Por Breno Altman, no site Opera Mundi:
O documentário “Democracia em Vertigem” não é para corações e mentes desavisados. Cada pedaço da narrativa é um golpe no estômago, flertando com a tessitura de uma tragédia shakespeariana.
Emociona e estremece o espectador como uma ficção do melhor cinema, mas sua matéria-prima e linguagem são forjados pela realidade mais bruta. O tempo voa, o ritmo é contagiante, levando a um estado de exaustão, dor e perplexidade frente à decomposição nacional.
Várias obras já foram produzidas sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato. Nenhuma delas, no entanto, tentou ir tão fundo na perfuração das camadas sobre as quais se construiu a trajetória recente do país.
“Democracia em Vertigem” é um libelo contra o desmoronamento de um sonho de liberdade e justiça, mas nenhum dos personagens, incluindo as vítimas centrais desse terremoto político, foi poupado pela documentarista.
Suas cenas revelam o composto de mesquinhez, mediocridade e cobiça dos sujeitos que tramaram a derrubada de uma presidente legítima, sequestraram o sistema judicial e viraram a mesa para voltarem a imperar. Expõem igualmente possíveis erros e fragilidades das lideranças petistas que simbolizavam um novo mundo possível.
Petra conduz seu trabalho a partir de uma opção corajosa como narradora. Deixa claro que tem lado na história, ao melhor estilo do documentarista holandês Joris Ivens e do chileno Patricio Guzmán. Os fatos são costurados a partir de olhares pessoais e experiências familiares, expectativas e frustrações, com honestidade à flor da pele.
Pais de esquerda, avô empreiteiro, a diretora escancara antecedentes. Seu depoimento, intenso e direto, vai fundindo imagens, entrevistas e resgates factuais. Voz mineira, despida de arrogância, conquista naturalmente a empatia dos espectadores.
Bem editado, com inéditas cenas de bastidores assinadas por Ricardo Stuckert, o documentário tem momentos estonteantes. Alguns desses se referem à vulnerabilidade do petismo frente à revolta previsível das famílias que mandam no dinheiro grosso.
Destaca-se a entrevista de Gilberto Carvalho, um dos mais próximos assessores de Lula, reconhecendo que o PT deixou-se sequestrar pelo velho sistema político, sem força e vontade para rompê-lo, abandonando o veio original da organização e mobilização do povo.
Também interessante é ouvir o ex-presidente se arrependendo de ter postergado a regulação dos meios de comunicação. Coube à cineasta, enfim, levar ao grande público algumas das clamadas autocríticas petistas.
Lula e Dilma não são idealizados. Ao contrário, recebem críticas ácidas por várias de suas decisões. Certos diálogos e recortes indicam incríveis ilusões, quase ingênuas, anti-históricas, com o comprometimento democrático das oligarquias.
Pode-se questionar o tratamento superficial a determinadas passagens. Faz parte. Sua pegada é a de um registro autoral e sintético sobre uma nação que subitamente se perdeu, quando o partido da casa grande decidiu expulsar do poder os inquilinos migrados da senzala.
Tudo fica mais triste e chocante quando tamanha regressão é condensada em pouco menos de duas horas. Esse retrato de uma ferida em carne viva provoca sofrimento, raiva e vergonha. Oxalá ajude a alimentar algum sentimento de revolta, sem o qual jamais os povos dão a volta por cima.
* Este artigo foi publicado na Folha de S.Paulo em 24 de junho de 2019.
Emociona e estremece o espectador como uma ficção do melhor cinema, mas sua matéria-prima e linguagem são forjados pela realidade mais bruta. O tempo voa, o ritmo é contagiante, levando a um estado de exaustão, dor e perplexidade frente à decomposição nacional.
Várias obras já foram produzidas sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato. Nenhuma delas, no entanto, tentou ir tão fundo na perfuração das camadas sobre as quais se construiu a trajetória recente do país.
“Democracia em Vertigem” é um libelo contra o desmoronamento de um sonho de liberdade e justiça, mas nenhum dos personagens, incluindo as vítimas centrais desse terremoto político, foi poupado pela documentarista.
Suas cenas revelam o composto de mesquinhez, mediocridade e cobiça dos sujeitos que tramaram a derrubada de uma presidente legítima, sequestraram o sistema judicial e viraram a mesa para voltarem a imperar. Expõem igualmente possíveis erros e fragilidades das lideranças petistas que simbolizavam um novo mundo possível.
