Por Roberto Pereira D’Araujo, no site Correio da Cidadania:
É como se a incompetência das agências fosse “parte do negócio”. No caso da mineração, essa inépcia foi exposta com toda a sua crueza. A Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela fiscalização, tem apenas 35 fiscais capacitados para monitorar mais de 800 barragens com problemas potenciais.
É possível imaginar o impacto de redução de custo da Vale ao simplesmente adiar previsíveis e conhecidos reparos que seriam exigidos, caso essas minerações fossem fiscalizadas com rigor. Pode-se até dizer que os quase R$ 6 bilhões de lucro obtidos em apenas 1 trimestre de 2018 também se deveu a esse “laissez faire” decorrente do raquítico Estado regulador.
Que lições se expõem para o setor elétrico?
Em 2016, havia em exercício na ANEEL 163 analistas administrativos, 340 especialistas em regulação, 127 técnicos administrativos, 20 procuradores, 20 servidores do quadro específico e 39 servidores ocupantes de cargos comissionados, sem vínculo efetivo com a Administração, além de 10 servidores cedidos à Agência por outros órgãos.
O Brasil tem mais de 900 usinas hidroelétricas, sendo que 130 são usinas consideradas de grande porte. As linhas de transmissão superam 120 mil quilômetros. Há mais de 200 subestações importantes no sistema interligado. Quase 40 empresas distribuidoras são a ponta da relação com o consumidor.
Ao contrário da crença generalizada, o setor elétrico já é majoritariamente privado. Em números aproximados, 90% na distribuição, 60% na geração e 55% na transmissão.
Quem acredita que esse quadro da ANEEL é capaz de regular e fiscalizar um sistema tão amplo e complexo como o elétrico brasileiro?
É fácil mostrar que a debilidade do Estado regulador brasileiro pode ser facilmente percebida ao olhar atento de qualquer um. Vejam:
1. O estado de total confusão dos postes nas redes de distribuição não são apenas “feios”. Provocam riscos às equipes de manutenção, são também eletricamente ineficientes, sujeitos a curtos e escondem perdas elétricas. Qual a ação da ANEEL sobre essa realidade? Nenhuma.
2. Esse aumento de risco deveria poder ser medido através de fiscalizações independentes sobre apagões e pequenos curtos. Esse último, conhecido como “pico de luz” é decorrente da instalação de chaves comutadoras automáticas que desligam o circuito por segundos ao perceber curtos que podem ser causados por galhos de árvore. Essa estratégia evita custos de monitoramento da rede com as árvores, mas causa transientes de corrente que queimam eletrodomésticos. Qual a atuação da ANEEL sobre esse efeito? Nenhuma!
3. O sistema elétrico brasileiro é muito diferente dos sistemas elétricos de países desenvolvidos. Aqui, pelo fato de termos 70% da capacidade total baseada em hidroelétricas de hidrologia tropical, provocou um comportamento atípico no chamado mercado livre. Os dados mostram que, de 2003 até 2012, o chamado mercado livre capturou as vantagens de sobras de oferta e altas hidrologias. Preços muito inferiores a qualquer comparação internacional podem ser consultados nos dados oficiais. Uma vez que o sistema é único, quando uma parte da carga se beneficia de características do sistema físico, a outra parte assume custos muito maiores. Uma vez que a ANEEL cuida das tarifas, como justificar que essa agência não tenha sequer um pronunciamento sobre essa questão?
4. Em 2011, uma comporta da usina Salto Osório da Tractebel, empresa privada, se soltou e foi arrastada pelas águas. Uma peça de 162 toneladas, ao se desprender, ficou “perdida” no leito do rio. Como consequência, o reservatório teve que ser esvaziado para se instalar uma comporta provisória. O volume útil da usina é de 400 milhões de metros cúbicos! Uma aproximação da energia perdida com esse acidente pode ser estimada pela potência da usina e pelos dias em que ela parou. Com capacidade instalada de 1.078 MW, cerca de 50.000 MWh foram perdidos em apenas dois dias na usina. Como o sistema de hidroelétricas funciona como um condomínio, tal evento teve consequências. Que penalidade foi aplicada pela ANEEL? Nenhuma.
