Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Luiz Sérgio Metz (o “Jacaré”) – morto há quase 25 anos – escreveu um dos contos mais importantes da literatura gaúcha de todos os tempos. Às vezes ele repetia, nos universos alcoólicos de julho nas madrugadas frias do pampa, que o “nazismo era a elegância no poder”. O conto a que me refiro “O primeiro e o segundo homem” relata um duelo à faca, assistido pela infância no precário esconderijo das guanxumas. Neste duelo dois gaúchos travam uma luta justa, certeira, combinada, escondida do mundo estrelado das madrugadas, pelo qual se medem como indivíduos, para os quais só interessa suas próprias virtudes isoladas do mundo real. Uma escolha entre alternativas de sobrevivência ou morte.
Nada mais humano do que esta elegância discreta de um certo tipo de barbárie, na qual os homens de coragem se unem numa luta, para saberem -eles mesmos- até onde vai sua força e onde dorme o delírio da sua pureza ancestral. Tem como como testemunhas apenas as sombras tisnadas pelos relâmpagos do aço que se cruza. Ali a infância toda se recria pelo olhar e os homens adultos se matam, na solidão imemorial que os purifica em sangue. O nazismo é a elegância psicótica no poder -como dizia o Sergio Metz- mas por trás da sua verborragia da imbecilidade e do ódio que exala, está o estado-polícia forte e o capital, que transforma suas necessidades em legalidade ilegítima: por isso ele precisa ser covarde, calar e matar, não ter piedade nem os parâmetros éticos de uma religião ou de uma filosofia.
A elegância do nazismo e do fascismo substituí a coragem pela covardia uniforme, quando as vítimas desarmadas são eliminadas sem piedade – humilhadas sem revide – com suas identidades acorrentadas pelo preconceito. Quando alguém diz a outro, sem possibilidade de revide “tu és um verme”, “tu és um judeu”, “tu és um viado”, “tu és um cigano”, “tu és um negro para ser medido em arrobas”, “tu és uma mulher vagabunda” -quando este alguém diz algo como isso- resta apenas a elegância do uniforme no poder e -dentro dele- o catecismo diabólico que descarta os humanos como folhas soltas pelos ventos do inverno. Como se nenhuma lei moral importasse no infinito deste mundo.
Não é fácil equilibrar-se nestes tempos de ascensão do fascismo e de vulgarização dominante da maldade. O que impressiona não é a descoberta da existência do mal, porque sabemos que ele – em algum lugar de nós – está dormindo como uma serpente criada por milênios de violência e dor, paridos que fomos no útero germinal da natureza. Séculos e séculos depois, todavia, já somos um ser que passou a “escolher entre alternativas”, capacidade de escolha que nos trouxe a surpresa do fascínio -de milhões- pelo mal. Em qualquer regime, em qualquer país e em qualquer momento da História, este fascínio acossa a nossa humanidade como infortúnio de uma liberdade malnascida.
Parece que -de tempos em tempos- a lembrança se esvai e a memória do mal fica apenas como uma tempestade de metáforas do passado, que não nos ensina, mas só aparecem como um teatro ou “perfomance”, ou um jogo de sombras que o tempo diluiu. No romance de Klaus Mann (“Mefisto”- Ed. Estação Liberdade, 2000, pg.152) Sebastian diz para Bárbara, falando sobre um ator real, que aquele escritor imortalizou como personagem do seu grande livro: “Ele mente sempre e não mente nunca. Sua falsidade é a sua autenticidade. Soa complicado mas é bastante simples. Ele acredita em tudo e não acredita em nada. É um ator, mas você ainda não se cansou dele.”
Ser intelectual e filho de Thomas Mann -um dos maiores gênios literários do Século XX- já não seria fácil. Mas ser um intelectual -romancista e escritor- e ser também filho de Thomas Mann e ainda viver intensamente a época do nazismo -além de se propor à crítica da vilania de quem vai ser um membro importante da própria família- seria uma saga fatigante para Klaus Mann. Sua resposta foi construir um dos grandes personagens malignos de todos os tempos (a partir do Mefistófoles de Goehte) para compreender a sua época de forma universal. E depois percorrer uma desesperada reconciliação com o mundo decomposto pela Guerra.
