“Jair Bolsonaro é evangélico”, afirmava um. “Não, ele é católico romano”, dizia o outro. “Não, eu vi o vídeo dele sendo batizado por um pastor da Assembléia”. “Mas eu vi uma entrevista na qual ele dizia que era católico”. “Mas quem fez o casamento dele foi o Malafaia”. “Mas ele continua sendo católico”.
Não eram minhas tias conversando no almoço de família. Era um comentarista político e um especialista em marketing político discutindo com o microfone ligado, sobre a religião do então candidato a presidente. Em um país em que 60% declara que “jamais” votariam em um ateu, a religião é fator fundamental também na identidade de um personagem público.
Pois até nesse ponto Jair Bolsonaro trabalha em regime de contrainformação. Sua religião é assunto tão envolto em fatos e versões que a Folha produziu um conteúdo para tentar esclarecer seu leitor (link nos comentários).
A tradição religiosa do presidente eleito é apenas um exemplo do que os americanos batizaram de “pós-verdade”. Dizer que ele é evangélico não seria uma mentira. Dizer que ele é católico também não é. Também não são verdades, são pós-verdades.
“Pós-verdade” foi a “palavra do ano” de 2016 segundo o dicionário Oxford, para designar algo “relativo a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores da opinião pública do que apelos à emoção ou crenças pessoais”.
Em outras palavras: se você acredita que Bolsonaro é evangélico, você vai ter quilos de vídeos, declarações e pastores para passar a vida compartilhando e comprovando o que você já acreditava; se pensa que ele é católico, também. É isso que importou na campanha de Donald Trump (quando a palavra “pós-verdade” foi inventada) e é isso que importa na comunicação de seu discípulo brasileiro, Jair Messias Bolsonaro.
No caso do brasileiro, ao ser abraçado por líderes neopentecostais como Silas Malafaia, Estevan Hernandes, Ana Paula Valadão e Edir Macedo, entrou na receita um componente bastante próprio dessa tradição do evangelicalismo brasileiro, perfeitamente compreendido pelos fiéis: a ênfase e a convicção são muito mais importantes do que o conteúdo. Em outras palavras, como e quão violentamente (ou defendemos algo) passou a ser a questão, muito mais do que está sendo dito. A jornalista Eliane Brum escreveu um artigo muito interessante a esse respeito, “Bolsonaro e a autoverdade”.
Bolsonaro ditou completamente a agenda política de 2018. Concordo com Eduardo Jorge e Ciro Gomes, quando dizem que o capitão foi fruto direto do “nós contra eles” do petismo. Mas a novelinha de Lula candidato foi só uma patética tentativa de desviar o foco de quem sempre esteve no centro do palco: Jair Bolsonaro. Foi ele e seus filhos quem deram as cartas do noticiário o tempo todo, com declarações bombásticas, desmentidos e aparente bateção-de-cabeça. O ex-assessor de Donald Trump e líder do grupo de direita nacionalista The Movement, Steve Bannon, disse que essa “linguagem provocativa” é a tática ideal para alguém “conseguir ser ouvido em meio ao barulho”, chamar a atenção à margem de uma mídia que nunca o levou à sério. “Hoje, a política é, na realidade, uma narrativa midiática”.
Entretanto, eleito presidente, Jair Bolsonaro não parece satisfeito em apenas construir uma narrativa midiática. Ele, seus filhos e seus diretos continuam monopolizando a mídia, mas seu mais ambicioso controle não é mais sobre a imprensa; é sobre a verdade.
Reflita comigo: qual a conexão do versículo bíblico que ele usou em seu primeiro pronunciamento como presidente (“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”) com o conteúdo em si? Até onde vai minha capacidade de interpretação de texto, não há conexão nenhuma, a menos que você considere a possibilidade de estar diante de um homem se apresentando ele mesmo como a verdade ou, no mínimo, porta-voz da versão que deve ser entendida como a verdade.
