Por André Barrocal, na revista CartaCapital:
Ovídio, poeta da Roma antiga, foi o primeiro a definir o caos, divindade grega, como sinônimo de desordem e confusão. As fronteiras do mundo eram então minúsculas e seria impossível, por maior que fosse sua criatividade, imaginar o Brasil dos dias de hoje. A ideia evoluiu com o tempo. Há, dizem os cientistas atuais, ordem no caos. Também é pouco provável que, ao defender essa tese, tenham pensado nestas plagas.
Poderiam. Se o País vive o caos, um vácuo de lideranças e ideias, há quem reine sobre ele. No momento, o senhor da confusão, o deus da desordem, atende pelo nome de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados.
Quanto mais os poderes republicanos parecem à mercê da tempestade, mais o peemedebista assume o protagonismo na cena nacional. Como um buraco negro, Cunha parece empenhado em engolir qualquer luz ao redor. Nas últimas semanas, desentendeu-se com o colega de partido Renan Calheiros, presidente do Senado, voltou a importunar o governo Dilma Rousseff, enfrentou o procurador-geral, Rodrigo Janot, cogitou mudar as regras do jogo para reeleger-se ao cargo em 2017 e colocou na praça a ideia de construir um shopping nas imediações do Congresso, cujo custo é estimado em 1 bilhão de reais. A pergunta atual é se a expansão pantagruélica do poder do parlamentar encontrará em algum instante uma contraforça capaz de contê-la. Ou se sua influência se expandirá sem resistência como o Universo.
As diatribes de Cunha já se tornaram clássicas. Depois da terceirização e do desengavetamento de vários projetos polêmicos, a Câmara aprovou a chamada PEC da Bengala, que estende a idade de aposentadoria dos ministros das cortes superiores de 70 para 75 anos. A nova regra vai na contramão do mundo desenvolvido. Na Europa, é cada vez mais limitado o tempo de permanência dos juízes nos tribunais, com a fixação de mandatos, forma de arejar o Judiciário. Sob o comando do presidente da Casa, os deputados aprovaram a nova regra na terça-feira 5. Sem possibilidade de veto do Palácio do Planalto, a lei foi inserida na Constituição dois dias depois.
Com o congelamento das indicações ao Supremo Tribunal Federal, o peemedebista faz correr na Câmara uma proposta de alteração radical no sistema de nomeações. A escolha dos ministros deixaria de ser exclusividade do presidente da República. O Congresso ganharia uma cota.
Além disso, a aprovação dos indicados passaria pelo crivo da Câmara, não só do Senado como hoje. Ao saborear o mais recente triunfo, Cunha afirmou a um interlocutor: “Tenho o Supremo na mão”.
Com a aprovação da PEC da Bengala, o presidente da Câmara imagina ter conquistado alguns corações no STF, onde será decidido o seu e o futuro dos demais parlamentares envolvidos no escândalo da Petrobras. Quando resolveu, em almoço com aliados na terça-feira 5, concluir a bengalada, a Câmara tinha acabado de ser alvo de uma operação de busca e apreensão motivada por um inquérito cujo alvo é o peemedebista. Acompanhados de um oficial de Justiça, procuradores e peritos da Procuradoria-Geral da República foram ao departamento de informática da Câmara, algo sem precedentes na história recente. O objetivo era recolher material capaz de provar uma das principais linhas de investigação da conexão do peemedebista com os malfeitos na Petrobras: uma tentativa de forçar um lobista a retomar o pagamento de propina, conforme narrou o doleiro Alberto Youssef em sua delação premiada.
A apreensão foi solicitada pelo procurador-geral, Rodrigo Janot, após uma notícia de 28 de abril. Segundo a Folha de S.Paulo, os registros eletrônicos da Câmara apontam Cunha como o autor do arquivo que originou os requerimentos aparentemente usados para pressionar o lobista. Os requerimentos foram apresentados em 2011 pela então deputada Solange Almeida, sua aliada no PMDB do Rio de Janeiro. Miravam o Grupo Mitsui, implicado na Lava Jato, e seu lobista Julio Camargo. Cunha alega que o arquivo com seu nome tem data de um mês posterior aos requerimentos, insinuou ser vítima de fraude e demitiu o então diretor do centro de informática da Câmara, Luiz Antonio Souza da Eira.
