não estarem mais dispostas a aceitar as condições em que vivem. Os sistemas, por mais fechados e autoritários, não serão capazes de conter a frustração de expectativas.
Wanderley Guilherme dos Santos
Com a morte de Wanderley Guilherme dos Santos a teoria política brasileira perde um de seus mais argutos formuladores, e o país um de seus mais instigantes intérpretes. O magistério perde um scholar, formador de quadros e discípulos. Pensador original, de extremado rigor científico, senhor de robusta formação humanística, e por isso mesmo adverso às ideias prontas, sempre aberto a procurar o novo, o não pensado, debruçou-se sobre a realidade brasileira e produziu algumas das mais originais interpretações da ciência política brasileira. Além de discípulos e escolas, deixa um legado institucional, como o IUPERJ, de que foi fundador (e onde formou diversas gerações de cientistas sociais), e a ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), de cuja criação participou. Sua rica contribuição bibliográfica (cerca de 40 livros publicados, um concluído horas antes do desenlace) servirá de guia para os que desejarem compreender, para nela intervir, a tragédia política de nossos dias.
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