Oitenta e dois anos depois que uma Constituição elaborada por Francisco Campos, ministro da Justiça de Getúlio Vargas, transformou a carta de direitos de 1934 na ditadura do Estado Novo, o ministro da Justiça Sérgio Moro ensaia a construção de um Estado Policial no país.
A Constituição de 1937 teve como pretexto o Plano Cohen, um documento falso produzido pelo serviço secreto do Exército, destinado a justificar um projeto feroz de caça aos comunistas e militantes de esquerda.
O resultado foram oito anos de ditadura, um sistema fechado, censura prévia e perseguição sistemática de adversários, do qual o país só se libertou na nova conjuntura internacional produzida pela derrota no nazismo na Segunda Guerra Mundial.
Formalmente, a proposta de Sérgio Moro não atinge a liberdade dos partidos políticos nem altera o regime eleitoral. Sua intervenção ocorre em outra esfera, no campo fundamental dos direitos e garantias individuais e é por aí que se modifica a atuação dos indivíduos como cidadãos, e também a luta social e a disputa política de toda sociedade democrática. O experimento fundamental é a Lava Jato, que produziu uma mudança essencial em nosso sistema político e na eleição presidencial como se fosse outra coisa -- uma investigação sobre corrupção.
Caso as propostas de Moro sejam aprovadas pelo Congresso, o efeito real será desfigurar o Estado Democrático de Direito mais a fundo, pela anulação das principais garantias constitucionais. O país será jogado numa realidade institucional híbrida, na qual belos princípios teóricos dos regimes democráticos convivem com uma prática medonha e inaceitável que faz parte das ditaduras e regimes autoritários.
Se o Estado Novo reproduzia o movimento fascista em curso na Europa dos anos 30, o Estado Novo de Moro avança em direção aos governos de liberdade restrita e controle social acentuado em gestação em várias partes do mundo.
Longe de corrigir falhas e omissões que podem ser apontadas na legislação em vigor de qualquer país, o alvo é diminuir os direitos do cidadão e a presunção de que todos são inocentes até que o Estado seja capaz de provar o contrário.
Num país com um histórico de treva, abuso e impunidade contra os mais pobres e os mais fracos, o resultado só pode ser uma tragédia programada. Mais uma vez, a questão essencial consiste em resolver o que fazer com os pobres e os pretos -- uma pergunta essencial há mais de 400 anos.
Os exemplos são múltiplos e variados mas, para não perder o foco, vamos ficar no essencial: a vida humana.
Única e insubstituível, trata-se do principal valor da existência de cada um dos 210 milhões de brasileiros. É bom saber que, caso as propostas de Sérgio Moro venham a ser discutidas e aprovadas, essa chama que cada pessoa carrega dentro de si ao nascer se tornará menos valorizada e menos protegida. Os mais fracos, de novo, encontram-se na zona prioritária de risco.
Nessa investida, o ministro da Justiça não deixou de atender a um velho eufemismo tão ao gosto de Jair Bolsonaro.
Desde os tempos de deputado, Bolsonaro cobra que se ofereça "segurança jurídica" a policiais acusados de cometer crimes no exercício da função. Ainda que a atividade policial possa implicar em atos violentos e mesmo mortes -- que devem ser involuntárias -- o que se busca, aqui, é outra coisa. A garantia de impunidade para as mortes "em serviço", que lotam as estatísticas com milhares de execuções produzidas pela violência policial, raramente são investigadas e jamais esclarecidas.
Na proposta de Sérgio Moro, a "segurança jurídica" de Bolsonaro é tratada como "legítima defesa" caso uma morte possa ocorrer em função de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Parece complicada mas não é.
Na prática, é a expressão definitiva do alinhamento entre o ministro da Justiça e o presidente da República. Com ajuda de Moro, Bolsonaro não pretende limitar-se a ocupar a presidência por quatro anos. Quem sabe mais quatro, se for reeleito. Supondo que as coisas venham se passar assim mesmo, desse jeito, o trabalho aqui é outro. O presidente quer ajuda do juiz da Lava Jato para redesenhar as instituições, quebrar sua matriz democrática e dar um perfil autoritário ao Estado brasileiro.
