sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Estados Unidos, democracia em desmantelo

Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:


Podem os Estados Unidos, cujo poder geopolítico e econômico declina com rapidez, apresentar-se como campeões de um valor mais alto – a soberania popular? Um texto corajoso publicado há um mês por Lawrence Lessig – escritor, advogado e cofundador do movimento Creative Commons – sugere, com amargura, que não. Intitula-se “Por que os EUA são um Estado democrático fracassado”. Descreve em detalhes como a representação política norte-americana, historicamente falha (o voto popular não é decisivo, por exemplo, para eleger o presidente), tem sido esfacelada de modo ativo e consciente pelo Partido Republicano e pelo grande poder econômico. Este declínio prosseguiu na última quinta-feira. Mesmo formando maioria nas duas casas do Legislativo, e alentados por um discurso de Joe Biden, os democratas foram incapazes de se unir em torno de duas leis que poderiam refrear a degringolada. As razões estão diretamente relacionadas ao que Lessig relata.

Seu artigo, uma peça da melhor literatura política, expõe o passo a passo, a manipulação, sempre com enorme riqueza de dados. Eis um breve resumo:

1. Desde a derrota de Trump, o Partido Republicano empenha-se em conter seu declínio eleitoral. Mas não o faz adotando políticas que reconquistem o eleitorado, como seria de esperar em qualquer democracia digna do nome – e, sim elitizando o voto, afastando das urnas as maiorias. Os artifícios empregados chegam ao bizarro. Há um movimento generalizado para reduzir o número de seções eleitorais (portanto, de urnas) nos bairros de maioria pobre a ou negra. Num país em que as eleições ocorrem em dias de semana, e não em feriados, estão sendo reduzidos ou eliminados os períodos de votação fora do horário comercial. Tudo concorre para provocar filas quilométricas, desestimular o voto e limitá-lo à minoria que não depende do trabalho. Na Geórgia, chega-se a criminalizar o ato de oferecer água a alguém que aguarda o momento de votar. O voto por correspondência está sendo restringido. O recorte de classe e o viés pró-conservador das decisões são evidentes. Alguns estados decidiram que as identificações expedidas por clubes de tiro são documento válido para votar – mas as carteiras de estudante, não… O New York Times estima que, desde a última eleição presidencial, 30 dos 50 estados realizaram processos de “redistritalização”, e 33 leis de restrição ao voto foram impostas, em 18 estados.

2. Estas medidas antivoto estão sendo impostas pelos republicanos nos estados em que controlam o Legislativo. Em muitos casos, esta maioria é fruto de manipulação. Em cada estado, o voto é distrital. A divisão dos estados em distritos é alterada pelos legisladores para dar mais peso às áreas mais ricas e conservadoras. Isso cria aberrações como a de Wisconsin, em que o Partido Republicano, com 44,7% dos votos, controla 64,6% das cadeiras legislativas; ou a da Virgínia, onde 44,5% do eleitorado deram a esta partido 53% das cadeiras. Ao todo, 60 milhões de norte-americanos já vivem em estados governados por minorias eleitorais.

3. A manipulação dos mapas eleitorais e as restrições ao direito de voto das maiorias terão enorme repercussão nas próximas eleições federais. Lessig prevê que, “tendo ou não maioria de votos”, os republicanos quase certamente controlarão a próxima Câmara dos Representantes (as eleições são em novembro próximo). Em relação à Casa Branca, as perspectivas são igualmente sombrias. A mudança nos distritos, sozinha, tornará ainda mais fácil eleger um presidente minoritário no voto popular. Esta hipótese era vista, até há bem pouco, como uma anormalidade. Em mais de dois séculos (entre 1789 e 2000), só ocorrera duas vezes (em 1876 e 1888). Porém, passou a ser considerada aceitável, num sinal de evidente corrosão democrática. Dois dos quatro últimos presidentes (George W. Bush, em 2000, e Donald Trump, em 2016) tomaram posse mesmo sofrendo derrotas populares que chegaram, no último caso, a quase 3 milhões de votos. Agora, os republicanos agem para transformar a eleição de um presidente minoritário num fato “normal”. E tramitam além disso, em alguns estados decisivos, propostas extremas. Se aprovadas, permitirão aos legislativos locais nomear, para o colégio eleitoral que escolhe o presidente, “representantes” contrários ao voto majoritário. de seus estados.

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Mas por que o Partido Democrata, hoje majoritário na Câmara e no Senado, permite artifícios, que, além de fraudar a vontade da maioria, terminarão por afastá-lo do poder? Aqui, a análise de Lessig vai ainda mais fundo. Ela revela como o poder econômico – em especial, os grandes financiadores de campanhas eleitorais – articularam uma rede de poder parlamentar paralelo que, nos momentos decisivos, sobrepõe-se ao dos partidos.