O ex-diretor fez chegar a Janot um recado de que estava disposto a contar o que sabia. Chamado, Eira disse que a explicação de Cunha não era plausível, que a discrepância entre as datas era algo absolutamente rotineiro neste tipo de situação e avisou: era melhor Janot correr logo atrás dos registros eletrônicos antes que Cunha ordenasse algum tipo de destruição. Respaldado pelas informações, o procurador-geral taxou a explicação de Cunha de “despropositada” e solicitou a apreensão de material na área de informática da Câmara.
A apreensão foi autorizada na segunda-feira 4 pelo ministro Teori Zavascki, relator no Supremo do inquérito contra o deputado. Os investigadores ficaram satisfeitos com o resultado da apreensão. Solange Almeida, consideram, teria exercido a função de laranja de Cunha. Em depoimento à Polícia Federal em 18 de março, a ex-parlamentar demonstrou não ter muita noção sobre a natureza e o objetivo do requerimento assinado em 2011. Disse não se lembrar “de onde extraiu a motivação para formular o requerimento relativo à Petrobras”, “que o tema desse requerimento não se inseria em sua pauta de atuação parlamentar” e “que não conhece o Grupo Mitsui nem nada sabe a respeito”.
Os assessores de Cunha talvez possam refrescar a memória da atual prefeita de Rio Bonito. O deputado admitiu a possibilidade de seu gabinete ter auxiliado Almeida a preparar a papelada. O presidente da Câmara recusou-se a depor à PF. Até agora, limitou-se a dar explicações na CPI da Petrobras, teatro armado por ele mesmo. Foi à comissão de forma espontânea, condição que o desobrigou de prestar o juramento de dizer só a verdade. Diante da plateia, foi enfático: “Eu não fiz qualquer requerimento a quem quer que seja”. Se a declaração colidir com os fatos, não terá motivo para se preocupar apenas com a Justiça.
Surgiria a possibilidade de um pedido de cassação por quebra de decoro.
Por ora, nenhum partido se animou a propor algo semelhante.
Furioso diante dos acontecimentos, o presidente da Câmara chamou o procurador-geral para a briga. Disse existir uma “querela pessoal” por parte de Janot, passou a articular a convocação dele pela CPI da Petrobras, uma explícita tentativa de intimidá-lo, e agora defende que o procurador-geral não seja reconduzido por Dilma ao cargo, quando o mandato dele terminar, em setembro.
Janot parece ter razão para desconfiar da sinceridade das explicações do peemedebista sobre o episódio dos arquivos eletrônicos. Às vezes, o deputado é acometido de certo desapego à verdade factual. Na última semana de abril, ele foi a um jantar com deputados correligionários e dois ministros indicados pelo partido, na casa do mineiro Newton Cardoso Jr. Ali, debochou dos petistas: “O PT não ganha uma votação, só quando a gente fica com pena na última hora”. A afirmação virou notícia em O Globo. O presidente da Câmara prontamente a desmentiu, pelo Twitter:
“Não pronunciei o comentário a mim atribuído no jantar da bancada. Apesar das diferenças, sempre trato a todos com respeito”.
Ele só não contava que, entre os comensais, houvesse um gravador ligado. O áudio com a declaração foi publicado pelo jornal na internet logo após o desmentido. Cunha retratou-se, também pelo Twitter: “Se me enganei e falei algo que não me lembrava e possa ter sido agressivo, ao PT peço desculpas”.
A personalidade do deputado é um caso à parte até agora em seus três meses de reinado na Câmara. Ele tem tido uma atitude pouco habitual em Brasília. No comando das sessões, a portas fechadas ou em entrevistas, costuma ser ríspido, impaciente, soberbo e debochado, principalmente quando alguém ensaia contestá-lo. A votação da lei da terceirização foi um festival de insensibilidade. Com a voz monocórdica mesmo em situações tensas, revela pouco coração e nenhuma empatia. A insistência em dizer-se independente do governo e em pautar votações polêmicas sem muito debate indicam egoísmo, até uma velada incitação à intolerância.
Sua postura monárquica tem intimidado deputados e espalhado terror entre funcionários da Câmara. Ele demitiu um diretor por dar declarações a jornalistas e anunciou a demissão de outro em meio a uma entrevista.