Este é o jogo.
Alguma dúvida?
A Constituição de 1937 teve como pretexto o Plano Cohen, um documento falso produzido pelo serviço secreto do Exército, destinado a justificar um projeto feroz de caça aos comunistas e militantes de esquerda.
O resultado foram oito anos de ditadura, um sistema fechado, censura prévia e perseguição sistemática de adversários, do qual o país só se libertou na nova conjuntura internacional produzida pela derrota no nazismo na Segunda Guerra Mundial.
Formalmente, a proposta de Sérgio Moro não atinge a liberdade dos partidos políticos nem altera o regime eleitoral. Sua intervenção ocorre em outra esfera, no campo fundamental dos direitos e garantias individuais e é por aí que se modifica a atuação dos indivíduos como cidadãos, e também a luta social e a disputa política de toda sociedade democrática. O experimento fundamental é a Lava Jato, que produziu uma mudança essencial em nosso sistema político e na eleição presidencial como se fosse outra coisa -- uma investigação sobre corrupção.
Caso as propostas de Moro sejam aprovadas pelo Congresso, o efeito real será desfigurar o Estado Democrático de Direito mais a fundo, pela anulação das principais garantias constitucionais. O país será jogado numa realidade institucional híbrida, na qual belos princípios teóricos dos regimes democráticos convivem com uma prática medonha e inaceitável que faz parte das ditaduras e regimes autoritários.
Se o Estado Novo reproduzia o movimento fascista em curso na Europa dos anos 30, o Estado Novo de Moro avança em direção aos governos de liberdade restrita e controle social acentuado em gestação em várias partes do mundo.
Longe de corrigir falhas e omissões que podem ser apontadas na legislação em vigor de qualquer país, o alvo é diminuir os direitos do cidadão e a presunção de que todos são inocentes até que o Estado seja capaz de provar o contrário.
Num país com um histórico de treva, abuso e impunidade contra os mais pobres e os mais fracos, o resultado só pode ser uma tragédia programada. Mais uma vez, a questão essencial consiste em resolver o que fazer com os pobres e os pretos -- uma pergunta essencial há mais de 400 anos.
Os exemplos são múltiplos e variados mas, para não perder o foco, vamos ficar no essencial: a vida humana.
Única e insubstituível, trata-se do principal valor da existência de cada um dos 210 milhões de brasileiros. É bom saber que, caso as propostas de Sérgio Moro venham a ser discutidas e aprovadas, essa chama que cada pessoa carrega dentro de si ao nascer se tornará menos valorizada e menos protegida. Os mais fracos, de novo, encontram-se na zona prioritária de risco.
Nessa investida, o ministro da Justiça não deixou de atender a um velho eufemismo tão ao gosto de Jair Bolsonaro.
Desde os tempos de deputado, Bolsonaro cobra que se ofereça "segurança jurídica" a policiais acusados de cometer crimes no exercício da função. Ainda que a atividade policial possa implicar em atos violentos e mesmo mortes -- que devem ser involuntárias -- o que se busca, aqui, é outra coisa. A garantia de impunidade para as mortes "em serviço", que lotam as estatísticas com milhares de execuções produzidas pela violência policial, raramente são investigadas e jamais esclarecidas.
Na proposta de Sérgio Moro, a "segurança jurídica" de Bolsonaro é tratada como "legítima defesa" caso uma morte possa ocorrer em função de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Parece complicada mas não é.
Na prática, é a expressão definitiva do alinhamento entre o ministro da Justiça e o presidente da República. Com ajuda de Moro, Bolsonaro não pretende limitar-se a ocupar a presidência por quatro anos. Quem sabe mais quatro, se for reeleito. Supondo que as coisas venham se passar assim mesmo, desse jeito, o trabalho aqui é outro. O presidente quer ajuda do juiz da Lava Jato para redesenhar as instituições, quebrar sua matriz democrática e dar um perfil autoritário ao Estado brasileiro.
Este é o jogo.
Alguma dúvida?
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