Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
É claro que a evolução da conjuntura grega nos oferece um mais-do-que-justificado entusiasmo momentâneo. Uma espécie de desabafo a todos os que insistimos, há muito tempo, na tese de que é possível um outro caminho para a superação de nossa crise tupiniquim. No entanto, infelizmente parece estarmos longe da adoção de tal mudança de rumo. Ao que tudo indica, permanece a falta de vontade e de coragem políticas para operar tal alteração na essência da política econômica. Ao optar pela entrega completa da condução de tais decisões nas mãos de um representante legítimo do financismo privado, o governo perde toda a capacidade de voltar-se na direção dos setores mais penalizados pela estratégia do arrocho e do austericídio.
A crise que o Brasil está experimentando é de uma gravidade extrema. E aqui vou me deter tão somente aos elementos fundantes de todos os outros aspectos de nossa vida social: as dificuldades na esfera da economia. Não bastasse o acompanhamento cotidiano das informações estatísticas e dos números oficiais, a própria realidade da vida dos indivíduos e das empresas demonstra que as opções adotadas desde o final das eleições passadas encaminham o País ladeira abaixo. Aliás, essa tem sido a receita base de todas as políticas de ajuste e de estabilização implementadas há décadas pelo mundo afora. As contas dos sacrifícios são sistematicamente jogadas nas costas dos mais vulneráveis, sejam eles países ou classes sociais.
A reação inicial típica de desqualificar a priori qualquer observação crítica aos rumos da política econômica não me parece ser uma opção inteligente. O simples fato de que as representações políticas das forças mais conservadoras ocupem seus discursos com acusações contra o governo não pode inibir aqueles que temos também nossas observações. Inclusive pelo fato de que são críticas para que se recupere o sentido do desenvolvimentismo e do projeto de país que foi vitorioso nas eleições de outubro passado. Se os grandes meios de comunicação aproveitam o quadro para bater no governo em razão da crise e sugerir a todo momento a saída pela via das tentações golpistas, isso não deve servir como desculpa para que se apoiem, de forma incondicional, as irresponsabilidades contidas nas propostas do Ministério da Fazenda.
A crise pode ser mais bem descrita a partir de uma rodada ampla sobre os mais diversos indicadores de nossa dinâmica econômica. Vamos a eles.
A inflação tem apresentado uma tendência de alta ao longo dos últimos meses, pressionada principalmente pela alta dos preços administrados pelo governo (tarifas de energia elétrica, água, transporte público, entre outras) e por movimentos sazonais nos preços de alimentos. Além disso, está em curso um impacto sobre os preços derivado do movimento recente (necessário, aliás) de desvalorização cambial, em razão do aumento dos custos dos bens importados. Os resultados do IPCA de junho apontam para a inflação anual se aproximando perigosamente de 9%. Ou seja, bem acima da meta de 4,5%, com seu intervalo superior aceitável até 6,5%.
Um dos principais problemas associados a essa alta da taxa de inflação reside na forma como o imexível modelo do tripé da política econômica lida com o fenômeno. O viés ortodoxo recomenda cegamente que a solução para tanto seja o arrocho na política monetária, por meio da elevação da taxa oficial de juros. E aqui chegamos ao outro ponto fulcral da gravidade da crise. O Comitê de Política Monetária (COPOM) tem marcado sua atuação na contramão do recomendado para a retomada do crescimento. O histórico de suas últimas 6 reuniões apresentou uma sequência sucessiva de decisões do colegiado pela elevação da taxa de juros. A SELIC estava estabilizada em 11% entre abril e setembro do ano passado. A partir de então ela iniciou essa trajetória altista, até atingir os atuais 13,75%.
A opção pela manutenção da política de geração de superávit primário vem completar o quadro que aponta para a recessão. Tendo por objetivo inquebrantável atingir uma meta irrealista, o governo se sujeita a uma estratégia que concentra o foco no corte de despesas, em particular aquelas de natureza social e as relativas aos investimentos necessários. Ao se recusar a lançar mão de fontes de receita que mirassem no chamado andar de cima, mantém-se um modelo de tributação altamente regressivo, onde os setores de menor renda contribuem relativamente muito mais do que as empresas e as camadas mais abastadas da sociedade. As despesas financeiras da União com pagamento de juros da dívida pública aumentam e as desonerações para o capital não são lá muito afetadas em sua essência. Reproduz-se aqui também a crueldade da brutal desigualdade de renda e patrimônio.