Desconfiado, recusa-se a ser assessorado por servidores concursados, só nomeia gente da sua confiança, certo da fidelidade canina mesmo em situações duvidosas, e evita conversar ao telefone ou com aliados quando próximo de seguranças e motoristas.
O peemedebista gaúcho José Fogaça foi constituinte, senador e prefeito de Porto Alegre e voltou neste ano a Brasília depois de 12 anos longe.
Segundo ele, Cunha é quem melhor entende e explora o caótico sistema político atual, em que há partidos demais e consistência de menos. Sua inteligência acima da média dos colegas, o profundo conhecimento do regimento interno da Casa e a caneta de presidente da Câmara nas mãos facilitam seu trabalho. “Ele consegue construir maioria tanto com o governo quanto com a oposição”, diz o deputado, a apontar uma razão especial para a força do colega de bancada: “Nunca vi um governo tão desarticulado. O Palácio é isolacionista”.
No PSDB, principal partido de oposição, o estilo de Cunha tem deixado muita gente ressabiada. Entre tucanos, é possível perceber certa cautela em análises a respeito do presidente da Câmara. Se, por um lado, o peemedebista é útil para dividir a base aliada e desgastar Dilma Rousseff, por outro, tem uma atitude e uma agenda merecedoras de reparos. Para Luiz Carlos Hauly, do Paraná, ele exibe uma “postura imperial” e uma pauta de votações “exagerada”. Marcus Pestana, de Minas Gerais, vê um “rolo compressor” em sua gestão e resume: “Nossa relação com ele é dialética, não vamos concordar em tudo o tempo todo”.
Quem comanda a Câmara, a história ensina, funciona ou como líder da oposição ou como interventor do Planalto entre os deputados. Cunha tem sido um presidente do primeiro tipo, com a diferença de possuir um projeto próprio de poder, desvinculado de grupos tradicionais, na avaliação do sociólogo Adalberto Cardoso, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Sua agenda conservadora, que mistura religião e poder econômico, diz Cardoso, atende a seu interesse pessoal, não do PMDB, uma das razões para o atrito com Calheiros. Armado dessa agenda e em busca de projeção nacional, o deputado poderá construir uma herança ideológica cujo desfecho natural seria uma candidatura à Presidência na próxima eleição.
“Ele está imbuído de uma missão, tem maioria sólida na Câmara e o controle da agenda política no Congresso. Mas é um movimento de altíssimo risco. No Brasil, qualquer agenda radical assusta até o centro.”
Historicamente mais conservador do que a Câmara, o Senado viu surgirem barricadas contra o deputado, algo incomum na convivência entre as duas casas. Uma das trincheiras é liderada pelo presidente do Senado. Renan Calheiros trava com o colega uma luta por poder no PMDB. Uma questão de sobrevivência para quem é igualmente alvo da Lava Jato. Quanto mais fraco se apresentar perante o mundo político e na mídia, mais Calheiros estará perto do cadafalso.
Nos últimos tempos, o senador sempre aproveita a oportunidade para se diferenciar do correligionário. A lei da terceirização foi um desses casos. Calheiros imbuiu-se do papel de defensor dos trabalhadores e criticou abertamente o projeto. Segundo ele, o PMDB é historicamente de “centro-esquerda”, uma forma sutil de atacar o marcante conservadorismo de Cunha. Dias atrás, em reunião com senadores, disse que a bancada do partido na Câmara, Cunha à frente, sitiou o Palácio do Planalto em busca de cargos federais. Ao apontar tal cerco, aproveitou para criticar o vice-presidente da República, Michel Temer, chamado de “coordenador de RH”, motivo de uma arranca-rabo público entre os dois.
Outra trincheira contra o “cunhismo” é a frente progressista formada por parlamentares de diversos partidos com o propósito de barrar iniciativas retrógradas da Câmara, que, sob a bênção do evangélico, possam ser aprovadas pelos deputados e enviadas aos senadores. O estopim da formação do grupo foi a lei da terceirização. Também estão na mira o Estatuto da Família, um ataque aos direitos já existentes em casos de união homoafetiva, a redução da maioridade penal para 16 anos e a revogação do Estatuto do Desarmamento, todos projetos patrocinados por Cunha. O lançamento da frente deu-se no gabinete do líder do PSB, João Capiberibe. Para o senador, o peemedebista tornou-se um problema para o País. “Ele estabeleceu uma relação clientelista com sua base na Câmara. No momento político que vivemos, um personagem como esse é muito arriscado para a sociedade.”
