quarta-feira, 10 de maio de 2023

Escravidão também era ato jurídico perfeito

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Por Jair de Souza


Em sua recente viagem a Londres, Lula voltou a se expressar de modo a desagradar profundamente a quase todos os órgãos de nossa mídia corporativa.

Uma das coisas que causou furor generalizado foi a resposta dada por Lula à instigante pergunta formulada por Sara Vivacqua, correspondente de DCM, sobre a perseguição desatada sobre o jornalista australiano Julian Assange, um dos criadores de WikiLeaks.

A insatisfação veio por Lula externar sem rodeios que se sentia indignado com a postura hipócrita de boa parte dos meios de comunicação e seus jornalistas que, embora se arvorem em campeões da defesa da liberdade de expressão, não têm feito nenhuma objeção à violenta perseguição que Assange vem sofrendo por parte das autoridades estadunidenses e daquelas dos países a eles submissos pelo fato de ele ter divulgado publicamente as brutais atrocidades que as forças imperialistas estavam realizando contra as populações locais nos territórios ocupados do Iraque.

Refraseando os termos da questão, Julian Assange vem sendo mantido preso na Inglaterra em condições deploráveis devido a ter ousado expor ao mundo os crimes abomináveis praticados pelas forças bélicas da nação mais poderosa do planeta contra cidadãos comuns dos países subjugados.

Ou seja, aquilo que deveria servir como exemplo de honra e dignidade no exercício da profissão do jornalismo vem sendo ignorado, ou condenado, por quase todos os órgãos corporativos de nosso país associados com os interesses do imperialismo.

Portanto, quando Lula, disse que é uma vergonha que ainda haja jornalistas que aceitem compactuar com esse posicionamento, sua atitude acabou por provocar a ira de quase todos os proprietários desses meios e, inclusive, de muitos de seus funcionários assalariados.

No entanto, se o já mencionado não fosse o suficiente para insuflar a bile dos aliados brasileiros do grande capital internacional, Lula também aproveitou sua passagem pela Inglaterra para reivindicar o direito de nosso Estado corrigir os disparates cometidos no processo de privatização da Eletrobrás.

Segundo o Presidente, nós não podemos aceitar os termos com os quais o conglomerado de empresas públicas que compõem a Eletrobrás foi transferido ao controle de grupos capitalistas privados.

Dentre as medidas consideradas como aberrações praticadas pelo anterior governo nazista-bolsonarista nessa privatização, está a cláusula que limita o poder de decisão da União em detrimento de sua participação societária na entidade.

Sendo assim, embora seja o maior acionista, com cerca de 45% das ações, o Estado só conta com cerca de um quarto dos votos no Conselho Administrativo.

Por isso, mesmo dispondo de um número de ações bem inferior ao do Estado, um grupo de acionistas minoritários privados consegue deter um controle férreo sobre a empresa.

Mas, se não bastasse isso para caracterizar o vilipêndio a que os interesses públicos foram submetidos, o governo nazista-bolsonarista firmou com os contratantes particulares algumas cláusulas ignominiosas que buscavam tornar impossível a reversão legal da situação e a retomada pela União do controle da empresa.

Umas das medidas estipuladas é a exigência de que o Estado tenha de pagar cerca de três vezes mais pelo valor das ações que pretenda readquirir.

Em outras palavras, é o roubo em sua magnitude completa: divide-se por três o valor daquilo que o Estado possui e multiplica-se por três o valor que o Estado deve pagar para recuperar o que lhe foi retirado. Como o que é propriedade do Estado é propriedade do povo, podemos concluir facilmente quem está sendo roubado.

Para entender como foi possível realizar essa transferência da Eletrobrás para o controle privado, precisamos entender que o governo nacional estava naquele momento em mãos de agentes neoliberais bolsonaristas, inteiramente serviçais aos interesses do grande capital imperialista e nacional.

Por outro lado, o grupo privado que mais se beneficiou com essa privatização é encabeçado pelos mesmos empresários que produziram no Brasil o rombo de mais de 40 bilhões nas Americanas, ou seja, estamos diante de gente que sabe fazer grandes negócios para si mesmo.

Já os interesses da nação são os da nação, não têm nada a ver com eles.

Porém, como é bem sabido, ninguém chega a ter o poder de aplicar gigantescos golpes de centenas de bilhões de reais sem dispor de uma estrutura conforme com as exigências da empreitada.

Por isso, nada mais natural de que sua defesa e apologia se expresse com muita ênfase através dos grandes meios de comunicação corporativos.

É que, na verdade, há uma total simbiose entre os capitalistas que arrebataram o controle da Eletrobrás e os que detêm o controle de nossa mídia comercial. Uns estão para os outros assim como os outros estão para os uns, ou seja, são todos farinha do mesmo saco.

Portanto, o que estamos vendo a todo momento de parte de todos os analistas econômicos que aparecem na mídia corporativa é a ladainha de que esta transferência do controle acionário da Eletrobrás ao capital privado se constituiu num ato jurídico perfeito.

Para esse pessoal, tudo foi feito em conformidade com o que as leis estipulam e, portanto, tudo deve ser plenamente respeitado.

Com respeito a essa última observação, convém recordar que a escravidão também já foi um ato jurídico perfeito por aqui, de plena conformidade com as leis que vigiam durante sua existência.

Para acabar com a escravidão foi preciso não acatar a validade de leis que feriam o sentido de justiça. Era mister entender que existe o legal e existe o justo. Agora, como era naquele tempo, não podemos nos submeter ao mero legalismo quando a injustiça é gritante.

Neste momento, estamos à espera de uma decisão do STF que venha a pôr fim a um dos roubos mais atrozes já sofridos por nosso povo ao longo da história.

Nutrimos a esperança de que, desta vez, os verdadeiros interesses da nação se sobreponham e que essa privatização criminosa seja invalidada.

Mas, caso assim não ocorra, a memória daqueles que persistiram em sua luta contra a escravidão naqueles tempos de trevas deve continuar presente. A legalidade só deve ser aceita como tal quando ela estiver imbuída na justiça.

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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