Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Ao intervir no debate sobre regras criadas pelo deputado Eduardo Cunha para o encaminhando do pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki e Rosa Weber, produziram dois resultados com um único gesto. De imediato, a decisão gerou um curto-circuito nas articulações destinadas a pedir o afastamento da presidente, que agora seguem um novo curso, que terá de oferecer respostas às decisões dos dois ministros.
O outro efeito é uma mensagem política clara. "Impeachment é sempre um desastre e só deve ocorrer em último caso," explicou o jurista Dalmo Dallari, em entrevista ao programa Espaço Publico, ontem à noite. Para Dallari, que tinha um exemplar da Constituição às mãos, as regras para o impeachment foram construídas em 1988 a partir do respeito absoluto pelo voto popular. Sua finalidade é garantir que o afastamento de um presidente só possa ocorrer no fim de um processo rigoroso, apoiado em provas incontestáveis e maiorias sólidas. Desse ponto de vista, não se pode querer afastar uma presidente, explicou, sem provas que a vinculem diretamente a atos criminosos, o que não se apontou contra Dilma Rousseff. Muito menos se pode aceitar acusações improvisadas de última hora, acrescentou, referindo-se a um episódio ocorrido na véspera.
Em busca de fatos ocorridos em 2015, sem os quais a denúncia não atende ao artigo 86 da Constituição ("O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções") a oposição incluiu um "adendo" aos 44 do segundo tempo. Agora, quer acusar Dilma com base numa investigação sobre as chamadas "pedaladas fiscais" no BNDES, que sequer foi concluída, nas contas de um ano que não terminou. Pior: a representação que deu base ao "adendo" foi produzida pelo chamado Ministério Público de Contas. Órgão de assessoria do Tribunal de Contas da União, um prestador de serviço apesar do título pomposo, a existência do MP de Contas nem é reconhecida pela Constituição, que fala em Ministério Público Federal, MP Militar, MP dos Estados e do Distrito Federal -- e só.
O próprio TCU, por sua vez, só é Tribunal no nome - pois não passa de um órgão de assessoria do Poder Legislativo, não é formado por juízes concursados, mas por políticos em busca de uma segunda carreira e seus aliados.
A decisão de Teori Zavaski e Rosa Weber, ontem, é parte de uma história com avanços recuos e várias incertezas ao longo do caminho. Responsável pela defesa das garantias fundamentais previstas na Constituição, o Supremo Tribunal Federal assumiu, desde o início da Lava Jato, uma postura muitas vezes tímida e contraditória. Inconformados com decisões importantes, advogados chegaram a avaliar que em vários momentos o STF agiu conforme uma regra inusitada -- em caso de dúvida, aplicava-se a jurisprudência menos favorável aos réus.
Por esse raciocínio, talvez exagerado mas com um fundo de verdade, o STF escudou-se numa visão rigorosa das súmulas vinculantes, como a 691, que define regras particularmente restritivas para a concessão de habeas corpus. Pelo menos em alguns casos, seria muito razoável assumir uma atitude mais flexível, capaz de atender ao pleito de dezenas réus aprisionados por meses sem culpa formada, como o próprio STF fez em outras ocasiões, em casos de grande repercussão, libertando réus que sequer passaram 72 horas atrás das grades.
Já diante da súmula 14, que garante a todo réu "o acesso amplo a todos os elementos de prova", o Tribunal agiu conforme uma postura contrária. Aceitou uma interpretação flexível, permitindo-se negar, em casos particulares, aquilo que a sumula determina como regra mais geral.
As primeiras mudanças no comportamento do STF se tornaram visíveis em setembro, quando o Supremo retomou os debates sobre financiamento de campanha, interrompidos um ano e meio antes. Mesmo sem envolver diretamente a Lava Jato, o debate tem uma relação óbvia com corrupção política.
A maioria do STF era favorável a proibir as contribuições de empresa. Sabia que, ao contrário de qualquer medida que pudesse beneficiar os réus da Lava Jato, essa decisão teria amplo apoio popular. A mudança até poderia até ser condenada -- como foi -- por lideranças da oposição no Congresso, e sabotada por parlamentares que só são contra o financiamento de empresas da boca para fora. Mas este já era um debate resolvido pela sociedade brasileira, como mostra o apoio de 70%. Ainda que a popularidade -- ou impopularidade -- de uma lei não possa ser visto como critério único nem fundamental para ser defendida, é evidente que a memória traumática da multidão no alambrado do STF, em junho de 2013, que chegou a assustar alguns ministros, não havia se dissipado inteiramente.