A reação anti-Cunha igualmente se esboça nas ruas. Desde março, o peemedebista viaja pelo País quase toda sexta-feira, a bordo de jatinhos da FAB, para vender pelas capitais suas ideias, entre elas as doações empresariais de campanhas. O tour foi batizado de Câmara Itinerante, uma promessa da campanha à presidência da Casa. Seria uma tentativa de melhorar a imagem do Parlamento e, claro, torná-lo mais conhecido do eleitorado. As itinerantes aparições não têm rendido, porém, a glória esperada. Cunha costuma ser recebido com apitaços, ovos, vaias e beijaços gays. Em São Paulo, esperava-o a faixa “Fora Eduardo Cunha, corrupto, homofóbico”. Em Campo Grande, o epíteto de “inimigo número 1 da classe trabalhadora”.
Em Porto Alegre, a Assembleia Legislativa teve de ser fechada e os manifestantes postos para fora. Em João Pessoa, o deputado ficou tão furioso ao ser obrigado a deixar a Assembleia debaixo de ovos e protestos, que atacou o PT, a CUT, o movimento LGBT e o próprio governador, Ricardo Coutinho, do PSB, a quem culpou de omissão em garantir sua segurança. “Não tenho culpa se as teses que o senhor Eduardo Cunha defende são impróprias e provocam esse tipo de reação”, reagiu Coutinho. “Eu já fui alvo de protestos, ele não pode? Ele deveria pedir desculpas à Paraíba.” Depois de tantos percalços, o presidente da Câmara resolveu parar de propagandear suas viagens com antecedência, uma tentativa de impedir a organização de protestos.
Nada, porém, parece abalá-lo. Para cativar deputados aliados, ele acaba de tirar do papel um antigo plano de construção de um novo prédio para a Câmara, projeto estimado em 1 bilhão de reais. A ideia agrada a quase todos os partidos, pois daria mais conforto aos parlamentares. Na inauguração da capital federal, em 1960, havia 326 deputados. Hoje, são 513. De lá para cá foram construídos três anexos, mas ainda há uma sensação de aperto, pois, quando a ditadura acabou, havia cerca de 8 mil funcionários, entre concursados e cargos de confiança, e agora são 18 mil.
Cunha quer fazer a licitação até o fim de seu mandato à frente da Câmara. Parece ter enxergado aí uma oportunidade para praticar seu conhecido tino comercial, ao aproveitar a força do Estado para estimular negócios privados. Seu sonho é botar de pé uma espécie de shopping ao lado do novo anexo, apesar de as regras de Brasília não admitirem prédios do gênero nas redondezas. O grande fluxo de visitantes e servidores e o elevado poder aquisitivo dos frequentadores indicam a existência de um “alto potencial comercial” na Câmara, segundo Beto Mansur, do PRB, primeiro-secretário da Casa.
A construção do shopping é o motivo de o peemedebista estar decidido a tocar o projeto na forma de Parceria Público-Privada mesmo sem autorização expressa da lei para PPPs no Legislativo. Quando a ideia foi tornada pública pelo então diretor de Estudos Técnicos da Câmara, Mauricio da Matta, Cunha o demitiu. O deputado tentou arrancar a autorização para a PPP no fim de 2014, por meio de uma Medida Provisória da qual era um dos relatores. O dispositivo foi vetado por Dilma em janeiro, mas isso não o impediu de assinar, em março, um documento no qual divulgava a intenção da Câmara de buscar interessados em elaborar o projeto. Em breve tentará de novo inserir a autorização na lei.
Na quarta-feira 6, saíram os nomes das cinco empresas habilitadas a entregar os croquis em 45 dias: Ceres Inteligência Financeira, Concremat Engenharia e Tecnologia, Planos Engenharia, Via Engenharia, Consórcio Emsa-Servi. Com base na construção de uma nova sede do governo do Distrito Federal, inaugurada no fim do ano passado, há quem calcule que a PPP planejada por Cunha pode significar um fluxo financeiro de uns 300 milhões de reais por ano. Ótimo negócio.