5. O progresso tecnológico viabilizou a transformação de luz solar em energia elétrica, a forma de produção que não se baseia em energia cinética. Dada a evidente vantagem brasileira, a geração distribuída está crescendo a altas taxas, até por reagir ao aumento tarifário que a agência não consegue conter. Evidentemente, dada a omissão do poder regulador, conflitos entre distribuidoras e consumidores estão surgindo com uma crescente onda de abusos por parte das empresas. O que a ANEEL tem feito para evitar os conflitos e reconhecer os benefícios e malefícios dessa forma de geração? Absolutamente nada.
Vergonha! É o que deveríamos sentir sobre essa combinação de irresponsabilidade e complacência sobre assuntos tão essenciais. É um grande vexame mundial o que o Brasil apresenta nesse cenário de regulação de atividades privadas que lidam com a natureza e com perigos para a vida.
Também é uma vergonha perceber que a imprensa e seus comentaristas passam ao largo do processo de privatização brasileiro, tratando o tema como se não tivesse relação alguma com o comportamento da outrora estatal Vale do Rio Doce.
Vergonha perceber que a sociedade não tem a mínima ideia das necessidades do chamado Estado regulador, mesmo quando uma simples pesquisa na internet revela a enorme diferença entre o que temos e o que existe nos Estados Unidos, por exemplo.
Vergonha também perceber que, mesmo com essas e outras falhas privadas, a hipótese de retomada da qualidade histórica de empresas públicas despolitizadas e eficientes está praticamente descartada, dado o alto grau de destruição de seus quadros técnicos.
Estamos a ponto de privatizar a Eletrobras como se fosse um assunto que nada tem a ver com a tragédia das barragens da Vale.
Realmente, estamos no pior dos mundos, pois a desinformação escorre pelo vale de lágrimas brasileiro.
* Roberto D'Araujo é engenheiro, ex-consultor da Eletrobrás e colaborador do Instituto Ilumina.
Além da tristeza ao ver tantas vidas sendo eliminadas por absoluta falta de responsabilidade e planejamento, o crime de Brumadinho desvendou uma lamentável realidade brasileira. O que se notou na tragédia humana, ambiental e econômica foi a percepção de que as empresas privadas exploradoras de riquezas naturais no país se aproveitam da incapacidade dos órgãos reguladores e fiscalizadores de realizar a contento sua função.
É como se a incompetência das agências fosse “parte do negócio”. No caso da mineração, essa inépcia foi exposta com toda a sua crueza. A Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela fiscalização, tem apenas 35 fiscais capacitados para monitorar mais de 800 barragens com problemas potenciais.
É possível imaginar o impacto de redução de custo da Vale ao simplesmente adiar previsíveis e conhecidos reparos que seriam exigidos, caso essas minerações fossem fiscalizadas com rigor. Pode-se até dizer que os quase R$ 6 bilhões de lucro obtidos em apenas 1 trimestre de 2018 também se deveu a esse “laissez faire” decorrente do raquítico Estado regulador.
Que lições se expõem para o setor elétrico?
Em 2016, havia em exercício na ANEEL 163 analistas administrativos, 340 especialistas em regulação, 127 técnicos administrativos, 20 procuradores, 20 servidores do quadro específico e 39 servidores ocupantes de cargos comissionados, sem vínculo efetivo com a Administração, além de 10 servidores cedidos à Agência por outros órgãos.
O Brasil tem mais de 900 usinas hidroelétricas, sendo que 130 são usinas consideradas de grande porte. As linhas de transmissão superam 120 mil quilômetros. Há mais de 200 subestações importantes no sistema interligado. Quase 40 empresas distribuidoras são a ponta da relação com o consumidor.
Ao contrário da crença generalizada, o setor elétrico já é majoritariamente privado. Em números aproximados, 90% na distribuição, 60% na geração e 55% na transmissão.
Quem acredita que esse quadro da ANEEL é capaz de regular e fiscalizar um sistema tão amplo e complexo como o elétrico brasileiro?