Outro elemento era o longo pedido de vistas de Gilmar Mendes. Ao segurar a decisão por um ano e cinco meses, o ministro submeteu os demais colegas de plenário a uma humilhação. Fosse em reuniões familiares, encontros sociais ou eventos mais amplos, os ministros passaram a ser questionados de forma permanente, por interlocutores que cobravam a necessidade de reagir diante de um ministro que conseguia -- sòzinho -- submeter a mais alta corte do país sua vontade e seus interesses.
O alvo direto dessa situação era o presidente Ricardo Lewandowski, adversário de Gilmar Mendes em todos os títulos e possibilidades, inclusive pela árvore genealógica. Um chegou ao STF por indicação de Lula. O outro, pelas mãos de FHC. Ao encaminhar uma votação vitoriosa, numa atuação serena e firme, ultrapassando várias armadilhas colocadas no caminho, Lewandowski consolidou a própria liderança no Tribunal, com base na maioria nascida após a saída de Joaquim Barbosa e, antes dele, Carlos Ayres Britto.
Com base na decisão do STF, Dilma Rousseff teve respaldo para vetar um projeto enviado pelo Congresso que avançava na direção contrária, mantendo o financiamento privado. A obra política de Lewandowski foi aprovar a proibição do financiamento de empresas dentro de uma janela legal -- aquele período em que a presidência da República é autorizada a vetar um projeto aprovado pelo Congresso.
A decisão trouxe uma novidade política. Deixou claro que nem o Supremo nem a Presidência estariam obrigatoriamente sós quando enfrentassem Eduardo Cunha, o bloco de oposição no Congresso e sua face mais visível no Judiciário, Gilmar Mendes, cada vez mais próxima da Força Tarefa da Lava Jato.
O desmembramento da Lava Jato, anunciado na semana seguinte, já ocorreu sob novos ares, quando o Supremo acumulara força política para assumir sua missão fundamental, que é defender os direitos constitucionais frente a ação do Estado.
Examinando uma denúncia contra a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), Teori Zavaski concluiu que haviam sido encontrados apenas encontros fortuitos com o esquema apontado na Lava Jato. Convencido que o caso deveria ser desmembrado, e entregue a outro juiz, Teori submeteu a decisão ao plenário. Venceu por 9 a 2, cabendo o voto contrário a Celso Mello e, como se podia prever, Gilmar Mendes. Sérgio Moro reagiu, mostrando-se contrariado. Deltan Dallagnol classificou a votação como uma derrota. “Pode significar o fim da Lava Jato tal qual conhecemos”, disse outro procurador Carlos Fernando Santos Lima, para quem o objetivo da Operação não pode limitar-se a investigar escândalos da Petrobras. “Estamos desvelando a compra de apoio político-partidário pelo governo federal, por meio de propina institucionalizada nos órgãos públicos. Se não reconhecerem isso, vai ser um problema”.
Três semanas depois do desmembramento, Teori Zavaski e Rosa Weber examinaram os recursos contra as regras para o encaminhamento do pedido de impeachment elaboradas por Eduardo Cunha. Entre elas, destacava-se o esforço para criar facilidades indevidas para o andamento do processo, como exigir maioria simples, em vez de 2/3, para a abertura de uma investigação. Com isso, seria possível votar a decisão num momento qualquer do plenário, num lance de esperteza.
E é fácil imaginar que, a partir daí, o bloco da oposição+mídia chamaria as ruas para intimidar o Congresso e tentar forçar a deposição da presidente no berro.
Numa sentença especialmente dura, Rosa Weber escreveu a Cunha que "se abstenha de analisar qualquer denúncia de crime de responsabilidade contra a presidente da República até o julgamento do mérito deste mandato de segurança."
A decisão apanhou governo e oposição de surpresa. Os dois lados imaginavam que teriam de correr atrás de Eduardo Cunha e responder a suas iniciativas. O STF não mudou o jogo mas exigiu respeito às regras democráticas, preservando a soberania popular e a Constituição.
Ainda bem.