Klaus Mann, nascido em 18 de novembro de 1906, suicidou-se em 22 de maio de 1949, depois de lutar sem sucesso pela publicação do seu “Mefisto”, na Alemanha já libertada de Hitler. Foi naquela mesma Alemanha ressurgida das cinzas do Holocausto que as autoridades da transição preferiram proteger Gustav Gründgens, o grandioso ator do Teatro Alemão que inspirou o personagem de Klaus, o Höfgen, no seu romance definitivo. As autoridades censuraram o livro de Klaus “porque a proteção da honra pós-mortem do ator e diretor Grundgens (a pessoa real que inspirou o personagem) pesava mais do que a liberdade da arte”.
No romance de Klaus Mann o seu tipo real -o cunhado Gustav Grundgens- toma o nome de Höfgen, o ator que abre as portas da negociação com o Diabo para vender sua alma a Hitler, sob a alegação de lutar contra ele, “dentro” do próprio regime. O cenário é aquele tipo de Estado, ocupado por uma súcia de assassinos, no qual “torturar, mortificar e matar”, passam a compor “os prazeres cotidianos”, onde os limites entre a crueldade e o gozo psicótico com a morte, são chancelados pelos uniformes impecáveis. As grandes representações cênicas de massas, a queima de livros, a retórica violenta e os gestos de desprezo pelo diferente -que levam depois aos Campos da Morte- substituem as explicações da razão e da religião.
São pessoas assim que são capazes de dizer a filhos e parentes de desaparecidos -que buscam seus corpos lacerados pela morte na tortura- que quem “procura ossos são cachorros” e que o “diferente” é qualquer um que se atravesse no destino da Alemanha arianizada ou no Brasil prometido. O exemplo de Höfgen é universal, porque ele representa com magnitude -em uma só pessoa- toda uma classe empresarial e grupos de “comunicadores” que -por exemplo- “trocam” a promoção das reformas ultraliberais por um tratamento cordato e legitimante, para líderes que debocham de cadáveres de torturados e se associam a milicianos assassinos: o pacto com o diabo-Mefistófeles de Goethe e Klaus Mann, às vezes toma o nome de pacto com o mercado de Hayek.
Em 12 de maio de 1949, nove dias antes da sua morte, Klaus Mann respondendo ao editor Jacobi -que se negara a publicar o seu “Mefisto” porque o criticado sr. Gründgens-Höfgen gozava “de um significativo renome na Baviera”- diz-lhe o seguinte: “O melhor é não arriscar nada! Sempre do lado do poder! Já sabemos para onde isso leva: justamente para aqueles campo de concentração sobre os quais depois todos afirmam não saber nada.” Os delitos de Nixon, que levaram ao seu pedido de “impeachment” foram, na verdade, de segunda ordem, mas “o seu encobrimento e as suas repetidas negações de qualquer conhecimento” -que foram se tornando evidentemente falsas- colocaram ao Presidente duas possibilidades: impedimento pelo Congresso ou sua renúncia, que então ocorre em 8 de agosto de 1974.
Para onde vai o país e os mandatos presidenciais , se sobrevivermos aos fatos desta última semana, ainda não sabemos, mas algumas conclusões já podemos arriscar: a elite da direita brasileira -não necessariamente por vocação ideológica- mas sobretudo pela sua ignorância, desumanidade e indiferença perante a dor alheia, não tem condições de governar na democracia, pois ela está mais para Hitler e Pinochet, do que para Raymund Aron e Chirac; o “centro” -no Brasil- não existe de forma doutrinária, mas é apenas uma relação de conveniência com qualquer direita ou com a centro-esquerda, pois não tem programa nem capacidade dirigente, como se vê pelo desaparecimento voluntário do socialdemocrata Fernando Henrique; a naturalização da violência e a vulgarização do mal -como “modo de vida” que orienta para morte- pode destruir as nossas possibilidades de futuro e assim transformar a política em guerra continuada. Talvez nos próximos dias saibamos algo sobre isso, porque aqui a antiga elegância nazista, como o mal absoluto no poder, já se transformou na visível covardia da guerra continuada.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Luiz Sérgio Metz (o “Jacaré”) – morto há quase 25 anos – escreveu um dos contos mais importantes da literatura gaúcha de todos os tempos. Às vezes ele repetia, nos universos alcoólicos de julho nas madrugadas frias do pampa, que o “nazismo era a elegância no poder”. O conto a que me refiro “O primeiro e o segundo homem” relata um duelo à faca, assistido pela infância no precário esconderijo das guanxumas. Neste duelo dois gaúchos travam uma luta justa, certeira, combinada, escondida do mundo estrelado das madrugadas, pelo qual se medem como indivíduos, para os quais só interessa suas próprias virtudes isoladas do mundo real. Uma escolha entre alternativas de sobrevivência ou morte.
