Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Como se fosse preciso reavivar a memória do período em que os heróis de Jair Bolsonaro mandavam no país com força de tanques e baionetas,as imagens distribuídas pela Polícia Federal para estimular os brasileiros a denunciar o paradeiro de Cesare Battisti lembram os velhos cartazes com retratos de acusados de terrorismo nos piores momentos da ditadura militar.
Não se trata, aqui, de comparar momentos históricos diferentes, mas de reconhecer um fato de extrema relevância – para nosso presente e nosso futuro.
A decisão de extraditar Battisti é da mesma família de outras medidas do fim de festa do governo Michel Temer, que, pelas razões que todos podem imaginar, confirmam a aliança em profundidade entre o mais impopular presidente da história da Republica e aquele candidato que se apresentou com a retórica “anti-sistema”.
Ao dizer que Battisti era um “presente” para o atual governo italiano, de extrema-direita, Eduardo Bolsolnaro não poderia ter sido mais claro.
Em 2018, o debate sobre o destino de Battisti não envolve a inocência ou a culpa de um ex-militante de um grupo armado que aterrorizou a vida política da Itália nos anos 1970/1980. Diz respeito ao grau de democracia em vigor no país, ao respeito pelas normas do Estado Democrático de Direito. Envolve, diretamente, as prerrogativas que a Constituição reserva ao presidente da República, representante máximo da soberania popular.
Não custa lembrar, para início dos debates,que, sob o regime militar, o país conviveu por mais de duas décadas com o assaltante inglês Ronald Biggs (1929-2013). Um dos organizadores de um milionário assalto a um trem pagador que fazia o percurso Escócia-Inglaterra, em 1963, um marco na história da criminalidade mundial, Biggs fugiu da cadeia poucos anos após a prisão. Ele era considerado o número 2 da quadrilha, numa operação que fez uma vítima fatal - sequelado por um golpe de porrete na cabeça, um funcionário da companhia nunca se recuperou e veio a falecer poucos anos depois.
Depois de passar por vários países, Biggs escondeu-se no Brasil, onde, em 1974, acabou reconhecido por um repórter inglês. Casado, com um filho, Michael, menino que tinha seu sobrenome, Biggs morou perto de três décadas no país graças à decisão de Brasília em fazer cumprir a cláusula que impede extradição de quem tem um filho brasileiro, presente em todas Constituições do país desde 1934. Cansado, doente e sem dinheiro, Biggs voltou ao país natal em 2001. Negociou uma pequena fortuna em troca de um depoimento sobre sua história para o jornal The Sun, reapresentando-se para ser preso em seguida.
Até lá, sucessivos governos britânicos, inclusive da primeira ministra Margareth Thatcher, se mobilizaram na tentativa garantir seu retorno. Em 1981 Biggs chegou a ser sequestrado no Brasil e levado secretamente para Barbados, no Caribe. A expectativa é que fosse conduzido para Londres, mas alguma coisa deu errado no Brasil e ele acabou embarcado de volta ao Rio de Janeiro.
Na época, Brasília chegou a ensaiar um acordo de reciprocidade com Londres para troca de cidadãos refugiados nos respectivos países. A proposta brasileira acabou recusada, pois o governo inglês temia que fosse um pacto maroto, destinado a criar um precedente que poderia ser útil reivindicar a entrega de refugiados que residiam no Reino Unido.
A decisão de manter Biggs assegurou o ponto mais importante, na época, e agora: o respeito aos direitos de um cidadão brasileiro – o filho de Biggs, que não poderia ser discriminado em função dos possíveis erros cometidos pelo pai. Essa foi uma diferença fundamental.
Garantia assegurada pelas Constituições brasileiras desde 1934, aquele tratamento marcou uma diferença absoluta com um episódio traumático, que marcou a Justiça brasileira no século XX —a decisão de atender a um pedido do governo nazista de Adolf Hitler e enviar a militante Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes, para Berlim.
Embarcada em 1936, Olga Benário enfrentou o destino que todos previam. Encarcerada por seis anos, acabou conduzida a câmara de gás, onde morreu, em 1942.
Embora não houvesse a menor dúvida sobre o papel político de Olga Benário junto a liderança do PCB, o questionamento sobre seu envio a Berlim sempre teve o caráter essencialmente jurídico. As últimas dúvidas sobre a natureza indefensável da decisão de 1936 foram dissipadas numa avaliação do decano Celso de Mello, em entrevista ao Conjur, há uma década e meia. Referindo-se a um caso clássico de vergonha jurídica, o ministro falou assim: “Lamentavelmente, o Supremo, na época, não deu a melhor interpretação ao caso e sim um tratamento injusto e trágico”.
O erro primário foi não respeitar o artigo 134 da Constituição, que garantia o tratamento de brasileiros a filhos de pais brasileiros, como ocorria com a criança que Olga Benário trazia em seu ventre - a futura historiadora Anita Leocádia.