Ao intervir no debate sobre regras criadas pelo deputado Eduardo Cunha para o encaminhando do pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki e Rosa Weber, produziram dois resultados com um único gesto. De imediato, a decisão gerou um curto-circuito nas articulações destinadas a pedir o afastamento da presidente, que agora seguem um novo curso, que terá de oferecer respostas às decisões dos dois ministros.
O outro efeito é uma mensagem política clara. "Impeachment é sempre um desastre e só deve ocorrer em último caso," explicou o jurista Dalmo Dallari, em entrevista ao programa Espaço Publico, ontem à noite. Para Dallari, que tinha um exemplar da Constituição às mãos, as regras para o impeachment foram construídas em 1988 a partir do respeito absoluto pelo voto popular. Sua finalidade é garantir que o afastamento de um presidente só possa ocorrer no fim de um processo rigoroso, apoiado em provas incontestáveis e maiorias sólidas. Desse ponto de vista, não se pode querer afastar uma presidente, explicou, sem provas que a vinculem diretamente a atos criminosos, o que não se apontou contra Dilma Rousseff. Muito menos se pode aceitar acusações improvisadas de última hora, acrescentou, referindo-se a um episódio ocorrido na véspera.
Em busca de fatos ocorridos em 2015, sem os quais a denúncia não atende ao artigo 86 da Constituição ("O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções") a oposição incluiu um "adendo" aos 44 do segundo tempo. Agora, quer acusar Dilma com base numa investigação sobre as chamadas "pedaladas fiscais" no BNDES, que sequer foi concluída, nas contas de um ano que não terminou. Pior: a representação que deu base ao "adendo" foi produzida pelo chamado Ministério Público de Contas. Órgão de assessoria do Tribunal de Contas da União, um prestador de serviço apesar do título pomposo, a existência do MP de Contas nem é reconhecida pela Constituição, que fala em Ministério Público Federal, MP Militar, MP dos Estados e do Distrito Federal -- e só.
O próprio TCU, por sua vez, só é Tribunal no nome - pois não passa de um órgão de assessoria do Poder Legislativo, não é formado por juízes concursados, mas por políticos em busca de uma segunda carreira e seus aliados.
A decisão de Teori Zavaski e Rosa Weber, ontem, é parte de uma história com avanços recuos e várias incertezas ao longo do caminho. Responsável pela defesa das garantias fundamentais previstas na Constituição, o Supremo Tribunal Federal assumiu, desde o início da Lava Jato, uma postura muitas vezes tímida e contraditória. Inconformados com decisões importantes, advogados chegaram a avaliar que em vários momentos o STF agiu conforme uma regra inusitada -- em caso de dúvida, aplicava-se a jurisprudência menos favorável aos réus.
Por esse raciocínio, talvez exagerado mas com um fundo de verdade, o STF escudou-se numa visão rigorosa das súmulas vinculantes, como a 691, que define regras particularmente restritivas para a concessão de habeas corpus. Pelo menos em alguns casos, seria muito razoável assumir uma atitude mais flexível, capaz de atender ao pleito de dezenas réus aprisionados por meses sem culpa formada, como o próprio STF fez em outras ocasiões, em casos de grande repercussão, libertando réus que sequer passaram 72 horas atrás das grades.
Já diante da súmula 14, que garante a todo réu "o acesso amplo a todos os elementos de prova", o Tribunal agiu conforme uma postura contrária. Aceitou uma interpretação flexível, permitindo-se negar, em casos particulares, aquilo que a sumula determina como regra mais geral.
As primeiras mudanças no comportamento do STF se tornaram visíveis em setembro, quando o Supremo retomou os debates sobre financiamento de campanha, interrompidos um ano e meio antes. Mesmo sem envolver diretamente a Lava Jato, o debate tem uma relação óbvia com corrupção política.
A maioria do STF era favorável a proibir as contribuições de empresa. Sabia que, ao contrário de qualquer medida que pudesse beneficiar os réus da Lava Jato, essa decisão teria amplo apoio popular. A mudança até poderia até ser condenada -- como foi -- por lideranças da oposição no Congresso, e sabotada por parlamentares que só são contra o financiamento de empresas da boca para fora. Mas este já era um debate resolvido pela sociedade brasileira, como mostra o apoio de 70%. Ainda que a popularidade -- ou impopularidade -- de uma lei não possa ser visto como critério único nem fundamental para ser defendida, é evidente que a memória traumática da multidão no alambrado do STF, em junho de 2013, que chegou a assustar alguns ministros, não havia se dissipado inteiramente.