Um shopping em região já demasiadamente engarrafada seria um símbolo perfeito do poder de Cunha, o senhor do caos.
Poderiam. Se o País vive o caos, um vácuo de lideranças e ideias, há quem reine sobre ele. No momento, o senhor da confusão, o deus da desordem, atende pelo nome de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados.
Quanto mais os poderes republicanos parecem à mercê da tempestade, mais o peemedebista assume o protagonismo na cena nacional. Como um buraco negro, Cunha parece empenhado em engolir qualquer luz ao redor. Nas últimas semanas, desentendeu-se com o colega de partido Renan Calheiros, presidente do Senado, voltou a importunar o governo Dilma Rousseff, enfrentou o procurador-geral, Rodrigo Janot, cogitou mudar as regras do jogo para reeleger-se ao cargo em 2017 e colocou na praça a ideia de construir um shopping nas imediações do Congresso, cujo custo é estimado em 1 bilhão de reais. A pergunta atual é se a expansão pantagruélica do poder do parlamentar encontrará em algum instante uma contraforça capaz de contê-la. Ou se sua influência se expandirá sem resistência como o Universo.
As diatribes de Cunha já se tornaram clássicas. Depois da terceirização e do desengavetamento de vários projetos polêmicos, a Câmara aprovou a chamada PEC da Bengala, que estende a idade de aposentadoria dos ministros das cortes superiores de 70 para 75 anos. A nova regra vai na contramão do mundo desenvolvido. Na Europa, é cada vez mais limitado o tempo de permanência dos juízes nos tribunais, com a fixação de mandatos, forma de arejar o Judiciário. Sob o comando do presidente da Casa, os deputados aprovaram a nova regra na terça-feira 5. Sem possibilidade de veto do Palácio do Planalto, a lei foi inserida na Constituição dois dias depois.
Com o congelamento das indicações ao Supremo Tribunal Federal, o peemedebista faz correr na Câmara uma proposta de alteração radical no sistema de nomeações. A escolha dos ministros deixaria de ser exclusividade do presidente da República. O Congresso ganharia uma cota.
Além disso, a aprovação dos indicados passaria pelo crivo da Câmara, não só do Senado como hoje. Ao saborear o mais recente triunfo, Cunha afirmou a um interlocutor: “Tenho o Supremo na mão”.
Com a aprovação da PEC da Bengala, o presidente da Câmara imagina ter conquistado alguns corações no STF, onde será decidido o seu e o futuro dos demais parlamentares envolvidos no escândalo da Petrobras. Quando resolveu, em almoço com aliados na terça-feira 5, concluir a bengalada, a Câmara tinha acabado de ser alvo de uma operação de busca e apreensão motivada por um inquérito cujo alvo é o peemedebista. Acompanhados de um oficial de Justiça, procuradores e peritos da Procuradoria-Geral da República foram ao departamento de informática da Câmara, algo sem precedentes na história recente. O objetivo era recolher material capaz de provar uma das principais linhas de investigação da conexão do peemedebista com os malfeitos na Petrobras: uma tentativa de forçar um lobista a retomar o pagamento de propina, conforme narrou o doleiro Alberto Youssef em sua delação premiada.
A apreensão foi solicitada pelo procurador-geral, Rodrigo Janot, após uma notícia de 28 de abril. Segundo a Folha de S.Paulo, os registros eletrônicos da Câmara apontam Cunha como o autor do arquivo que originou os requerimentos aparentemente usados para pressionar o lobista. Os requerimentos foram apresentados em 2011 pela então deputada Solange Almeida, sua aliada no PMDB do Rio de Janeiro. Miravam o Grupo Mitsui, implicado na Lava Jato, e seu lobista Julio Camargo. Cunha alega que o arquivo com seu nome tem data de um mês posterior aos requerimentos, insinuou ser vítima de fraude e demitiu o então diretor do centro de informática da Câmara, Luiz Antonio Souza da Eira.
