Foto: BBC |
Um dos grandes desafios jornalísticos é a cobertura sistemática de temas não usuais. Explode determinado tema, foge do padrão normal de cobertura e de conhecimento do jornalista. O que fazer?
Esse fenômeno ocorreu na CPI dos Precatórios, no final dos anos 90 (abordo em meu livro “O jornalismo dos anos 90”). E acontece agora, na cobertura da guerra da Rússia contra a Ucrânia.
As coberturas convencionais têm o roteiro pronto, muitas vezes aceito passivamente pelo jornalista. Vai falar sobre economia? Entreviste os economistas A, B ou C, pergunte da lei do teto, peça uma crítica ao gasto público, e se dê por satisfeito.
Em cima dessa receita simples, comentaristas como Boris Casoy, na CNN, ou alguns comentaristas político-econômicos da Globonews fazem sua lição de casa diária, de um jornalismo pouco exigente.
Se repetirem, como papagaios, nada lhes será cobrado. Se buscarem outros ângulos, os colegas cairão em cima. Terão que demonstrar um conhecimento muito mais sólido para defender sua tese-fora-do-padrão.
Quando entra tema novo na parada – como a invasão da Ucrânia pela Rússia – não há fórmula pronta.
Nas transmissões, o âncora não pode mostrar dúvidas. Então sai distribuindo julgamentos de senso comum, analisando aspectos pessoais das personalidades, como se analisasse seu vizinho, seu colega de redação.
Pouco importa se o dirigente está modificando o desenho geopolítico do mundo. Ele será tratado como “descontrolado”, “carniceiro” etc. Ou seja, será trazido à dimensão do homem comum e todos seus atos serão explicados pela lógica do homem comum.
Como essas coberturas envolvem muitos repórteres, esse tipo de análise pedestre se espalha por toda a cobertura.
Vivi algo semelhante na CPI dos Precatórios.
Não apenas os jovens setoristas de Congresso, mas experientes chefes de redação caíam na simplificação de encontrar um culpado e denunciar uma operação – em um golpe que envolvia prefeitos, governadores e grandes instituições financeiras.
O caso Rússia-Ucrânia envolve vários aspectos, que uma cobertura competente tratará de levar ao espectador-leitor.
Por exemplo:
1- A divisão geopolítica do mundo pós-Segunda Guerra.
2- O isolamento da Rússia, após o fim da União Soviética. Há pensadores americanos conservadores, dos anos 70, alertando para o risco de se tentar isolar a URSS.
3- A manutenção da OTAN – criada exclusivamente para defender a Europa das investidas da Rússia – mesmo após o fim da URSS.
4- O golpe de 2014 na Ucrânia e a ascensão das forças neonazistas, que passaram a integrar as Forças Armadas ucranianas. E – pelamordeDeus – parem de invocar a condição do presidente da Ucrânia, de descendente de judeus, como argumento para rebater a acusação. O nazismo é uma ideologia que atua com o racismo como forma de definir o inimigo externo e aglutinar o ódio. Nos anos 20, o “inimigo” eram os judeus. No século 21, a ultra-direita mundial – incluindo Donald Trump, Jair Bolsonaro e Benzion Netanyahu, o ex-primeiro ministro da Israel – definiu como inimigos os árabes, os negros, os LBTGs etc.
5- A ascensão da China, acabando com o poder único dos Estados Unidos, desde o fim da União Soviética, e obrigando a uma nova divisão geopolítica do mundo.
6- O quadro geopolítico atual, e as análises sobre as condições de Biden e Putin de manterem o moral nacional elevado, para enfrentar a batalha da opinião pública. Tudo isso foi levado em conta por Putin, em sua estratégia.
7 - Os preparativos da Rússia, que há anos se planeja para um enfrentamento econômico de grandes proporções.
8- A partir de todos esses dados, analisar a decisão de Putin de invadir a Ucrânia, com críticas consistentes contra os arroubos do homem de Estado – não com o vizinho de condomínio.
A melhor maneira de trabalhar esses casos complexos – conforme aconselhei a Folha ne época da CPI -, consiste dos seguintes passos:
1- Montar uma sala de situação com os jornalistas envolvidos na cobertura.
2- Montar várias lives com especialistas da matéria, de todas as linhas.
3- A partir daí, desenvolver uma narrativa central, em torno da qual se dará a cobertura. É a chamada “teoria do fato”, a narrativa que permite entender todas as atitudes (entender não significa defender) e que, obviamente, poderá ser alterada à luz de fatos novos.
4- Todos os comentários serão enriquecidos com contextualizações, acabando com o achismo.
Com essa preparação, é possível que se chegue ao final da linha concluindo que Putin, de fato, abusou, quando ordenou a invasão. Mas se sairá desse padrão de tratar o comandante de um dos países mais poderosos do planeta, como um mero descontrolado de boteco.
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