domingo, 17 de outubro de 2010

Porque há um silêncio que ensurdece

Reproduzo artigo enviado pelo amigo Démerson Dias. Discordo, no geral, da sua leitura sobre o governo Lula, mas penso que o texto ajuda a reflexão crítica num setor da esquerda brasileira:

E o venerável Cardeal disse que vê

Tanto espírito no feto

E nenhum no marginal

...

E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo

Diante da chacina

Caetano e Gil, “Haiti”



O processo eleitoral, neste segundo turno, transitava pela dúvida sobre quem seria o melhor gestor capitalista para o Brasil. Até que, alavancada pela vitória de Geraldo Alckmin no primeiro turno para o governo de São Paulo, ressurge com estardalhaço uma vetusta organização política fascista chamada Tradição, Família e Propriedade (TPF, entidade católica que figurou entre os que patrocinaram o golpe de 64).

O governo Lula é neoliberal, mas a TFP, talvez, depois dos skinheads, é o que há de mais fascista neste país. Trata-se de um setor que, de maneira geral, tinha sido derrotado por nós por ocasião da tênue reconstrução democrática.

Enquanto a discussão se dá entre o neoliberalismo condescendente de Lula e o neoliberalismo enrustido dos tucanos (ou o contrário, talvez), a opção é pelo tipo de algoz que preferimos. O estilo a la tucanato é de um algoz que tortura sem rodeios, a sangue frio. Já a plataforma lulista é a de um algoz “esclarecido”, que tortura um pouquinho e depois nos manda à enfermaria, para retomar a tortura mais tarde.

E isso não é um elogio a Lula; seu neoliberalismo é mais cruel, pois dá a nós, trabalhadores, apenas uma sobrevida, enquanto reserva, para o capital, condições nababescas. Como o capitalismo não existe sem suas contradições, o populismo de Lula nos preserva a possibilidade da esperança – não no governo, mas na insurgência, claro.

Em outras palavras, com Serra o povo paga pelo neoliberalismo e ainda morre à míngua; com Dilma, ele pode assistir na TV, durante o jantar, à espoliação de suas riquezas. E ainda comentar por torpedo, ou redes sociais, com os amigos.

Ocorre que por via oblíqua, ou desavisadamente, Lula acaba retificando, na prática, seu caráter de conciliador de classes. Como fosse um capricho da história a alguém que a renega, Lula abre a possibilidade de rompermos o ciclo machista no comando do país (isso não é o mesmo que nada entre nós), e acaba até por render homenagem aos lutadores do Brasil, quando indica a sua sucessão uma mulher que foi às armas contra a ditadura e reivindica esse passado (convenhamos, não no plano histórico, mas pessoalmente é mais do que fez Lula, que renega a esquerda).

A crise à direita é tamanha que somente uns poucos tolos conseguem erguer ilações machistas. O que vai doer mesmo, na própria carne, é que, em primeiro lugar, a direita não tolera os pobres – esses mesmos pobres que busca manipular por meio de seus funcionários fascistoides, invocando fantasmas e demônios para associá-los a Dilma. Há que se convir que a legitimidade do governo Lula é fruto de um assistencialismo turbinado e efetivo.

A segunda provocação é ainda mais intolerável, ao se invocar o passado guerrilheiro, alguns reacionários criminalizam “Estela” pelo assalto aos dólares de um corrupto contumaz paulista. Indagam pelo destino dos recursos nas mãos dos guerrilheiros, mas relevam sua origem (ou seja, há crimes que se toleram e outros que não, a depender de quem os comete). O ataque a Dilma vem se dando, portanto, pelas poucas virtudes existente dentro governo Lula.

O cerne da questão, contudo, não reside aí.

A plataforma que impulsiona a entrada da TFP nesse cenário é o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Lembremos que a maioria dos indicados por Lula ao STF endossou a anistia aos torturadores. Ou seja, o governo Lula é tímido em relação à questão dos direitos humanos.