O ex-diretor fez chegar a Janot um recado de que estava disposto a contar o que sabia. Chamado, Eira disse que a explicação de Cunha não era plausível, que a discrepância entre as datas era algo absolutamente rotineiro neste tipo de situação e avisou: era melhor Janot correr logo atrás dos registros eletrônicos antes que Cunha ordenasse algum tipo de destruição. Respaldado pelas informações, o procurador-geral taxou a explicação de Cunha de “despropositada” e solicitou a apreensão de material na área de informática da Câmara.
A apreensão foi autorizada na segunda-feira 4 pelo ministro Teori Zavascki, relator no Supremo do inquérito contra o deputado. Os investigadores ficaram satisfeitos com o resultado da apreensão. Solange Almeida, consideram, teria exercido a função de laranja de Cunha. Em depoimento à Polícia Federal em 18 de março, a ex-parlamentar demonstrou não ter muita noção sobre a natureza e o objetivo do requerimento assinado em 2011. Disse não se lembrar “de onde extraiu a motivação para formular o requerimento relativo à Petrobras”, “que o tema desse requerimento não se inseria em sua pauta de atuação parlamentar” e “que não conhece o Grupo Mitsui nem nada sabe a respeito”.
Os assessores de Cunha talvez possam refrescar a memória da atual prefeita de Rio Bonito. O deputado admitiu a possibilidade de seu gabinete ter auxiliado Almeida a preparar a papelada. O presidente da Câmara recusou-se a depor à PF. Até agora, limitou-se a dar explicações na CPI da Petrobras, teatro armado por ele mesmo. Foi à comissão de forma espontânea, condição que o desobrigou de prestar o juramento de dizer só a verdade. Diante da plateia, foi enfático: “Eu não fiz qualquer requerimento a quem quer que seja”. Se a declaração colidir com os fatos, não terá motivo para se preocupar apenas com a Justiça.
Surgiria a possibilidade de um pedido de cassação por quebra de decoro.
Por ora, nenhum partido se animou a propor algo semelhante.
Furioso diante dos acontecimentos, o presidente da Câmara chamou o procurador-geral para a briga. Disse existir uma “querela pessoal” por parte de Janot, passou a articular a convocação dele pela CPI da Petrobras, uma explícita tentativa de intimidá-lo, e agora defende que o procurador-geral não seja reconduzido por Dilma ao cargo, quando o mandato dele terminar, em setembro.
Janot parece ter razão para desconfiar da sinceridade das explicações do peemedebista sobre o episódio dos arquivos eletrônicos. Às vezes, o deputado é acometido de certo desapego à verdade factual. Na última semana de abril, ele foi a um jantar com deputados correligionários e dois ministros indicados pelo partido, na casa do mineiro Newton Cardoso Jr. Ali, debochou dos petistas: “O PT não ganha uma votação, só quando a gente fica com pena na última hora”. A afirmação virou notícia em O Globo. O presidente da Câmara prontamente a desmentiu, pelo Twitter:
“Não pronunciei o comentário a mim atribuído no jantar da bancada. Apesar das diferenças, sempre trato a todos com respeito”.
Ele só não contava que, entre os comensais, houvesse um gravador ligado. O áudio com a declaração foi publicado pelo jornal na internet logo após o desmentido. Cunha retratou-se, também pelo Twitter: “Se me enganei e falei algo que não me lembrava e possa ter sido agressivo, ao PT peço desculpas”.
A personalidade do deputado é um caso à parte até agora em seus três meses de reinado na Câmara. Ele tem tido uma atitude pouco habitual em Brasília. No comando das sessões, a portas fechadas ou em entrevistas, costuma ser ríspido, impaciente, soberbo e debochado, principalmente quando alguém ensaia contestá-lo. A votação da lei da terceirização foi um festival de insensibilidade. Com a voz monocórdica mesmo em situações tensas, revela pouco coração e nenhuma empatia. A insistência em dizer-se independente do governo e em pautar votações polêmicas sem muito debate indicam egoísmo, até uma velada incitação à intolerância.
Sua postura monárquica tem intimidado deputados e espalhado terror entre funcionários da Câmara. Ele demitiu um diretor por dar declarações a jornalistas e anunciou a demissão de outro em meio a uma entrevista.
Desconfiado, recusa-se a ser assessorado por servidores concursados, só nomeia gente da sua confiança, certo da fidelidade canina mesmo em situações duvidosas, e evita conversar ao telefone ou com aliados quando próximo de seguranças e motoristas.