Um ano depois da insurreição comunista de 1935, Getúlio Vargas estava mobilizado na perseguição e caça aos integrantes do PCB, o que incluiu um esforço descomunal para cultivar boas relações com a Alemanha de Hitler.
O Supremo de 1936 curvou-se ao Catete numa votação na qual considerou que um decreto assinado por Vargas, questionado o artigo 134, tinha legitimidade para sobrepor-se ao texto de uma Constituição elaborada por parlamentares eleitos pelo voto popular.
Com a espinha curvada, os ministros recusaram um pedido de habeas corpus, que poderia ter garantido a permanência de Olga Benário no país e salvar sua vida, além de poupar o Judiciário brasileiro de um ato indecoroso de cumplicidade com o nazismo.
O ponto é que, em sua defesa, Olga concordava em permanecer na prisão, mesmo em regime incomunicável. Também concordava em ser julgada no país, por crimes de que era acusada no Brasil. Era uma argumentação tão sólida que pedido de habeas corpus era considerado imbatível, apesar da intensa mobilização do governo brasileiro para enviar a prisioneira para seus algozes.
Um ano depois da decisão contra os direitos de Olga e especialmente de sua filha, não surpreende que, em 1937, as eleições presidenciais tenham sido canceladas para dar lugar à ditadura do Estado Novo. Foi parte de um golpe em marcha. Óbvio como 2+2= 4.
Ao recusar-se a repetir a história de 1936, quase 70 anos depois, Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro que não pretendia repetir o mesmo erro do passado e usou de suas atribuições constitucionais, reconhecidas na mesma ocasião pelo próprio STF, para garantir a permanência de Cesare Battisti no país.
Um ano depois da decisão, quando o Supremo debateu o caso Battisti mais uma vez, a decisão foi pacificada. Por seis votos a três, os ministros reconheceram o direito de Lula. Em 2013, o caso prescreveu na própria Justiça italiana. Em 2015, completou-se o prazo para julgamento de recurso contra uma decisão presidencial.
Nesse ambiente, quando transformou os direitos de Battisti num “presente”, o novo governo deixou claro que se tratava de uma moeda de troca. Não há outro nome. Não tem base no direito nem na Justiça. Representa um favor semelhante a venda da Embraer para a Boeing, a entrega do pré-sal, a planejada privatização da Previdência.
Alguma dúvida?
Como se fosse preciso reavivar a memória do período em que os heróis de Jair Bolsonaro mandavam no país com força de tanques e baionetas,as imagens distribuídas pela Polícia Federal para estimular os brasileiros a denunciar o paradeiro de Cesare Battisti lembram os velhos cartazes com retratos de acusados de terrorismo nos piores momentos da ditadura militar.
Não se trata, aqui, de comparar momentos históricos diferentes, mas de reconhecer um fato de extrema relevância – para nosso presente e nosso futuro.
A decisão de extraditar Battisti é da mesma família de outras medidas do fim de festa do governo Michel Temer, que, pelas razões que todos podem imaginar, confirmam a aliança em profundidade entre o mais impopular presidente da história da Republica e aquele candidato que se apresentou com a retórica “anti-sistema”.
Ao dizer que Battisti era um “presente” para o atual governo italiano, de extrema-direita, Eduardo Bolsolnaro não poderia ter sido mais claro.
Em 2018, o debate sobre o destino de Battisti não envolve a inocência ou a culpa de um ex-militante de um grupo armado que aterrorizou a vida política da Itália nos anos 1970/1980. Diz respeito ao grau de democracia em vigor no país, ao respeito pelas normas do Estado Democrático de Direito. Envolve, diretamente, as prerrogativas que a Constituição reserva ao presidente da República, representante máximo da soberania popular.
Não custa lembrar, para início dos debates,que, sob o regime militar, o país conviveu por mais de duas décadas com o assaltante inglês Ronald Biggs (1929-2013). Um dos organizadores de um milionário assalto a um trem pagador que fazia o percurso Escócia-Inglaterra, em 1963, um marco na história da criminalidade mundial, Biggs fugiu da cadeia poucos anos após a prisão. Ele era considerado o número 2 da quadrilha, numa operação que fez uma vítima fatal - sequelado por um golpe de porrete na cabeça, um funcionário da companhia nunca se recuperou e veio a falecer poucos anos depois.
Depois de passar por vários países, Biggs escondeu-se no Brasil, onde, em 1974, acabou reconhecido por um repórter inglês. Casado, com um filho, Michael, menino que tinha seu sobrenome, Biggs morou perto de três décadas no país graças à decisão de Brasília em fazer cumprir a cláusula que impede extradição de quem tem um filho brasileiro, presente em todas Constituições do país desde 1934. Cansado, doente e sem dinheiro, Biggs voltou ao país natal em 2001. Negociou uma pequena fortuna em troca de um depoimento sobre sua história para o jornal The Sun, reapresentando-se para ser preso em seguida.
