domingo, 22 de dezembro de 2019

O gigantesco triunfo dos ricos

Por Greg Sargent, no site Carta Maior:

O triunfo dos ricos, uma das questões que definem nosso tempo, é geralmente descrito como sendo o reflexo de dois fatores. O primeiro, é claro, é a explosão da renda daqueles que ganham mais, em que uma minúscula minoria sugou uma parte crescente dos ganhos das últimas décadas de crescimento econômico.

O segundo fator – que será central para a corrida presidencial de 2020 – foi o declínio oculto da progressividade do código tributário para o topo da pirâmide, garantindo que os mais ricos tivessem, nestas mesmas décadas, seus impostos continuamente reduzidos.

Some esses dois fatores e está explicada a crescente desigualdade nos EUA que, de certa forma, é ainda mais dramática do que cada um por si.

Uma nova análise preparada a meu pedido por Gabriel Zucman – economista francês e "detetive da riqueza", famoso por rastrear a riqueza oculta dos super-ricos – ilustra essa história de uma maneira original e convincente.

A principal conclusão é: entre os 50% dos assalariados de renda mais baixa, a renda anual média real, mesmo após impostos e transferências, subiu 8 mil dólares desde 1970, passando de pouco mais de 19 mil dólares para pouco mais de 27 mil em 2018.

Na outra ponta, entre os 1% mais bem remunerados, a renda média mesmo após impostos e transferências triplicou desde 1970, aumentando em mais de 800 mil dólares, de pouco mais de 300 mil para mais de 1 milhão de dólares em 2018.

Já entre os 0,1% do topo, a renda média após impostos e transferências aumentou cinco vezes, de pouco mais de um milhão de dólares em 1970 para mais de 5 milhões em 2018. E entre os 0,01% mais do topo, o aumento foi de quase sete vezes, de pouco mais de 3,5 milhões para mais de 24 milhões de dólares.

Enfatizo a frase "após impostos e transferências", porque está no cerne da nova análise de Zucman. A ideia é mostrar o impacto combinado da explosão da receita antes de impostos no topo e a queda da taxação efetiva das mesmas pessoas – em um único resultado.

A progressividade em declínio do código tributário é o tema de “The Triumph of Injustice,” (O triunfo da injustiça, ainda sem tradução em português), um ótimo livro novo de Zucman e Emmanuel Saez, economista de Berkeley. Ele ilustra o lento estrangulamento dessa progressividade no topo.

Como demonstram, a taxa de imposto efetiva (impostos federais, estaduais, locais e outros) dos mais ricos vem diminuindo constantemente desde as décadas de 1950 e 1960, quando o código tributário era realmente bastante progressivo, até o ponto em que os grupos de renda mais alta pagam só um pouco mais, em termos percentuais, do que a base.

Em 2018, as 400 famílias com maior renda pagaram, pela primeira vez, uma taxa de imposto efetiva geral mais baixa do que os americanos da classe trabalhadora. Existem muitas razões para esse declínio radical da progressividade, incluindo a evasão fiscal nacional e internacional, a redução de impostos imobiliários e corporativos e o recorrente redimensionamento das principais taxas marginais.

Pedi a Zucman que calculasse os totais médios em valores brutos em dólares que cada grupo de renda ganhou ao longo das décadas – após impostos e transferências. Isso inclui impostos federais, estaduais e sobre a folha de pagamento de vários tipos e gastos do governo em programas de transferência como Seguro Social, Medicare, Medicaid e benefícios para portadores de deficiências e veteranos, entre outros.

Zucman é capaz de fazer isso porque ele e Saez criaram um banco de dados para fazer os cálculos do novo livro, e esse banco de dados inclui todas as informações sobre renda, impostos e transferência – em todos os níveis do governo – que eles foram capazes de coletar.