Esse foi o caldo de cultura para piorar ainda mais o clima de incerteza e custos elevados dos empresários. A (in)ação do governo terminou por se revelar pró-cíclica, no sentido da paralisia que levava à redução do ritmo das atividades de uma forma generalizada. E os números começaram a expressar o movimento real da economia. As informações das entidades do comércio demonstram que as atividades encerraram o primeiro semestre com os piores resultados para os últimos 12 anos. Apesar de ainda registrar alta de 2,6%, as quedas foram puxadas por setores mais dinâmicos como automobilístico, construção civil e combustíveis. Por outro lado, dados da Pesquisa Mensal do Comércio do IBGE relativos a abril revelam que o volume anual de vendas está praticamente estagnado, com aumento de 0,2% nos últimos 12 meses.
A dinâmica na indústria também apresenta uma retração, com queda na produção, adoção de férias coletivas e demissão generalizada. Dados do IBGE de maio revelam que a produção industrial geral tem acumulado uma perda de 5,2% ao longo dos últimos 12 meses. Os dados mais preocupantes referem-se a setores estratégicos, que são os maiores agregadores de valor na escala produtiva da indústria: bens de capital aparecem com -15,8% e bens duráveis com -14,5%. A construção civil também apresenta um quadro de redução das atividades, atingindo níveis de 5 anos atrás. Além da dificuldade geral das empresas e das famílias, o setor é bastante dependente da demanda do governo e este sinaliza com redução de seus gastos. O clima das operações levadas a cabo pela Polícia Federal, pelo Judiciário e pelas CPIs no Congresso também contribui para reforçar tal paralisia.
Frente a essa combinação de fatores negativos, a tendência à recessão se impõe. Segundo o IBGE, o nível de desemprego continua subindo e atingiu a marca de 8,1% em maio. Além disso, as pesquisas revelam que o rendimento real médio dos assalariados diminuiu ao longo dos últimos 12 meses. Com isso, a conclusão inequívoca passa também a ser comprovada pelo Instituto: a massa salarial registrou redução de 10% no período recente, a maior queda verificada nos últimos 10 anos.
Ora, como o motor do processo inclusivo foi basicamente por meio do acesso a consumo estimulado pelo crédito, o maior custo financeiro também pesa sobre a capacidade de pagamento. Como o Banco Central não atua sobre os spreads elevadíssimos praticados pelos bancos, à elevação da SELIC dá-se uma avalanche de aumentos dos encargos financeiros. As taxas efetivamente cobradas pelas instituições financeiras são surreais, sem nenhum controle ou sanção por parte do órgão regulador. As taxas de cartão de crédito, por exemplo, já ultrapassaram a faixa de 300% ao ano. Uma loucura! Com isso, o nível de endividamento das famílias também subiu de 39% para 55% entre janeiro e maio deste ano.
Como o modelo todo se assentou na total liberdade de movimentação de capitais internacionais e no estímulo à importação bens, em função da taxa de câmbio artificialmente valorizada por mais de uma década, aos poucos as contas do setor externo também passaram a registrar déficits expressivos. A conjuntura mais recente de queda dos preços das commodities no mercado internacional também contribuiu para reduzir o valor de nossas exportações. Apesar da Balança Comercial de Bens ainda se mostrar positiva, o fato a exigir cautela é que a conta de Transações Correntes fechou 2014 deficitária em US$ 91 bilhões, com algum sinal de melhoria ao longo do exercício atual. Isso revela o peso dos movimentos de juros, lucros e demais itens financeiros de nossas relações com o resto do mundo.
Finalmente, como era de se esperar, esse quadro de redução da atividade econômica somada à passividade do governo na área tributária provoca uma diminuição da própria capacidade arrecadatória do governo. De acordo com o Tesouro Nacional, suas receitas apresentaram queda real de 5% para o período janeiro-maio. Esse movimento só deve se aprofundar ao longo dos próximos meses, uma vez que as previsões para o comportamento do PIB em 2015 apontam para redução entre 1,5% e 2%.
A situação é séria e exige mudanças.
