Por Cezar Britto, no site Congresso em Foco:
Cada dia na cadeia era mais um dia que eu queria lutar por meus direitos. Devo esclarecer, de logo, que esta frase não fora pronunciada por Frei Caneca, Gandhi, Graciliano, Gramsci, Malatesta, Mandela, Prestes, Tiradentes ou qualquer outro prisioneiro liberto das grades para correr livre no mundo da história. Mas, confesso, que ela ficou gravada e cravada em minha memória e a escuto como mantra reativo, constantemente, quando me deparo com argumentos punitivistas e moralistas que apontam a prisão como solução para todos os males do mundo. A prisão do outro, é claro!
Ela chegara para mim de forma quase anônima, como são as vozes dos milhares de presos permanentemente temporários que aguardam, diariamente, serem julgados com a mesma agilidade com que foram aprisionados pelo aparelho estatal. Ou, escrevendo com mais precisão, poderia ter sido proferida por qualquer uma das duzentas e vinte um mil, cinquenta e quatro (221.054) pessoas que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em janeiro de 2017, aguardam que o Poder Judiciário decida se são culpados, inocentes ou vítimas dos fatos alinhados em processo judicial.
Nesta longa fila, trinta e um mil, seiscentos e dez (31.610) seres humanos esperam que sejam designadas as audiências de competência do Tribunal do Júri, em que poderão exercer o direito de defesa, explicando as razões dos atos cometidos e, em decorrência, postular Justiça.
É o que grita a realidade do sistema judicial brasileiro, como a ilustrada, infelizmente, para dois (02) trabalhadores pernambucanos que, como exemplifica o processo nº 0032645-71.2016.8.17.0001, aguardaram presos, por oito (08) anos, para que fosse marcada a sessão do Tribunal do Júri em que, finalmente, poderiam exercer o constitucional direito de defesa, inclusive para combater os erros da peça acusatória que já produzia danos irremediáveis em suas vidas.
Apenas quando tornados provisoriamente livres, por força de decisão da Sexta Turma do STJ, nos autos do HC 379.461, é que, rápida e repentinamente, encontrou-se agenda para a realização do tão solicitado Tribunal do Júri. No mês de dezembro de 2017 foram absolvidos, embora já condenados em definitivo pela impossibilidade de se recuperar o tempo da liberdade confiscada e a dor da humilhação moral imposta.
As injustiças estampadas em variadas páginas processuais, o caos carcerário a moer a dignidade das pessoas e os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, falam que o aprisionamento, antes de formada em definitivo a culpa, não significa a mudança de postura do julgador no que se refere à agilidade no próprio dever de julgar. Preso ou solto, o Poder Judiciário segue absolutamente lento em matéria de operar o trânsito em julgado das decisões judiciais, quer para condenar ou absolver. E, sabemos todos, que cada dia em que um inocente é injustamente preso, o conceito de Justiça perde a sua própria essência, até porque, como bem advertiu Voltaire, convertendo-se em regra basilar do Direito: É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente.
Daí porque perversa a lógica fundante dos que querem revogar a constitucional presunção da inocência, expressamente prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Cidadã, especialmente quando transfere o ônus da morosidade judicial para aqueles que não integram o Poder Judiciário. A insensibilidade dos que se acham “puros e intocáveis”, neste caso, inverte a regra humanista, para agora dizer que o certo é prender todos e todas, pouco importando se inocentes serão aprisionados e definitivamente repelidos pelo moralismo da comunidade em que vivem. E ao transferir para o processado a culpa pela morosidade do processante, atual se torna a mensagem do advogado e ex-presidente dos EUA, Abraham Lincoln, quando assim ensinou: Hipócrita é o homem que matou os pais e pede clemência alegando ser órfão.
Estes novos cruzados fazem-nos lembrar do triste episódio ocorrido na cidade francesa de Béziers, quando testemunhou o genocídio de quinze mil (15.000) homens, mulheres e crianças, todos vitimados pela intolerância religiosa e o apetite político do rei Felipe, o Belo. O massacre francês se dera durante a cruel Cruzada dos Albigenses, que durou de 1209 a 1229.
Sob a inspiração do papa Inocêncio III, os cristãos-católicos resolveram combater os cristãos-cátaros, acusados do crime de rejeição a alguns dos sacramentos e dogmas da Santa Igreja Romana. Durante o cerco, não conseguindo os soldados distinguir os católicos dos cátaros residentes na cidade vencida, pediram o aconselhamento de Fernando Amalric, representante do papa na Cruzada, que assim respondeu: Mate-os todos, Deus reconhecerá os seus!
E pra não dizer que não falei de Lula, a frase que inicia esta reflexão também não é de Lula. Ela faz parte do dramático depoimento de Marcos Mariano da Silva, quando, doze anos atrás, autorizou a OAB a divulgar o seu clamor por Justiça, desejando que casos como o seu nunca mais se repetissem. Lutar pela preservação do princípio da inocência é prestar um tributo à sua História, escrita no processo nº 001.1998.042941-3, assim complementada por ele: Em 1976, a polícia me confundiu com um assassino e prendeu. Ele tinha o nome quase igual ao meu. Fiquei 19 anos presos. Numa rebelião, fiquei cego. Em 1998, numa revisão de penas sem condenação fui solto. Procurei um advogado, entrei com uma ação contra o Estado e garanti meus direitos. Nunca vou conseguir mudar meu passado, mas recuperei minha dignidade.
