No último artigo publicado nesta coluna, tratou-se da frustração do atual ministro da justiça – o ex-magistrado que quer ser presidente – em fazer passar na Câmara dos Deputados seu auto-intitulado “pacote anticrime”. Como se procurou demonstrar ali, tratava-se de proposta de reforma da legislação penal (lato senso) profundamente infeliz e perigosa, atentatória aos preceitos constitucionais e legais que visam preservar os direitos de cidadania, em face dos poderes investigativos e persecutórios das agências estatais.
Não por outra razão, aquela Casa legislativa aprovou substitutivo ao referido projeto de lei, o qual, malgrado tenha trazido algumas alterações normativas inspiradas na nefasta ideologia punitivista, teve o mérito de extirpar as três principais inovações sugeridas pelo solerte personagem paranaense – quais sejam: a prisão obrigatória em decorrência de condenação em segunda instância; a tal “excludente de criminalidade” para policiais, verdadeira licença legal para continuar a matança da juventude negra e pobre das periferias, praticada no Brasil como política institucional, há décadas; e o “plea bargaining”, esdrúxula novidade copiada da América do Norte, à qual falta por completo qualquer suporte constitucional.
Como se sabe, o Senado Federal aprovou o projeto oriundo da Câmara baixa e, em decorrência, remeteu-o, como cumpria, ao titular do Executivo federal, para sanção e/ou veto. Também é sabido que, apesar da insistente campanha promovida pelo político camisanera, seu chefe não vetou uma das interessantes modificações legais introduzidas pelo Parlamento, esta de nítida inspiração garantista – voltada que é ao controle judicial da ação investigativa dos agentes do sistema repressivo.
Consiste, a mesma, na criação da figura do chamado “juiz de garantias”, que outra coisa não é senão a instituição de um juízo precipuamente destinado a controlar a legalidade das medidas adotadas durante o inquérito policial, por agentes das polícias e, eventualmente, dos ministérios públicos. A fiscalização judicial destes atos – por exemplo, a prisão provisória de indiciados, e a busca e apreensão de objetos e bens, que implicam restrições a direitos fundamentais, como a liberdade e a propriedade – já existia antes da introdução do novo instituto, mas estava (na verdade, está ainda) diluída entre as tarefas gerais dos juízes criminais, nos âmbitos estadual e federal.
Com o novo sistema, haverá um magistrado a quem cabe, exclusiva e privativamente, este controle sobre as ações repressivas preliminares à instauração de processo judicial pela prática de fatos em tese criminosos, e cuja competência se esgota, justamente, no eventual recebimento da denúncia, isto é, da acusação formal produzida pelo ministério público, ou seu arquivamento.
Isto significa que o “juiz de garantias” limitar-se-á ao controle da legalidade dos atos preparatórios do processo criminal, não sendo competente para conduzir a ação penal, nem para julgá-la. As vantagens da nova sistemática são evidentes: de um lado, permite controlar com mais eficiência e agilidade os atos de investigação, providência mais do que necessária em um país marcado historicamente pela violência policial; e de outra parte, evita a contaminação, do juiz que julgará a causa, pela prova acusatória inquisitorialmente obtida.
Não admira, por isso, o empenho demonstrado por Moro para tentar, em vão, influir na decisão presidencial pelo veto desta alteração legislativa em boa hora proposta pelo Parlamento. Basta atentar para as revelações feitas há meses por alguns dos principais veículos de informação, baseados nas gravações obtidas e divulgadas pelo Intercept Brasil, para se constatar que ele, quando juiz federal, de forma ilegal e abusiva, comandava as apurações procedidas por agentes policiais e procuradores da tal “força tarefa da operação lava-jato” – como era denunciado, desde o início das mesmas, por diversos advogados e professores de Direito Penal e Processual Penal.
Esta nova derrota política do super-herói moralista construído pela grande mídia olipólica, está a merecer reflexão mais profunda, para além dos aspectos legais e institucionais da mencionada mudança feita na legislação processual penal brasileira. Com efeito, a motivação do ato sancionatório presidencial, no particular, parece intrigante, dado que, em hipótese alguma, seu autor terá sido bafejado por um sopro garantista, absolutamente impensável em se tratando de um político de corte nitidamente fascista como ele.
A explicação mais óbvia, e corrente entre os mais diferentes comentaristas e estudiosos, para este seu inesperado arroubo liberal – no sentido político e filosófico do termo – prende-se ao inquérito, em vias de se tornar processo judicial, contra seu “filho 01”, hoje senador, por atos praticados enquanto era deputado estadual, atos estes investigados por promotores e policiais fluminenses, com características em tese criminosas, além de revelarem relações promíscuas e nebulosas com milicianos locais, uns presos, outros foragidos.