Nada mais humano do que esta elegância discreta de um certo tipo de barbárie, na qual os homens de coragem se unem numa luta, para saberem -eles mesmos- até onde vai sua força e onde dorme o delírio da sua pureza ancestral. Tem como como testemunhas apenas as sombras tisnadas pelos relâmpagos do aço que se cruza. Ali a infância toda se recria pelo olhar e os homens adultos se matam, na solidão imemorial que os purifica em sangue. O nazismo é a elegância psicótica no poder -como dizia o Sergio Metz- mas por trás da sua verborragia da imbecilidade e do ódio que exala, está o estado-polícia forte e o capital, que transforma suas necessidades em legalidade ilegítima: por isso ele precisa ser covarde, calar e matar, não ter piedade nem os parâmetros éticos de uma religião ou de uma filosofia.
A elegância do nazismo e do fascismo substituí a coragem pela covardia uniforme, quando as vítimas desarmadas são eliminadas sem piedade – humilhadas sem revide – com suas identidades acorrentadas pelo preconceito. Quando alguém diz a outro, sem possibilidade de revide “tu és um verme”, “tu és um judeu”, “tu és um viado”, “tu és um cigano”, “tu és um negro para ser medido em arrobas”, “tu és uma mulher vagabunda” -quando este alguém diz algo como isso- resta apenas a elegância do uniforme no poder e -dentro dele- o catecismo diabólico que descarta os humanos como folhas soltas pelos ventos do inverno. Como se nenhuma lei moral importasse no infinito deste mundo.
Não é fácil equilibrar-se nestes tempos de ascensão do fascismo e de vulgarização dominante da maldade. O que impressiona não é a descoberta da existência do mal, porque sabemos que ele – em algum lugar de nós – está dormindo como uma serpente criada por milênios de violência e dor, paridos que fomos no útero germinal da natureza. Séculos e séculos depois, todavia, já somos um ser que passou a “escolher entre alternativas”, capacidade de escolha que nos trouxe a surpresa do fascínio -de milhões- pelo mal. Em qualquer regime, em qualquer país e em qualquer momento da História, este fascínio acossa a nossa humanidade como infortúnio de uma liberdade malnascida.
Parece que -de tempos em tempos- a lembrança se esvai e a memória do mal fica apenas como uma tempestade de metáforas do passado, que não nos ensina, mas só aparecem como um teatro ou “perfomance”, ou um jogo de sombras que o tempo diluiu. No romance de Klaus Mann (“Mefisto”- Ed. Estação Liberdade, 2000, pg.152) Sebastian diz para Bárbara, falando sobre um ator real, que aquele escritor imortalizou como personagem do seu grande livro: “Ele mente sempre e não mente nunca. Sua falsidade é a sua autenticidade. Soa complicado mas é bastante simples. Ele acredita em tudo e não acredita em nada. É um ator, mas você ainda não se cansou dele.”
Ser intelectual e filho de Thomas Mann -um dos maiores gênios literários do Século XX- já não seria fácil. Mas ser um intelectual -romancista e escritor- e ser também filho de Thomas Mann e ainda viver intensamente a época do nazismo -além de se propor à crítica da vilania de quem vai ser um membro importante da própria família- seria uma saga fatigante para Klaus Mann. Sua resposta foi construir um dos grandes personagens malignos de todos os tempos (a partir do Mefistófoles de Goehte) para compreender a sua época de forma universal. E depois percorrer uma desesperada reconciliação com o mundo decomposto pela Guerra.