Cada dia na cadeia era mais um dia que eu queria lutar por meus direitos. Devo esclarecer, de logo, que esta frase não fora pronunciada por Frei Caneca, Gandhi, Graciliano, Gramsci, Malatesta, Mandela, Prestes, Tiradentes ou qualquer outro prisioneiro liberto das grades para correr livre no mundo da história. Mas, confesso, que ela ficou gravada e cravada em minha memória e a escuto como mantra reativo, constantemente, quando me deparo com argumentos punitivistas e moralistas que apontam a prisão como solução para todos os males do mundo. A prisão do outro, é claro!
Ela chegara para mim de forma quase anônima, como são as vozes dos milhares de presos permanentemente temporários que aguardam, diariamente, serem julgados com a mesma agilidade com que foram aprisionados pelo aparelho estatal. Ou, escrevendo com mais precisão, poderia ter sido proferida por qualquer uma das duzentas e vinte um mil, cinquenta e quatro (221.054) pessoas que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em janeiro de 2017, aguardam que o Poder Judiciário decida se são culpados, inocentes ou vítimas dos fatos alinhados em processo judicial.
Nesta longa fila, trinta e um mil, seiscentos e dez (31.610) seres humanos esperam que sejam designadas as audiências de competência do Tribunal do Júri, em que poderão exercer o direito de defesa, explicando as razões dos atos cometidos e, em decorrência, postular Justiça.
É o que grita a realidade do sistema judicial brasileiro, como a ilustrada, infelizmente, para dois (02) trabalhadores pernambucanos que, como exemplifica o processo nº 0032645-71.2016.8.17.0001, aguardaram presos, por oito (08) anos, para que fosse marcada a sessão do Tribunal do Júri em que, finalmente, poderiam exercer o constitucional direito de defesa, inclusive para combater os erros da peça acusatória que já produzia danos irremediáveis em suas vidas.
Apenas quando tornados provisoriamente livres, por força de decisão da Sexta Turma do STJ, nos autos do HC 379.461, é que, rápida e repentinamente, encontrou-se agenda para a realização do tão solicitado Tribunal do Júri. No mês de dezembro de 2017 foram absolvidos, embora já condenados em definitivo pela impossibilidade de se recuperar o tempo da liberdade confiscada e a dor da humilhação moral imposta.
As injustiças estampadas em variadas páginas processuais, o caos carcerário a moer a dignidade das pessoas e os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, falam que o aprisionamento, antes de formada em definitivo a culpa, não significa a mudança de postura do julgador no que se refere à agilidade no próprio dever de julgar. Preso ou solto, o Poder Judiciário segue absolutamente lento em matéria de operar o trânsito em julgado das decisões judiciais, quer para condenar ou absolver. E, sabemos todos, que cada dia em que um inocente é injustamente preso, o conceito de Justiça perde a sua própria essência, até porque, como bem advertiu Voltaire, convertendo-se em regra basilar do Direito: É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente.
Daí porque perversa a lógica fundante dos que querem revogar a constitucional presunção da inocência, expressamente prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Cidadã, especialmente quando transfere o ônus da morosidade judicial para aqueles que não integram o Poder Judiciário. A insensibilidade dos que se acham “puros e intocáveis”, neste caso, inverte a regra humanista, para agora dizer que o certo é prender todos e todas, pouco importando se inocentes serão aprisionados e definitivamente repelidos pelo moralismo da comunidade em que vivem. E ao transferir para o processado a culpa pela morosidade do processante, atual se torna a mensagem do advogado e ex-presidente dos EUA, Abraham Lincoln, quando assim ensinou: Hipócrita é o homem que matou os pais e pede clemência alegando ser órfão.
Estes novos cruzados fazem-nos lembrar do triste episódio ocorrido na cidade francesa de Béziers, quando testemunhou o genocídio de quinze mil (15.000) homens, mulheres e crianças, todos vitimados pela intolerância religiosa e o apetite político do rei Felipe, o Belo. O massacre francês se dera durante a cruel Cruzada dos Albigenses, que durou de 1209 a 1229.
Sob a inspiração do papa Inocêncio III, os cristãos-católicos resolveram combater os cristãos-cátaros, acusados do crime de rejeição a alguns dos sacramentos e dogmas da Santa Igreja Romana. Durante o cerco, não conseguindo os soldados distinguir os católicos dos cátaros residentes na cidade vencida, pediram o aconselhamento de Fernando Amalric, representante do papa na Cruzada, que assim respondeu: Mate-os todos, Deus reconhecerá os seus!
E pra não dizer que não falei de Lula, a frase que inicia esta reflexão também não é de Lula. Ela faz parte do dramático depoimento de Marcos Mariano da Silva, quando, doze anos atrás, autorizou a OAB a divulgar o seu clamor por Justiça, desejando que casos como o seu nunca mais se repetissem. Lutar pela preservação do princípio da inocência é prestar um tributo à sua História, escrita no processo nº 001.1998.042941-3, assim complementada por ele: Em 1976, a polícia me confundiu com um assassino e prendeu. Ele tinha o nome quase igual ao meu. Fiquei 19 anos presos. Numa rebelião, fiquei cego. Em 1998, numa revisão de penas sem condenação fui solto. Procurei um advogado, entrei com uma ação contra o Estado e garanti meus direitos. Nunca vou conseguir mudar meu passado, mas recuperei minha dignidade.
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