Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
O Banco Central (BC) acaba de divulgar seu Relatório Mensal sobre a Política Fiscal do governo brasileiro. Dentre as inúmeras informações relativas ao desempenho da equipe econômica no campo da administração da questão fiscal, vale a pena destacar os números que retratam o comportamento das despesas financeiras da administração pública federal.
De acordo com o levantamento apresentado pelo BC, ao longo do mês de fevereiro, o valor referente ao total de juros pagos pelo governo atingiu o montante de R$ 30,7 bilhões. Isso significa que, no acumulado dos últimos 12 meses, a União transferiu ao setor financeiro um volume de R$ 388 bi, em razão dos compromissos assumidos com cada uma das muitas modalidades do extenso cardápio que compõe o estoque de títulos de nossa dívida pública.
É bem verdade que tais números foram reduzidos em comparação ao ocorrido em 2015 e 2016, quando as despesas financeiras chegaram a atingir o total de R$ 502 bi e R$ 408 bi, respectivamente. O problema, no entanto, refere-se ao fato da economia brasileira estar imersa em uma recessão profunda, a maior e mais grave de nossa História. Assim, o levantamento histórico evidencia que a única variável que se manteve constante ao longo das últimas 2 décadas na condução da política econômica foi o saldo positivo de transferência de recursos orçamentários para o cumprimento das obrigações financeiras do governo federal.
Um dos aspectos mais paradoxais desse fenômeno reside no tratamento absolutamente desigual que o comando da economia confere aos diferentes tipos de gasto público. O Ministro da Fazenda e seus subordinados enchem a boca com muito orgulho para exibir as informações de um suposto “sucesso” obtido nos cortes de verbas e nos contingenciamentos das rubricas do Orçamento nas áreas sociais e nos investimentos a serem realizados pelo Estado. Esse tem sido um dos principais fundamentos da política macroeconômica desde a edição Plano Real em 1994. A garantia do compromisso assumido junto ao mercado financeiro é sempre considerada como variável “imexível” do modelo.
A tentativa de conferir ares de normalidade a tamanha excrescência em termos de implementação de políticas públicas recebeu o nome pomposo de “superávit primário”. Esse foi o artifício jurídico e conceitual utilizado pelos defensores dos interesses do sistema financeiro para justificar perante a sociedade o tratamento escandalosamente regressivo e injusto que passou a ser dado aos gastos de natureza financeira frente aos demais gastos do setor público. Assim, tal determinação passou mesmo a ser objeto de obrigação legal, segundo as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101/2000.
Ocorre que todo esse rigor e a consequente austeridade que passam a ser exigidos - até mesmo em termos de compromisso formal na condução da política fiscal - não se aplicam às despesas financeiras, aquelas derivadas do pagamento de juros da dívida pública. Ao se jactar do esforço hercúleo para assegurar a geração de um saldo superavitário nas contas primárias do governo, os responsáveis pela economia apenas se esquecem de confirmar ao restante da sociedade que nada mais patrocinam senão a transferência serena e tranquila de recursos públicos diretamente para os cofres do sistema financeiro. Pode até parecer estranho ou exagerado, mas é simples assim.
Essa abordagem ganhou tinturas de santidade, a ponto de ser qualificada como heresia qualquer tentativa de sequer cogitar a respeito de alguma condução heterodoxa ou alternativa nesse domínio. A consolidação de tal hegemonia chegou a obter ares de unanimidade a partir de 2002, quando o então candidato Lula anunciou a famosa “Carta ao povo brasileiro” durante a sua campanha às eleições presidenciais. A partir da leitura do documento, é possível confirmar a opção pela manutenção do “status quo” em termos da política econômica comandada pelo financismo:
(...) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.” (...)
(...) “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.’ (...) GN
A preservação intocável desse regime é um dos principais fatores que ajudam a explicar a hipertrofia do financismo em nossa sociedade. Não por acaso, os bancos fazem parte do seleto grupo de empresas que não foram afetadas pela crise que o Brasil atravessa há mais de 2 anos. O setor real da economia vem experimentando o drama social e econômico da recessão, do desemprego e das falências, ao passo que a banca continua a exibir seus balanços periódicos com lucros bilionários de forma sequencial e ininterrupta. A atual administração pós golpeachment avançou ainda mais, introduzindo a obrigação de se respeitar o dogma do superávit primário na própria Constituição, a partir da Emenda Constitucional n° 95/2016.
O discurso oficial que alardeia o catastrofismo fiscal está na base de medidas como a referida emenda que congelou as despesas sociais pelo prazo de 20 anos. Essa mesma narrativa do suposto estágio do pré-caos chantageia a sociedade e exige ainda mais sacrifícios da maioria do povo com a reforma previdenciária e a reforma trabalhista. A postura dramática oficial chega a números de um contingenciamento de várias dezenas de bilhões de reais contas do orçamento federal e impõe ainda mais cortes em áreas onde as despesas são parte da solução para a crise atual.
O único setor que não é chamado a colaborar para superar o momento difícil que o País atravessa é justamente o financismo. Afinal, a permanência longeva da ditadura do superávit primário manteve intocáveis os privilégios desse ramo da economia. De acordo com informações da própria Secretaria do Tesouro Nacional, ao longo das últimas 2 décadas, o total de despesas com pagamento de juros promoveu a drenagem de R$ 4,3 trilhões a valores atuais dos cofres da União para o coração do sistema financeiro. Se o ponto de corte for o início de 2003, o total ainda assim é impressionante: foram R$ 3,5 tri ao longo do período. Mas esse tipo de recurso não é objeto de contingenciamento. Pelo contrário, todas as outras áreas são chamadas a cortar na própria carne para que sobrem recursos para o superávit primário.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
O Banco Central (BC) acaba de divulgar seu Relatório Mensal sobre a Política Fiscal do governo brasileiro. Dentre as inúmeras informações relativas ao desempenho da equipe econômica no campo da administração da questão fiscal, vale a pena destacar os números que retratam o comportamento das despesas financeiras da administração pública federal.