Até lá, sucessivos governos britânicos, inclusive da primeira ministra Margareth Thatcher, se mobilizaram na tentativa garantir seu retorno. Em 1981 Biggs chegou a ser sequestrado no Brasil e levado secretamente para Barbados, no Caribe. A expectativa é que fosse conduzido para Londres, mas alguma coisa deu errado no Brasil e ele acabou embarcado de volta ao Rio de Janeiro.
Na época, Brasília chegou a ensaiar um acordo de reciprocidade com Londres para troca de cidadãos refugiados nos respectivos países. A proposta brasileira acabou recusada, pois o governo inglês temia que fosse um pacto maroto, destinado a criar um precedente que poderia ser útil reivindicar a entrega de refugiados que residiam no Reino Unido.
A decisão de manter Biggs assegurou o ponto mais importante, na época, e agora: o respeito aos direitos de um cidadão brasileiro – o filho de Biggs, que não poderia ser discriminado em função dos possíveis erros cometidos pelo pai. Essa foi uma diferença fundamental.
Garantia assegurada pelas Constituições brasileiras desde 1934, aquele tratamento marcou uma diferença absoluta com um episódio traumático, que marcou a Justiça brasileira no século XX —a decisão de atender a um pedido do governo nazista de Adolf Hitler e enviar a militante Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes, para Berlim.
Embarcada em 1936, Olga Benário enfrentou o destino que todos previam. Encarcerada por seis anos, acabou conduzida a câmara de gás, onde morreu, em 1942.
Embora não houvesse a menor dúvida sobre o papel político de Olga Benário junto a liderança do PCB, o questionamento sobre seu envio a Berlim sempre teve o caráter essencialmente jurídico. As últimas dúvidas sobre a natureza indefensável da decisão de 1936 foram dissipadas numa avaliação do decano Celso de Mello, em entrevista ao Conjur, há uma década e meia. Referindo-se a um caso clássico de vergonha jurídica, o ministro falou assim: “Lamentavelmente, o Supremo, na época, não deu a melhor interpretação ao caso e sim um tratamento injusto e trágico”.
O erro primário foi não respeitar o artigo 134 da Constituição, que garantia o tratamento de brasileiros a filhos de pais brasileiros, como ocorria com a criança que Olga Benário trazia em seu ventre - a futura historiadora Anita Leocádia.
Um ano depois da insurreição comunista de 1935, Getúlio Vargas estava mobilizado na perseguição e caça aos integrantes do PCB, o que incluiu um esforço descomunal para cultivar boas relações com a Alemanha de Hitler.
O Supremo de 1936 curvou-se ao Catete numa votação na qual considerou que um decreto assinado por Vargas, questionado o artigo 134, tinha legitimidade para sobrepor-se ao texto de uma Constituição elaborada por parlamentares eleitos pelo voto popular.
Com a espinha curvada, os ministros recusaram um pedido de habeas corpus, que poderia ter garantido a permanência de Olga Benário no país e salvar sua vida, além de poupar o Judiciário brasileiro de um ato indecoroso de cumplicidade com o nazismo.
O ponto é que, em sua defesa, Olga concordava em permanecer na prisão, mesmo em regime incomunicável. Também concordava em ser julgada no país, por crimes de que era acusada no Brasil. Era uma argumentação tão sólida que pedido de habeas corpus era considerado imbatível, apesar da intensa mobilização do governo brasileiro para enviar a prisioneira para seus algozes.
Um ano depois da decisão contra os direitos de Olga e especialmente de sua filha, não surpreende que, em 1937, as eleições presidenciais tenham sido canceladas para dar lugar à ditadura do Estado Novo. Foi parte de um golpe em marcha. Óbvio como 2+2= 4.
Ao recusar-se a repetir a história de 1936, quase 70 anos depois, Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro que não pretendia repetir o mesmo erro do passado e usou de suas atribuições constitucionais, reconhecidas na mesma ocasião pelo próprio STF, para garantir a permanência de Cesare Battisti no país.
Um ano depois da decisão, quando o Supremo debateu o caso Battisti mais uma vez, a decisão foi pacificada. Por seis votos a três, os ministros reconheceram o direito de Lula. Em 2013, o caso prescreveu na própria Justiça italiana. Em 2015, completou-se o prazo para julgamento de recurso contra uma decisão presidencial.
Nesse ambiente, quando transformou os direitos de Battisti num “presente”, o novo governo deixou claro que se tratava de uma moeda de troca. Não há outro nome. Não tem base no direito nem na Justiça. Representa um favor semelhante a venda da Embraer para a Boeing, a entrega do pré-sal, a planejada privatização da Previdência.
Alguma dúvida?
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