É claro que a evolução da conjuntura grega nos oferece um mais-do-que-justificado entusiasmo momentâneo. Uma espécie de desabafo a todos os que insistimos, há muito tempo, na tese de que é possível um outro caminho para a superação de nossa crise tupiniquim. No entanto, infelizmente parece estarmos longe da adoção de tal mudança de rumo. Ao que tudo indica, permanece a falta de vontade e de coragem políticas para operar tal alteração na essência da política econômica. Ao optar pela entrega completa da condução de tais decisões nas mãos de um representante legítimo do financismo privado, o governo perde toda a capacidade de voltar-se na direção dos setores mais penalizados pela estratégia do arrocho e do austericídio.
A crise que o Brasil está experimentando é de uma gravidade extrema. E aqui vou me deter tão somente aos elementos fundantes de todos os outros aspectos de nossa vida social: as dificuldades na esfera da economia. Não bastasse o acompanhamento cotidiano das informações estatísticas e dos números oficiais, a própria realidade da vida dos indivíduos e das empresas demonstra que as opções adotadas desde o final das eleições passadas encaminham o País ladeira abaixo. Aliás, essa tem sido a receita base de todas as políticas de ajuste e de estabilização implementadas há décadas pelo mundo afora. As contas dos sacrifícios são sistematicamente jogadas nas costas dos mais vulneráveis, sejam eles países ou classes sociais.
A reação inicial típica de desqualificar a priori qualquer observação crítica aos rumos da política econômica não me parece ser uma opção inteligente. O simples fato de que as representações políticas das forças mais conservadoras ocupem seus discursos com acusações contra o governo não pode inibir aqueles que temos também nossas observações. Inclusive pelo fato de que são críticas para que se recupere o sentido do desenvolvimentismo e do projeto de país que foi vitorioso nas eleições de outubro passado. Se os grandes meios de comunicação aproveitam o quadro para bater no governo em razão da crise e sugerir a todo momento a saída pela via das tentações golpistas, isso não deve servir como desculpa para que se apoiem, de forma incondicional, as irresponsabilidades contidas nas propostas do Ministério da Fazenda.
A crise pode ser mais bem descrita a partir de uma rodada ampla sobre os mais diversos indicadores de nossa dinâmica econômica. Vamos a eles.
A inflação tem apresentado uma tendência de alta ao longo dos últimos meses, pressionada principalmente pela alta dos preços administrados pelo governo (tarifas de energia elétrica, água, transporte público, entre outras) e por movimentos sazonais nos preços de alimentos. Além disso, está em curso um impacto sobre os preços derivado do movimento recente (necessário, aliás) de desvalorização cambial, em razão do aumento dos custos dos bens importados. Os resultados do IPCA de junho apontam para a inflação anual se aproximando perigosamente de 9%. Ou seja, bem acima da meta de 4,5%, com seu intervalo superior aceitável até 6,5%.
Um dos principais problemas associados a essa alta da taxa de inflação reside na forma como o imexível modelo do tripé da política econômica lida com o fenômeno. O viés ortodoxo recomenda cegamente que a solução para tanto seja o arrocho na política monetária, por meio da elevação da taxa oficial de juros. E aqui chegamos ao outro ponto fulcral da gravidade da crise. O Comitê de Política Monetária (COPOM) tem marcado sua atuação na contramão do recomendado para a retomada do crescimento. O histórico de suas últimas 6 reuniões apresentou uma sequência sucessiva de decisões do colegiado pela elevação da taxa de juros. A SELIC estava estabilizada em 11% entre abril e setembro do ano passado. A partir de então ela iniciou essa trajetória altista, até atingir os atuais 13,75%.
A opção pela manutenção da política de geração de superávit primário vem completar o quadro que aponta para a recessão. Tendo por objetivo inquebrantável atingir uma meta irrealista, o governo se sujeita a uma estratégia que concentra o foco no corte de despesas, em particular aquelas de natureza social e as relativas aos investimentos necessários. Ao se recusar a lançar mão de fontes de receita que mirassem no chamado andar de cima, mantém-se um modelo de tributação altamente regressivo, onde os setores de menor renda contribuem relativamente muito mais do que as empresas e as camadas mais abastadas da sociedade. As despesas financeiras da União com pagamento de juros da dívida pública aumentam e as desonerações para o capital não são lá muito afetadas em sua essência. Reproduz-se aqui também a crueldade da brutal desigualdade de renda e patrimônio.