Por anos, os democratas esperaram que a Suprema Corte anulasse as manipulações distritais. Em junho de 2019, esta decidiu que não o faria. Mas foi, mostra o artigo, apenas mais uma de uma série de decisões “minoritaristas” e favoráveis ao poder econômico. A mais importante destas deu-se em 2010, e tornou-se conhecido como “Citizens United versus FEC”. Por meio dela, legalizou-se a interferência financeira das corporações nos processos eleitorais e – pior – criou-se a curiosa figura dos SuperPACs. São “Comitês de Ação Política” muito poderosos, engraxados por dinheiro farto das grandes empresas e cidadãos mais ricos, voltados para causas específicas relacionadas a seus interesses e com poderes de financiar campanhas eleitorais.

Lessig relata, por exemplo, o encontro revelador que o senador Joe Manchin, democrata da Virgínia do Norte, manteve, em junho de 2021, com um SuperPAC denominado No Labels. Debateram as “prioridades legislativas do ano”. Em certo ponto, Andrew Burskey, um dos fundadores do SuperPAC, fez questão de explicar como dá as cartas na relação. Os super-ricos que sustentam o No Labels, lembrou ele, estão prontos a contemplar seus protegidos com grandes volumes de recursos, o que poupa os seus beneficiários de “perder horas e horas ao telefone, buscando dinheiro”. Mas, mais importante: o patrocínio “envia uma mensagem muito forte, de que haverá gente em seu respaldo quando você tomar decisões difíceis, em votos que podem não ser populares em seu partido”.

Este mesmo Joe Manchin é, há meses, o principal obstáculo à aprovação, no Congresso norte-americano, dos projetos de estímulo econômico do presidente Joe Biden. O mais importante deles, ainda pendente, é o Build Back Better, cujos objetivos incluem oferecer, para dezenas de milhões de famílias, serviços públicos de cuidado a crianças e idosos. Além de desmercantilizar e converter em direitos sociais o que é hoje privilégio dos mais ricos, a proposta poderia multiplicar o apoio eleitoral aos democratas, num país cada vez mais marcado por desigualdade e empobrecimento. Mas a Manchin, falam mais alto os compromissos com seus financiadores.

Foi ainda Joe Manchin, junto com sua colega Kirsten Sinema (do estado do Arizona), que bloqueou, em 13/1, um esforço do Partido Democrata para evitar que os republicanos continuem manipulando os colégios eleitorais e restringindo o direito a voto das maiorias. Duas leis permitiriam fazê-lo e reverteriam ao menos em parte a avalanche antimaiorias dos últimos meses. A Câmara aprovou-as. No Senado, seria preciso vencer a obstrução (“filibuster”) da minoria republicana – e havia meios para isso. O próprio Joe Biden, antes indeciso sobre o tema, exortou os democratas do Senado a derrubar o “direito” à obstrução. Mas, no próprio 13/1, Manchin e Sinema anunciaram que não o farão, alegando não desejarem provocar polarização política. Sem eles, a maioria democrata se desfaz. Embora não impossível, a aprovação das leis agora é improvável. O prazo é curto: qualquer nova legislação tem de ser aprovada até 1º/3, quando começam as primárias para as eleições parlamentares de outubro. Tudo indica que a manipulação eleitoral para calar as maiorias prosseguirá.

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Se no país que se julgava o máximo paladino da democracia o conservadorismo e o grande poder econômico unem-se para dissolvê-la, que fazer com este projeto? Uma alternativa é julgar que se tornou obsoleto; que é apenas uma peça de retórica do Ocidente, prestes a ser ultrapassada pelos avanços geopolíticos e econômicos notáveis da China, ou pelos desafios que Moscou lança a Washington.

Há outra hipótese – mais árdua, porém de maior fôlego. Um dos aspectos positivos do atual cenário político é a percepção – hoje disseminada entre setores amplos das populações – do divórcio entre capitalismo e democracia. Espalham-se, em especial, a crítica e o mal-estar diante da deriva neoliberal do sistema; da tentativa de subjugar as sociedades aos mercados e de impor uma racionalidade baseada no interesse individual, na dissolução do coletivo e do Comum, na competição sem tréguas de todos contra todos.

Esta crítica pode libertar a democracia da captura eurocêntrica. Mas também sugere tê-la, em meio à crise civilizatória, como um projeto indispensável. Um enigma que as primeiras experiências socialistas não foram capazes de decifrar, mas do qual não estamos dispostos a desistir. Uma pergunta aberta, em busca urgente de respostas pós-capitalistas.

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