O peemedebista gaúcho José Fogaça foi constituinte, senador e prefeito de Porto Alegre e voltou neste ano a Brasília depois de 12 anos longe.
Segundo ele, Cunha é quem melhor entende e explora o caótico sistema político atual, em que há partidos demais e consistência de menos. Sua inteligência acima da média dos colegas, o profundo conhecimento do regimento interno da Casa e a caneta de presidente da Câmara nas mãos facilitam seu trabalho. “Ele consegue construir maioria tanto com o governo quanto com a oposição”, diz o deputado, a apontar uma razão especial para a força do colega de bancada: “Nunca vi um governo tão desarticulado. O Palácio é isolacionista”.
No PSDB, principal partido de oposição, o estilo de Cunha tem deixado muita gente ressabiada. Entre tucanos, é possível perceber certa cautela em análises a respeito do presidente da Câmara. Se, por um lado, o peemedebista é útil para dividir a base aliada e desgastar Dilma Rousseff, por outro, tem uma atitude e uma agenda merecedoras de reparos. Para Luiz Carlos Hauly, do Paraná, ele exibe uma “postura imperial” e uma pauta de votações “exagerada”. Marcus Pestana, de Minas Gerais, vê um “rolo compressor” em sua gestão e resume: “Nossa relação com ele é dialética, não vamos concordar em tudo o tempo todo”.
Quem comanda a Câmara, a história ensina, funciona ou como líder da oposição ou como interventor do Planalto entre os deputados. Cunha tem sido um presidente do primeiro tipo, com a diferença de possuir um projeto próprio de poder, desvinculado de grupos tradicionais, na avaliação do sociólogo Adalberto Cardoso, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Sua agenda conservadora, que mistura religião e poder econômico, diz Cardoso, atende a seu interesse pessoal, não do PMDB, uma das razões para o atrito com Calheiros. Armado dessa agenda e em busca de projeção nacional, o deputado poderá construir uma herança ideológica cujo desfecho natural seria uma candidatura à Presidência na próxima eleição.
“Ele está imbuído de uma missão, tem maioria sólida na Câmara e o controle da agenda política no Congresso. Mas é um movimento de altíssimo risco. No Brasil, qualquer agenda radical assusta até o centro.”
Historicamente mais conservador do que a Câmara, o Senado viu surgirem barricadas contra o deputado, algo incomum na convivência entre as duas casas. Uma das trincheiras é liderada pelo presidente do Senado. Renan Calheiros trava com o colega uma luta por poder no PMDB. Uma questão de sobrevivência para quem é igualmente alvo da Lava Jato. Quanto mais fraco se apresentar perante o mundo político e na mídia, mais Calheiros estará perto do cadafalso.
Nos últimos tempos, o senador sempre aproveita a oportunidade para se diferenciar do correligionário. A lei da terceirização foi um desses casos. Calheiros imbuiu-se do papel de defensor dos trabalhadores e criticou abertamente o projeto. Segundo ele, o PMDB é historicamente de “centro-esquerda”, uma forma sutil de atacar o marcante conservadorismo de Cunha. Dias atrás, em reunião com senadores, disse que a bancada do partido na Câmara, Cunha à frente, sitiou o Palácio do Planalto em busca de cargos federais. Ao apontar tal cerco, aproveitou para criticar o vice-presidente da República, Michel Temer, chamado de “coordenador de RH”, motivo de uma arranca-rabo público entre os dois.
Outra trincheira contra o “cunhismo” é a frente progressista formada por parlamentares de diversos partidos com o propósito de barrar iniciativas retrógradas da Câmara, que, sob a bênção do evangélico, possam ser aprovadas pelos deputados e enviadas aos senadores. O estopim da formação do grupo foi a lei da terceirização. Também estão na mira o Estatuto da Família, um ataque aos direitos já existentes em casos de união homoafetiva, a redução da maioridade penal para 16 anos e a revogação do Estatuto do Desarmamento, todos projetos patrocinados por Cunha. O lançamento da frente deu-se no gabinete do líder do PSB, João Capiberibe. Para o senador, o peemedebista tornou-se um problema para o País. “Ele estabeleceu uma relação clientelista com sua base na Câmara. No momento político que vivemos, um personagem como esse é muito arriscado para a sociedade.”