Aqui estão os resultados de Zucman:


Fonte: Gabriel Zucman e Emmanuel Saez (Gabriel Zucman / Greg Sargent)

Como observado, a renda real após impostos e transferências subiu um pouco entre os 50% da base, enquanto disparava a um nível extraordinário entre os grupos que ganham mais.

Enquanto isso, entre os americanos de classe média, no grupo que reúne de 50% a 90% da escala de renda (às vezes chamada "os 40% do meio"), a renda média passou de pouco mais de 44 mil dólares em 1970 para pouco mais de 75 mil em 2018.

"Após as transferências do governo, a renda das classes trabalhadora e média cresceu um pouco mais rápido do que anteriormente, mas ainda assim a taxa de crescimento da renda foi muito baixa", disse Zucman. "Para a classe trabalhadora, a renda após impostos e transferências aumentou muito pouco".

E no grupo que engloba de 10% a 1% do topo, a renda média passou de pouco mais de 90 mil dólares, em 1970, para mais de 185 mil em 2018. Para esse grupo, a renda dobrou – eles tiveram ganhos reais. A base, certamente, não os teve, e os ganhos dos 40% do meio foram comparativamente modestos.

Aqui está outra maneira de ver o que aconteceu na virada de cada década:


Fonte: Gabriel Zucman e Emmanuel Saez (Greg Sargent)

Tudo isso representa outra maneira de encarar o fenômeno que o filósofo político Samuel Moyn chamou de "vitória dos ricos".

Esses dados ajudam a desmontar argumentos comuns contra um código tributário muito mais progressivo. O investidor Leon Cooperman escreveu recentemente uma carta chorosa para a senadora Elizabeth Warren (Democrata-Massachusetts) – demonstrando o que Paul Krugman descreveu como o estranho traço bilionário de “autopiedade” – argumentando que os super-ricos já pagam muito e que o código tributário atual é mais progressivo do que se pensa, depois de computadas as transferências.

É verdade que os ricos podem pagar muito. Mas o fato de a renda após impostos ter chegado à estratosfera no topo do topo, mesmo quando as taxas de imposto efetivas caíram drasticamente, mostra que a atual carga tributária dos ricos não constitui, por si só, um argumento significativo sobre a imparcialidade da distribuição após impostos atual.

Os dados acima também mostram quão limitado tem sido o impacto dos programas de transferência na desigualdade crescente ao longo das décadas.

"As pessoas imaginam que a redistribuição do governo freia o aumento da desigualdade em alguma medida, mas não é o caso", disse-me Zucman.

Finalmente, a análise de Zucman poderia embasar argumentos progressistas por uma profunda revisão econômica estrutural. Até o plano de Joe Biden, que aumentaria os impostos corporativos e retornaria as taxas marginais de imposto de renda para como estavam antes dos cortes de impostos de Trump, é surpreendentemente progressivo, sinalizando quanto esse debate mudou.

Enquanto isso, Warren propôs um imposto sobre a extrema riqueza. E o senador Bernie Sanders (Independente-Vermont) planeja um imposto sobre a riqueza ainda mais ambicioso, além de uma proposta de um aumento dos impostos sobre as rendas mais altas muito maior do que qualquer outro rival.

O contexto mais amplo desse debate é que a renda do lar real explodiu positivamente no topo, mesmo que mal tenha chegado à metade inferior - a soma total de duas histórias separadas, mas entrelaçadas, que se desdobraram ao longo das décadas.

"Há duas tendências que se reforçam", disse-me Zucman. “Houve um aumento na desigualdade de renda no mercado – o aumento na desigualdade de renda antes dos impostos. E, ao mesmo tempo, o sistema tributário se tornou muito menos progressivo no topo da distribuição de renda”.

Conclusão de Zucman: "O sistema tributário dos EUA é levemente progressivo na parte inferior e no meio da distribuição, e se torna regressivo no topo".

O debate sobre como mudar este quadro vai agradar os progressistas. E essas novas descobertas devem reforçar sua causa.

* Publicado originalmente no The Washington Post. Tradução de Clarisse Meireles.

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