Outro elemento era o longo pedido de vistas de Gilmar Mendes. Ao segurar a decisão por um ano e cinco meses, o ministro submeteu os demais colegas de plenário a uma humilhação. Fosse em reuniões familiares, encontros sociais ou eventos mais amplos, os ministros passaram a ser questionados de forma permanente, por interlocutores que cobravam a necessidade de reagir diante de um ministro que conseguia -- sòzinho -- submeter a mais alta corte do país sua vontade e seus interesses.
O alvo direto dessa situação era o presidente Ricardo Lewandowski, adversário de Gilmar Mendes em todos os títulos e possibilidades, inclusive pela árvore genealógica. Um chegou ao STF por indicação de Lula. O outro, pelas mãos de FHC. Ao encaminhar uma votação vitoriosa, numa atuação serena e firme, ultrapassando várias armadilhas colocadas no caminho, Lewandowski consolidou a própria liderança no Tribunal, com base na maioria nascida após a saída de Joaquim Barbosa e, antes dele, Carlos Ayres Britto.
Com base na decisão do STF, Dilma Rousseff teve respaldo para vetar um projeto enviado pelo Congresso que avançava na direção contrária, mantendo o financiamento privado. A obra política de Lewandowski foi aprovar a proibição do financiamento de empresas dentro de uma janela legal -- aquele período em que a presidência da República é autorizada a vetar um projeto aprovado pelo Congresso.
A decisão trouxe uma novidade política. Deixou claro que nem o Supremo nem a Presidência estariam obrigatoriamente sós quando enfrentassem Eduardo Cunha, o bloco de oposição no Congresso e sua face mais visível no Judiciário, Gilmar Mendes, cada vez mais próxima da Força Tarefa da Lava Jato.
O desmembramento da Lava Jato, anunciado na semana seguinte, já ocorreu sob novos ares, quando o Supremo acumulara força política para assumir sua missão fundamental, que é defender os direitos constitucionais frente a ação do Estado.
Examinando uma denúncia contra a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), Teori Zavaski concluiu que haviam sido encontrados apenas encontros fortuitos com o esquema apontado na Lava Jato. Convencido que o caso deveria ser desmembrado, e entregue a outro juiz, Teori submeteu a decisão ao plenário. Venceu por 9 a 2, cabendo o voto contrário a Celso Mello e, como se podia prever, Gilmar Mendes. Sérgio Moro reagiu, mostrando-se contrariado. Deltan Dallagnol classificou a votação como uma derrota. “Pode significar o fim da Lava Jato tal qual conhecemos”, disse outro procurador Carlos Fernando Santos Lima, para quem o objetivo da Operação não pode limitar-se a investigar escândalos da Petrobras. “Estamos desvelando a compra de apoio político-partidário pelo governo federal, por meio de propina institucionalizada nos órgãos públicos. Se não reconhecerem isso, vai ser um problema”.
Três semanas depois do desmembramento, Teori Zavaski e Rosa Weber examinaram os recursos contra as regras para o encaminhamento do pedido de impeachment elaboradas por Eduardo Cunha. Entre elas, destacava-se o esforço para criar facilidades indevidas para o andamento do processo, como exigir maioria simples, em vez de 2/3, para a abertura de uma investigação. Com isso, seria possível votar a decisão num momento qualquer do plenário, num lance de esperteza.
E é fácil imaginar que, a partir daí, o bloco da oposição+mídia chamaria as ruas para intimidar o Congresso e tentar forçar a deposição da presidente no berro.
Numa sentença especialmente dura, Rosa Weber escreveu a Cunha que "se abstenha de analisar qualquer denúncia de crime de responsabilidade contra a presidente da República até o julgamento do mérito deste mandato de segurança."
A decisão apanhou governo e oposição de surpresa. Os dois lados imaginavam que teriam de correr atrás de Eduardo Cunha e responder a suas iniciativas. O STF não mudou o jogo mas exigiu respeito às regras democráticas, preservando a soberania popular e a Constituição.
Ainda bem.
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