Petra conduz seu trabalho a partir de uma opção corajosa como narradora. Deixa claro que tem lado na história, ao melhor estilo do documentarista holandês Joris Ivens e do chileno Patricio Guzmán. Os fatos são costurados a partir de olhares pessoais e experiências familiares, expectativas e frustrações, com honestidade à flor da pele.
Pais de esquerda, avô empreiteiro, a diretora escancara antecedentes. Seu depoimento, intenso e direto, vai fundindo imagens, entrevistas e resgates factuais. Voz mineira, despida de arrogância, conquista naturalmente a empatia dos espectadores.
Bem editado, com inéditas cenas de bastidores assinadas por Ricardo Stuckert, o documentário tem momentos estonteantes. Alguns desses se referem à vulnerabilidade do petismo frente à revolta previsível das famílias que mandam no dinheiro grosso.
Destaca-se a entrevista de Gilberto Carvalho, um dos mais próximos assessores de Lula, reconhecendo que o PT deixou-se sequestrar pelo velho sistema político, sem força e vontade para rompê-lo, abandonando o veio original da organização e mobilização do povo.
Também interessante é ouvir o ex-presidente se arrependendo de ter postergado a regulação dos meios de comunicação. Coube à cineasta, enfim, levar ao grande público algumas das clamadas autocríticas petistas.
Lula e Dilma não são idealizados. Ao contrário, recebem críticas ácidas por várias de suas decisões. Certos diálogos e recortes indicam incríveis ilusões, quase ingênuas, anti-históricas, com o comprometimento democrático das oligarquias.
Pode-se questionar o tratamento superficial a determinadas passagens. Faz parte. Sua pegada é a de um registro autoral e sintético sobre uma nação que subitamente se perdeu, quando o partido da casa grande decidiu expulsar do poder os inquilinos migrados da senzala.
Tudo fica mais triste e chocante quando tamanha regressão é condensada em pouco menos de duas horas. Esse retrato de uma ferida em carne viva provoca sofrimento, raiva e vergonha. Oxalá ajude a alimentar algum sentimento de revolta, sem o qual jamais os povos dão a volta por cima.
* Este artigo foi publicado na Folha de S.Paulo em 24 de junho de 2019.
1 comentários:
Não vi o filme, mas verei assim que tiver oportunidade e dinheiro. Porém, não concordo com a tese de que o PT e Lula representam a senzala. Para mim, um dos grandes problemas de nosso país, do ponto de vista dos que acreditam que somente a "senzala" pode libertar-se a si mesma, sendo o papel dos que a defendem ajudá-la a aprender os métodos de luta para atingir esse objetivo, é a pouca quantidade de lideranças autênticas saídas da "senzala", em condições de representá-la nos processos de luta de classes em nossa sociedade. Lula sempre representou, no máximo, uma concepção de mundo típica do grupo social a que ele passou a fazer parte quando se tornou ferramenteiro, ou seja, membro da aristocracia operária que, animada com as vitórias conquistadas à frente dos sindicatos do ABC,e refratária aos partidos marxistas-leninistas, trabalhou para construir um partido com essa marca de classe. Os setores que atuam dentro do PT, como Breno Altman, sonhando em dar a esse partido um tom mais socialista,para mim, malham em ferro frio. O PT foi forjado pelas ideias de sociedade mais justa com que Lula se identifica, sendo essas idéias também defendidas por outros partidos filiados à social-democracia e principalmente pela democracia cristã fundada pela Igreja Católica na Itália. O erro do PT é incorrigível porque consiste em acreditar que pode melhorar o capitalismo pacificamente, com apoio eleitoral da maioria povo (e não substituir o capitalismo pelo socialismo revolucionariamente com o protagonismo da luta dos trabalhadores e do povo, do proletariado, contra a burguesia),vencendo uma eleição aqui e outra ali, adotando programas que melhoram um mucadinho a vida dos que sofrem, sempre sinalizando que um dia, não se sabe quando, todos os brasileiros viverão com dignidade, numa sociedade, digamos, semelhante à Noruega. Quem é que poderia deixar de dizer que não concorda com essa utopia? Eu posso. Essa sociedade, muito em breve, nem na Noruega será possível, pois contra a existência dela trama a lógica do capitalismo em seu estágio financeiro final. A minha utopia é muito mais antiga que a de Lula e se chama Socialismo e não se realizará jamais se os trabalhadores não reconhecerem que merecem esse mundo obtido pela superação do capitalismo, muito mais justo e, o que é mais importante, muito mais possível de ser realizado do que um programa de reformas concedidos por processos evolutivos derivados de vitórias eleitorais.
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