A reação anti-Cunha igualmente se esboça nas ruas. Desde março, o peemedebista viaja pelo País quase toda sexta-feira, a bordo de jatinhos da FAB, para vender pelas capitais suas ideias, entre elas as doações empresariais de campanhas. O tour foi batizado de Câmara Itinerante, uma promessa da campanha à presidência da Casa. Seria uma tentativa de melhorar a imagem do Parlamento e, claro, torná-lo mais conhecido do eleitorado. As itinerantes aparições não têm rendido, porém, a glória esperada. Cunha costuma ser recebido com apitaços, ovos, vaias e beijaços gays. Em São Paulo, esperava-o a faixa “Fora Eduardo Cunha, corrupto, homofóbico”. Em Campo Grande, o epíteto de “inimigo número 1 da classe trabalhadora”.
Em Porto Alegre, a Assembleia Legislativa teve de ser fechada e os manifestantes postos para fora. Em João Pessoa, o deputado ficou tão furioso ao ser obrigado a deixar a Assembleia debaixo de ovos e protestos, que atacou o PT, a CUT, o movimento LGBT e o próprio governador, Ricardo Coutinho, do PSB, a quem culpou de omissão em garantir sua segurança. “Não tenho culpa se as teses que o senhor Eduardo Cunha defende são impróprias e provocam esse tipo de reação”, reagiu Coutinho. “Eu já fui alvo de protestos, ele não pode? Ele deveria pedir desculpas à Paraíba.” Depois de tantos percalços, o presidente da Câmara resolveu parar de propagandear suas viagens com antecedência, uma tentativa de impedir a organização de protestos.
Nada, porém, parece abalá-lo. Para cativar deputados aliados, ele acaba de tirar do papel um antigo plano de construção de um novo prédio para a Câmara, projeto estimado em 1 bilhão de reais. A ideia agrada a quase todos os partidos, pois daria mais conforto aos parlamentares. Na inauguração da capital federal, em 1960, havia 326 deputados. Hoje, são 513. De lá para cá foram construídos três anexos, mas ainda há uma sensação de aperto, pois, quando a ditadura acabou, havia cerca de 8 mil funcionários, entre concursados e cargos de confiança, e agora são 18 mil.
Cunha quer fazer a licitação até o fim de seu mandato à frente da Câmara. Parece ter enxergado aí uma oportunidade para praticar seu conhecido tino comercial, ao aproveitar a força do Estado para estimular negócios privados. Seu sonho é botar de pé uma espécie de shopping ao lado do novo anexo, apesar de as regras de Brasília não admitirem prédios do gênero nas redondezas. O grande fluxo de visitantes e servidores e o elevado poder aquisitivo dos frequentadores indicam a existência de um “alto potencial comercial” na Câmara, segundo Beto Mansur, do PRB, primeiro-secretário da Casa.
A construção do shopping é o motivo de o peemedebista estar decidido a tocar o projeto na forma de Parceria Público-Privada mesmo sem autorização expressa da lei para PPPs no Legislativo. Quando a ideia foi tornada pública pelo então diretor de Estudos Técnicos da Câmara, Mauricio da Matta, Cunha o demitiu. O deputado tentou arrancar a autorização para a PPP no fim de 2014, por meio de uma Medida Provisória da qual era um dos relatores. O dispositivo foi vetado por Dilma em janeiro, mas isso não o impediu de assinar, em março, um documento no qual divulgava a intenção da Câmara de buscar interessados em elaborar o projeto. Em breve tentará de novo inserir a autorização na lei.
Na quarta-feira 6, saíram os nomes das cinco empresas habilitadas a entregar os croquis em 45 dias: Ceres Inteligência Financeira, Concremat Engenharia e Tecnologia, Planos Engenharia, Via Engenharia, Consórcio Emsa-Servi. Com base na construção de uma nova sede do governo do Distrito Federal, inaugurada no fim do ano passado, há quem calcule que a PPP planejada por Cunha pode significar um fluxo financeiro de uns 300 milhões de reais por ano. Ótimo negócio.
Um shopping em região já demasiadamente engarrafada seria um símbolo perfeito do poder de Cunha, o senhor do caos.
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