É fácil mostrar que a debilidade do Estado regulador brasileiro pode ser facilmente percebida ao olhar atento de qualquer um. Vejam:
1. O estado de total confusão dos postes nas redes de distribuição não são apenas “feios”. Provocam riscos às equipes de manutenção, são também eletricamente ineficientes, sujeitos a curtos e escondem perdas elétricas. Qual a ação da ANEEL sobre essa realidade? Nenhuma.
2. Esse aumento de risco deveria poder ser medido através de fiscalizações independentes sobre apagões e pequenos curtos. Esse último, conhecido como “pico de luz” é decorrente da instalação de chaves comutadoras automáticas que desligam o circuito por segundos ao perceber curtos que podem ser causados por galhos de árvore. Essa estratégia evita custos de monitoramento da rede com as árvores, mas causa transientes de corrente que queimam eletrodomésticos. Qual a atuação da ANEEL sobre esse efeito? Nenhuma!
3. O sistema elétrico brasileiro é muito diferente dos sistemas elétricos de países desenvolvidos. Aqui, pelo fato de termos 70% da capacidade total baseada em hidroelétricas de hidrologia tropical, provocou um comportamento atípico no chamado mercado livre. Os dados mostram que, de 2003 até 2012, o chamado mercado livre capturou as vantagens de sobras de oferta e altas hidrologias. Preços muito inferiores a qualquer comparação internacional podem ser consultados nos dados oficiais. Uma vez que o sistema é único, quando uma parte da carga se beneficia de características do sistema físico, a outra parte assume custos muito maiores. Uma vez que a ANEEL cuida das tarifas, como justificar que essa agência não tenha sequer um pronunciamento sobre essa questão?
4. Em 2011, uma comporta da usina Salto Osório da Tractebel, empresa privada, se soltou e foi arrastada pelas águas. Uma peça de 162 toneladas, ao se desprender, ficou “perdida” no leito do rio. Como consequência, o reservatório teve que ser esvaziado para se instalar uma comporta provisória. O volume útil da usina é de 400 milhões de metros cúbicos! Uma aproximação da energia perdida com esse acidente pode ser estimada pela potência da usina e pelos dias em que ela parou. Com capacidade instalada de 1.078 MW, cerca de 50.000 MWh foram perdidos em apenas dois dias na usina. Como o sistema de hidroelétricas funciona como um condomínio, tal evento teve consequências. Que penalidade foi aplicada pela ANEEL? Nenhuma.
5. O progresso tecnológico viabilizou a transformação de luz solar em energia elétrica, a forma de produção que não se baseia em energia cinética. Dada a evidente vantagem brasileira, a geração distribuída está crescendo a altas taxas, até por reagir ao aumento tarifário que a agência não consegue conter. Evidentemente, dada a omissão do poder regulador, conflitos entre distribuidoras e consumidores estão surgindo com uma crescente onda de abusos por parte das empresas. O que a ANEEL tem feito para evitar os conflitos e reconhecer os benefícios e malefícios dessa forma de geração? Absolutamente nada.
Vergonha! É o que deveríamos sentir sobre essa combinação de irresponsabilidade e complacência sobre assuntos tão essenciais. É um grande vexame mundial o que o Brasil apresenta nesse cenário de regulação de atividades privadas que lidam com a natureza e com perigos para a vida.
Também é uma vergonha perceber que a imprensa e seus comentaristas passam ao largo do processo de privatização brasileiro, tratando o tema como se não tivesse relação alguma com o comportamento da outrora estatal Vale do Rio Doce.
Vergonha perceber que a sociedade não tem a mínima ideia das necessidades do chamado Estado regulador, mesmo quando uma simples pesquisa na internet revela a enorme diferença entre o que temos e o que existe nos Estados Unidos, por exemplo.
Vergonha também perceber que, mesmo com essas e outras falhas privadas, a hipótese de retomada da qualidade histórica de empresas públicas despolitizadas e eficientes está praticamente descartada, dado o alto grau de destruição de seus quadros técnicos.
Estamos a ponto de privatizar a Eletrobras como se fosse um assunto que nada tem a ver com a tragédia das barragens da Vale.
Realmente, estamos no pior dos mundos, pois a desinformação escorre pelo vale de lágrimas brasileiro.
* Roberto D'Araujo é engenheiro, ex-consultor da Eletrobrás e colaborador do Instituto Ilumina.
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