Esse foi o caldo de cultura para piorar ainda mais o clima de incerteza e custos elevados dos empresários. A (in)ação do governo terminou por se revelar pró-cíclica, no sentido da paralisia que levava à redução do ritmo das atividades de uma forma generalizada. E os números começaram a expressar o movimento real da economia. As informações das entidades do comércio demonstram que as atividades encerraram o primeiro semestre com os piores resultados para os últimos 12 anos. Apesar de ainda registrar alta de 2,6%, as quedas foram puxadas por setores mais dinâmicos como automobilístico, construção civil e combustíveis. Por outro lado, dados da Pesquisa Mensal do Comércio do IBGE relativos a abril revelam que o volume anual de vendas está praticamente estagnado, com aumento de 0,2% nos últimos 12 meses.
A dinâmica na indústria também apresenta uma retração, com queda na produção, adoção de férias coletivas e demissão generalizada. Dados do IBGE de maio revelam que a produção industrial geral tem acumulado uma perda de 5,2% ao longo dos últimos 12 meses. Os dados mais preocupantes referem-se a setores estratégicos, que são os maiores agregadores de valor na escala produtiva da indústria: bens de capital aparecem com -15,8% e bens duráveis com -14,5%. A construção civil também apresenta um quadro de redução das atividades, atingindo níveis de 5 anos atrás. Além da dificuldade geral das empresas e das famílias, o setor é bastante dependente da demanda do governo e este sinaliza com redução de seus gastos. O clima das operações levadas a cabo pela Polícia Federal, pelo Judiciário e pelas CPIs no Congresso também contribui para reforçar tal paralisia.
Frente a essa combinação de fatores negativos, a tendência à recessão se impõe. Segundo o IBGE, o nível de desemprego continua subindo e atingiu a marca de 8,1% em maio. Além disso, as pesquisas revelam que o rendimento real médio dos assalariados diminuiu ao longo dos últimos 12 meses. Com isso, a conclusão inequívoca passa também a ser comprovada pelo Instituto: a massa salarial registrou redução de 10% no período recente, a maior queda verificada nos últimos 10 anos.
Ora, como o motor do processo inclusivo foi basicamente por meio do acesso a consumo estimulado pelo crédito, o maior custo financeiro também pesa sobre a capacidade de pagamento. Como o Banco Central não atua sobre os spreads elevadíssimos praticados pelos bancos, à elevação da SELIC dá-se uma avalanche de aumentos dos encargos financeiros. As taxas efetivamente cobradas pelas instituições financeiras são surreais, sem nenhum controle ou sanção por parte do órgão regulador. As taxas de cartão de crédito, por exemplo, já ultrapassaram a faixa de 300% ao ano. Uma loucura! Com isso, o nível de endividamento das famílias também subiu de 39% para 55% entre janeiro e maio deste ano.
Como o modelo todo se assentou na total liberdade de movimentação de capitais internacionais e no estímulo à importação bens, em função da taxa de câmbio artificialmente valorizada por mais de uma década, aos poucos as contas do setor externo também passaram a registrar déficits expressivos. A conjuntura mais recente de queda dos preços das commodities no mercado internacional também contribuiu para reduzir o valor de nossas exportações. Apesar da Balança Comercial de Bens ainda se mostrar positiva, o fato a exigir cautela é que a conta de Transações Correntes fechou 2014 deficitária em US$ 91 bilhões, com algum sinal de melhoria ao longo do exercício atual. Isso revela o peso dos movimentos de juros, lucros e demais itens financeiros de nossas relações com o resto do mundo.
Finalmente, como era de se esperar, esse quadro de redução da atividade econômica somada à passividade do governo na área tributária provoca uma diminuição da própria capacidade arrecadatória do governo. De acordo com o Tesouro Nacional, suas receitas apresentaram queda real de 5% para o período janeiro-maio. Esse movimento só deve se aprofundar ao longo dos próximos meses, uma vez que as previsões para o comportamento do PIB em 2015 apontam para redução entre 1,5% e 2%.
A situação é séria e exige mudanças.
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