Embora esta suposição se apresente como correta, convém ir um pouco mais adiante para destacar outro aspecto da questão, de grande relevância para a compreensão do atual quadro político nacional, inclusive para esboçar seus possíveis desdobramentos futuros. Para tanto, cabe relembrar, na linha do que se vem sustentando neste espaço, desde 2016, que a derrubada ilegítima de Dilma – e consequentes processo e prisão de Lula, para impedi-lo de disputar a eleição que ganharia certamente dois anos depois – deveu-se fundamentalmente à conjugação de movimentos políticos distintos, e até opostos, conjunturalmente convergentes visando àqueles objetivos.
De um lado, a direita tradicional, representada no Parlamento e, majoritariamente, no Supremo Tribunal Federal, respectivamente, pelas figuras de Temer e Gilmar Mendes; e de outro, a nova direita judicial, formada pelos membros da famosa operação curitibana, alçados pelo oligopódio midiático – sobretudo pela Rede Globo – à condição de baluartes invictos da moralidade pública.
Cabe recordar, também, que uma vez removido o obstáculo petista, os novos turcos de Curitiba prosseguiram em sua faina de destruir “o sistema político”, e o acordo conjuntural com os antigos aliados foi logo esquecido, passando estes a ser o alvo de suas novas ações purgatórias – à exceção, é claro, dos cardeais do PSDB, a quem o então todo-poderoso magistrado poupou expressamente, em nome da necessidade de se manter algum apoio entre os políticos tradicionais, conforme explicitado nas aludidas conversas reveladas pela equipe de Glenn Greenwald.
É neste caminho de destruição da política e dos políticos, em nome da moral e do combate à corrupção, que Moro encontra Bolsonaro – e uma nova e peculiar conjugação de movimentos termina desembocando na eleição deste para a cadeira presidencial. Muito embora não fosse ele o preferido dos reais donos do poder – a banca e os rentistas que, de dentro e de fora, capturaram o Estado brasileiro mediante o artifício da dívida pública – diante da falência das demais candidaturas da direita tradicional e de sua persistência na liderança de expressiva parcela do eleitorado, atrás apenas de Lula, Bolsonaro terminou sendo o grande beneficiário da campanha bem sucedida de criminalização da política, conduzida desde o fôro federal de Curitiba, sob a batuta da grande mídia.
Nada mais “natural”, portanto, que ainda antes da vitória no segundo turno – e como retribuição à ajuda dele recebida durante o pleito, com a divulgação requentada de acusações contra Lula e seus partidários – o coordenador da famosa força tarefa tenha sido convidado para integrar o futuro ministério, justamente na dita pasta da justiça. E também que o convite tenha sido aceito, sem qualquer atenção a escrúpulos de ordem ética e, o que é pior, sob a aceitação da maioria da população – como se não fosse simplesmente indecente quem participou do jogo, como árbitro, vir a integrar como prêmio por sua atuação a equipe vencedora.
Importa notar, a propósito, que apesar de partilharem o mesmo campo ideológico, professando as mesmas tendências autoritárias e antidemocráticas e o mesmo horror ao “sistema” – ou seja, à política, à cultura e a tudo que não integre o projeto de extrema direita que representam – existiu sempre, desde o início do governo, uma tensão surda entre o presidente e seu auxiliar.
Este fator está subjacente, também, e de forma decisiva, no recente “imbroglio” causado pela sanção presidencial ao novo dispositivo legal aqui considerado, e talvez seja este o sentido mais profundo, e menos evidente da nova derrota imposta a Moro, desta feita por Bolsonaro (a primeira lhe fora infligida pelo Parlamento): bloquear o crescimento de sua eventual candidatura à presidência em 2022.
Em face deste cenário, no qual se movimentam à vontade os articuladores do projeto fascista que vai sendo imposto a nosso desditoso País, cabe aos democratas brasileiros, muito especialmente à camada mais esclarecida da população, seguir a recomendação feita em recente crônica por Luiz Fernando Veríssimo, com base na lição sexagenária de Albert Camus: aproveitar toda e qualquer oportunidade para apontar à cidadania, hoje anestesiada e inerte, que nada do que está acontecendo – desde a entrega obscena das riquezas nacionais à tentativa de destruição da universidade pública, da aceleração da destruição ambiental à intensificação da matança de jovens e negros, mulheres e homossexuais – é natural e aceitável.
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