De acordo com o levantamento apresentado pelo BC, ao longo do mês de fevereiro, o valor referente ao total de juros pagos pelo governo atingiu o montante de R$ 30,7 bilhões. Isso significa que, no acumulado dos últimos 12 meses, a União transferiu ao setor financeiro um volume de R$ 388 bi, em razão dos compromissos assumidos com cada uma das muitas modalidades do extenso cardápio que compõe o estoque de títulos de nossa dívida pública.
É bem verdade que tais números foram reduzidos em comparação ao ocorrido em 2015 e 2016, quando as despesas financeiras chegaram a atingir o total de R$ 502 bi e R$ 408 bi, respectivamente. O problema, no entanto, refere-se ao fato da economia brasileira estar imersa em uma recessão profunda, a maior e mais grave de nossa História. Assim, o levantamento histórico evidencia que a única variável que se manteve constante ao longo das últimas 2 décadas na condução da política econômica foi o saldo positivo de transferência de recursos orçamentários para o cumprimento das obrigações financeiras do governo federal.
Um dos aspectos mais paradoxais desse fenômeno reside no tratamento absolutamente desigual que o comando da economia confere aos diferentes tipos de gasto público. O Ministro da Fazenda e seus subordinados enchem a boca com muito orgulho para exibir as informações de um suposto “sucesso” obtido nos cortes de verbas e nos contingenciamentos das rubricas do Orçamento nas áreas sociais e nos investimentos a serem realizados pelo Estado. Esse tem sido um dos principais fundamentos da política macroeconômica desde a edição Plano Real em 1994. A garantia do compromisso assumido junto ao mercado financeiro é sempre considerada como variável “imexível” do modelo.
A tentativa de conferir ares de normalidade a tamanha excrescência em termos de implementação de políticas públicas recebeu o nome pomposo de “superávit primário”. Esse foi o artifício jurídico e conceitual utilizado pelos defensores dos interesses do sistema financeiro para justificar perante a sociedade o tratamento escandalosamente regressivo e injusto que passou a ser dado aos gastos de natureza financeira frente aos demais gastos do setor público. Assim, tal determinação passou mesmo a ser objeto de obrigação legal, segundo as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101/2000.
Ocorre que todo esse rigor e a consequente austeridade que passam a ser exigidos - até mesmo em termos de compromisso formal na condução da política fiscal - não se aplicam às despesas financeiras, aquelas derivadas do pagamento de juros da dívida pública. Ao se jactar do esforço hercúleo para assegurar a geração de um saldo superavitário nas contas primárias do governo, os responsáveis pela economia apenas se esquecem de confirmar ao restante da sociedade que nada mais patrocinam senão a transferência serena e tranquila de recursos públicos diretamente para os cofres do sistema financeiro. Pode até parecer estranho ou exagerado, mas é simples assim.
Essa abordagem ganhou tinturas de santidade, a ponto de ser qualificada como heresia qualquer tentativa de sequer cogitar a respeito de alguma condução heterodoxa ou alternativa nesse domínio. A consolidação de tal hegemonia chegou a obter ares de unanimidade a partir de 2002, quando o então candidato Lula anunciou a famosa “Carta ao povo brasileiro” durante a sua campanha às eleições presidenciais. A partir da leitura do documento, é possível confirmar a opção pela manutenção do “status quo” em termos da política econômica comandada pelo financismo:
(...) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.” (...)
(...) “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.’ (...) GN
A preservação intocável desse regime é um dos principais fatores que ajudam a explicar a hipertrofia do financismo em nossa sociedade. Não por acaso, os bancos fazem parte do seleto grupo de empresas que não foram afetadas pela crise que o Brasil atravessa há mais de 2 anos. O setor real da economia vem experimentando o drama social e econômico da recessão, do desemprego e das falências, ao passo que a banca continua a exibir seus balanços periódicos com lucros bilionários de forma sequencial e ininterrupta. A atual administração pós golpeachment avançou ainda mais, introduzindo a obrigação de se respeitar o dogma do superávit primário na própria Constituição, a partir da Emenda Constitucional n° 95/2016.
O discurso oficial que alardeia o catastrofismo fiscal está na base de medidas como a referida emenda que congelou as despesas sociais pelo prazo de 20 anos. Essa mesma narrativa do suposto estágio do pré-caos chantageia a sociedade e exige ainda mais sacrifícios da maioria do povo com a reforma previdenciária e a reforma trabalhista. A postura dramática oficial chega a números de um contingenciamento de várias dezenas de bilhões de reais contas do orçamento federal e impõe ainda mais cortes em áreas onde as despesas são parte da solução para a crise atual.
O único setor que não é chamado a colaborar para superar o momento difícil que o País atravessa é justamente o financismo. Afinal, a permanência longeva da ditadura do superávit primário manteve intocáveis os privilégios desse ramo da economia. De acordo com informações da própria Secretaria do Tesouro Nacional, ao longo das últimas 2 décadas, o total de despesas com pagamento de juros promoveu a drenagem de R$ 4,3 trilhões a valores atuais dos cofres da União para o coração do sistema financeiro. Se o ponto de corte for o início de 2003, o total ainda assim é impressionante: foram R$ 3,5 tri ao longo do período. Mas esse tipo de recurso não é objeto de contingenciamento. Pelo contrário, todas as outras áreas são chamadas a cortar na própria carne para que sobrem recursos para o superávit primário.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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