Mas, como também está na Bíblia, na boca de Pôncio Pilatos, “O que é a verdade?” Será a verdade, captada em vídeo, do próprio Bolsonaro anunciando que Antonio Fraga iria “coordenar a bancada lá no Planalto” apesar de ser condenado por corrupção? Ou seria o mesmo presidente, no Twitter, escrevendo que “nossos ministérios não serão compostos por condenados por corrupção como foram nos últimos governos”? Seria o vice Mourão dizendo que Sergio Moro sabia do convite ao Ministério da Justiça desde a campanha? Ou o próprio Moro dizendo que não sabia? Seria Bolsonaro anunciando a fusão dos ministérios do Meio Ambiente e Agricultura ou ele voltando atrás? Ou ele anunciando novamente ou voltando atrás novamente? Seria a verdade dita por Paulo Guedes que o novo governo pretende criar uma “nova CPMF”? Ou o desmentido? Seria o filho explicando como fechar o STF? Ou o pai repreendendo “o garoto” no dia seguinte? Seria Mourão ao criticar o 13º ou Bolsonaro anunciando o 13º para o Bolsa Família? Seria Bolsonaro defendendo a liberdade de imprensa no “Jornal Nacional” ou ele caracterizando a Folha como “indigna” de receber as verbas publicitárias do governo no mesmo programa? Ou seria seu vice, algumas horas depois, dizendo que “a imprensa não é inimiga”?
Quem será que “vazou” o vídeo de Bolsonaro anunciando Fraga como ministro? Será que a Record, emissora do mesmo Edir Macedo que vem apoiando escancaradamente o presidente, levaria ao ar algo sem a aprovação de sua equipe? Se sim, porque tirou o vídeo de seus sites? E porque apenas depois da avalanche de críticas à nomeação de Fraga? Será que o próprio Bolsonaro solicitou o vazamento? Com qual objetivo? Testar a opinião pública para um ministro condenado por corrupção? Ou desnortear a cobertura da imprensa para a montagem de seu ministério?
Afinal, o que é a verdade?
A resposta de Bolsonaro à pergunta de Pôncio Pilatos está nas entrelinhas de seu tweet de alguns dias atrás: “Anunciarei os nomes oficialmente em minhas redes. Qualquer informação além é mera especulação, maldosa e sem credibilidade.” 24 horas depois, Bolsonaro dá a sua primeira entrevista coletiva barrando a entrada da Folha, O Globo, Estadão e agências internacionais. O próprio presidente tratou de obscurecer o que deveria ser esclarecido: “Não sei quem marcou isso (a coletiva)”, e nem quem havia mandado restringir os veículos.
Bolsonaro e sua equipe têm trabalhado incansavelmente em cristalizar na cabeça de seus eleitores que a imprensa tradicional brasileira é “especulação”, “fake news”, “indigna” e “sem credibilidade”. A verdade não surge mais da multiplicidade de pontos de vista e do debate entre diferentes vozes. “A verdade” é o que Bolsonaro disser. É essa a verdade que “vos libertará”. Libertará do lulopetismo, libertará da ameaça comunista, libertará da imprensa esquerdopata, da ditadura venezuelana.
Para um país com o índice de leitura do Brasil, soa como música: notícias apuradas por profissionais são “especulação”, “vamos esperar”, “isso é fake news”, “tem que acabar com essa imprensa mesmo”. Verdade é o que o Capitão disser em suas redes sociais. É o que Steve Bannon ensinou nos Estados Unidos: desacredite a imprensa o quanto você puder e mesmo que você admita em juízo que teve um caso extraconjugal com uma atriz pornô, seus devotos só acreditarão no que lerem em suas redes sociais. Imagine em um país como o Brasil, numa eleição construída em cima de memes e fake news, com uma imprensa em constante crise de recursos como a nossa. O que é a verdade?
Escolha a sua verdade. Ou melhor, deixe que o capitão escolha para você. Torça pelo fim da imprensa independente, em vez de torcer pelo seu aperfeiçoamento. Assim, como nos tempos do comandante Ustra, você não terá mais notícias de corrupção nem de corruptores nos jornais. Não terá nem jornais. E, segundo a interpretação que o nosso presidente deu para o versículo bíblico, finalmente será livre.
Livre para segui-lo.
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