Klaus Mann, nascido em 18 de novembro de 1906, suicidou-se em 22 de maio de 1949, depois de lutar sem sucesso pela publicação do seu “Mefisto”, na Alemanha já libertada de Hitler. Foi naquela mesma Alemanha ressurgida das cinzas do Holocausto que as autoridades da transição preferiram proteger Gustav Gründgens, o grandioso ator do Teatro Alemão que inspirou o personagem de Klaus, o Höfgen, no seu romance definitivo. As autoridades censuraram o livro de Klaus “porque a proteção da honra pós-mortem do ator e diretor Grundgens (a pessoa real que inspirou o personagem) pesava mais do que a liberdade da arte”.
No romance de Klaus Mann o seu tipo real -o cunhado Gustav Grundgens- toma o nome de Höfgen, o ator que abre as portas da negociação com o Diabo para vender sua alma a Hitler, sob a alegação de lutar contra ele, “dentro” do próprio regime. O cenário é aquele tipo de Estado, ocupado por uma súcia de assassinos, no qual “torturar, mortificar e matar”, passam a compor “os prazeres cotidianos”, onde os limites entre a crueldade e o gozo psicótico com a morte, são chancelados pelos uniformes impecáveis. As grandes representações cênicas de massas, a queima de livros, a retórica violenta e os gestos de desprezo pelo diferente -que levam depois aos Campos da Morte- substituem as explicações da razão e da religião.
São pessoas assim que são capazes de dizer a filhos e parentes de desaparecidos -que buscam seus corpos lacerados pela morte na tortura- que quem “procura ossos são cachorros” e que o “diferente” é qualquer um que se atravesse no destino da Alemanha arianizada ou no Brasil prometido. O exemplo de Höfgen é universal, porque ele representa com magnitude -em uma só pessoa- toda uma classe empresarial e grupos de “comunicadores” que -por exemplo- “trocam” a promoção das reformas ultraliberais por um tratamento cordato e legitimante, para líderes que debocham de cadáveres de torturados e se associam a milicianos assassinos: o pacto com o diabo-Mefistófeles de Goethe e Klaus Mann, às vezes toma o nome de pacto com o mercado de Hayek.
Em 12 de maio de 1949, nove dias antes da sua morte, Klaus Mann respondendo ao editor Jacobi -que se negara a publicar o seu “Mefisto” porque o criticado sr. Gründgens-Höfgen gozava “de um significativo renome na Baviera”- diz-lhe o seguinte: “O melhor é não arriscar nada! Sempre do lado do poder! Já sabemos para onde isso leva: justamente para aqueles campo de concentração sobre os quais depois todos afirmam não saber nada.” Os delitos de Nixon, que levaram ao seu pedido de “impeachment” foram, na verdade, de segunda ordem, mas “o seu encobrimento e as suas repetidas negações de qualquer conhecimento” -que foram se tornando evidentemente falsas- colocaram ao Presidente duas possibilidades: impedimento pelo Congresso ou sua renúncia, que então ocorre em 8 de agosto de 1974.
Para onde vai o país e os mandatos presidenciais , se sobrevivermos aos fatos desta última semana, ainda não sabemos, mas algumas conclusões já podemos arriscar: a elite da direita brasileira -não necessariamente por vocação ideológica- mas sobretudo pela sua ignorância, desumanidade e indiferença perante a dor alheia, não tem condições de governar na democracia, pois ela está mais para Hitler e Pinochet, do que para Raymund Aron e Chirac; o “centro” -no Brasil- não existe de forma doutrinária, mas é apenas uma relação de conveniência com qualquer direita ou com a centro-esquerda, pois não tem programa nem capacidade dirigente, como se vê pelo desaparecimento voluntário do socialdemocrata Fernando Henrique; a naturalização da violência e a vulgarização do mal -como “modo de vida” que orienta para morte- pode destruir as nossas possibilidades de futuro e assim transformar a política em guerra continuada. Talvez nos próximos dias saibamos algo sobre isso, porque aqui a antiga elegância nazista, como o mal absoluto no poder, já se transformou na visível covardia da guerra continuada.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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