Para os que legitimam as truculências e os assassinatos da ditadura, a ampliação de garantias contida no PNDH3 é inadmissível. Além de absurdo, é trágico criminalizar o aborto, na medida em que, entre os crimes cometidos, incluem-se estupros. Que legitimidade possuem os que acoitam estupradores para criminalizar o aborto?

Além disso, trata-se de um segmento que considera que o direito à propriedade de uns poucos tem primazia sobre o direito à existência digna dos demais.

O governo Lula não merece meu voto, mas a TFP não admite meu silêncio. Tanto esse passado deplorável ainda é atual que, quase 50 anos depois, ainda se confrontam sobreviventes: de um lado, da truculência reacionária; do outro, da luta contra a ditadura. Não vivi aquele momento e, se o tivesse vivido, não tenho certo até onde iria. Mas não tenho absolutamente nenhuma dúvida sobre o lado ao qual me alinharia.

Há concessões que não se fazem, mas há omissões que nos aproximam da conivência. Deixar de distinguir que as semelhanças entre Dilma e Serra estão num patamar distinto do arco reacionário, que busca voltar a se legitimar no Estado brasileiro a partir da candidatura tucana, é recusar as lições da história. Se todas as direitas fossem iguais, as esquerdas também o seriam. A opção pelo “quanto pior, melhor” é tão desumana quanto reacionária.

Tais setores já demonstraram que podem perfeitamente explorar, com requintes de crueldade, a incapacidade de coesão do campo progressista. Historicamente estavam fadados a serem apenas passado, até que um ligeiro solavanco os trouxe de volta à cena, novamente mandando às favas os escrúpulos da consciência.

Não se trata, portanto, de mero endosso à subordinação capitalista do atual governo, mas de perceber, justamente, que há tons de cinza nessa escala política que podem torná-la ainda mais tétrica. Subestimar adversários dessa estirpe já nos custou 30 anos de retrocesso e milhares de vidas. E é essa compreensão que nos distingue do totalitarismo.

Em resposta à TFP, voto na ex-guerrilheira. Dia 31, voto 13, contra o reascenso do campo fascista. A galopar, até enterrá-los no mar.

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3 comentários:

blog do teacher Ramos disse...

Belo texto. Discordo, porém, dessa afirmação:
"...a legitimidade do governo Lula é fruto de um assistencialismo turbinado e efetivo." Gerar emprego não é assistencialismo, construir universidades não é assistencialismo, mandar jovens para a universidade num país que não tem mão de obra qualificada não assistencialismo. bater recorde não produção de automóveis, com suas consequência no emprego e na renda das pessoas não é assistencialismo. O Bolsa Família é assistencialismo.
Se nó somarmos, em milhões, a quantidade de brasileiros benefiados pelas ações mais acima e a compararmos pela ação assistencialista do Bolsa Família, não podemos concordar que o governo Lula se apoie no assistencialismo. Grande abraço.

Anônimo disse...

Tenho lido por aí, pela internet as contumazes e redundantes críticas da rotulada e enlatada esquerda brasileira ao governo Lula.
Gostaria no entanto de imaginar do alto de tal portentoso saber, como se sairia a esquerda se por acaso tivesse a maioria dos votos em uma eleição presidencial, esquecendo o fato que hoje detém menos de 1% da preferência popular.
Cobram tantas coisas, que cabe fazer uma viagem alucinógena...
Primeiro, estatizariam tudo. Bancos, empresas, tudo.
Depois fariam uma reforma agrária, justa e equitativa, repartindo os latifúndios com todos os agricultores.
Aí dariam um calote no mercado financeiro, claro, isso depois de uma “severa auditoria” nos contratos.
Todos então ficariam felizes, com saúde, educação e pleno emprego das massas trabalhadoras.
E todos os empresários e latifundiários estariam sorridentes e satisfeitos, ao lerem as manchetes de nossa nova e dócil mídia: Finalmente temos democracia.
Fim.

Démerson Dias disse...

Camarada, Miro. Nossas convergências estão bem acima das divergências. Grande Abraço. Démerson.