Durante a campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro disse “não ter interesse” em discutir o papel das milícias no Rio de Janeiro. Mas não foi sempre assim. Ao longo de seus 27 anos como deputado na Câmara, o atual presidente da República defendeu milicianos e grupos de extermínio mais de uma vez. Agora a Operação Os Intocáveis, desencadeada pelo Ministério Público (RJ), faz crer que esta relação do clã Bolsonaro com o crime organizado é mais estreita do que parece.
De filho prodígio a “garoto problema”
Flávio Bolsonaro, 37 anos, é considerado o mais “moderado” dos três irmãos e tinha um futuro promissor na política. O problema é que o senador eleito com 4 milhões de votos pelo PSL-RJ tem ligações – no mínimo – suspeitas com uma milícia da Zona Oeste da capital fluminense.
Na terça-feira (22) a Operação Os Intocáveis emitiu 13 mandados de prisão preventiva e capturou parte da cúpula do Escritório do Crime, braço armado de um dos mais poderosos grupos de milicianos que atua na comunidade de Rio das Pedras e pode estar diretamente ligado ao assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL).
Entre os foragidos está o ex-capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) Adriano Magalhães da Nóbrega, homenageado por Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro com a Medalha Tiradentes, mais alta horaria da Casa. Mas essa relação vai além, a mãe e a esposa do foragido trabalharam no gabinete do então deputado até novembro de 2018.
Outro ex-PM homenageado pelo atual senador na Alerj é o major da PM Ronald Paulo Alves Pereira, que foi preso pela Operação Intocáveis no dia 22. Ele também é suspeito de ser um dos líderes da organização criminosa.
O primogênito do presidente atribuiu a contratação de Raimunda Vera Magalhães (mãe de Adriano) e Danielle Mendonça Costa da Nóbrega (esposa) ao seu assessor, Fabrício Queiroz, que desde ano passado é investigado pela movimentação atípica de R$ 7 milhões em sua conta bancária. Valor muito superior ao salário mensal de um motorista.
Queiroz parece ser um dos elos entre o clã Bolsonaro e o Escritório do Crime. Subtenente da PM, ele conviveu com a família do presidente por mais de três décadas e quando estourou o escândalo das movimentações suspeitas em sua conta, desapareceu. Ao que tudo indica, permaneceu pelo menos duas semanas escondido com miliciados de Rio das Pedras e reapareceu no Hospital Albert Einstein, o mesmo em que o presidente foi operado após sofrer um atentado durante a campanha eleitoral em Juiz de Fora, Minas Gerais.
Não há como negar que a família é uma prioridade para os Bolsonaro, e a preocupação não é só da boca pra fora. Prova disso é que Flávio Bolsonaro – além de empregar a mãe e a esposa do possível chefe do Escritório do Crime - também arrumou emprego para a esposa e as filhas de Fabrício Queiroz, uma delas foi assessora fantasma de seu pai, Jair Bolsonaro.
Os laços de família e amizades antigas não param. Raimunda, a mãe do ex-Bope foragido é sócia de um restaurante que não fica nem perto da Alerj, onde ela trabalhava, mas curiosamente na mesma rua do Banco Itaú onde foram feitos 17 depósitos em dinheiro vivo na conta de Queiroz.
Bandido bom é miliciano “do bem”
A relação de Flávio com as milícias é antiga e ele já chegou a propor a legalização destes grupos paramilitares. Durante seu segundo mandato como deputado estadual, em 2007, votou contra a da CPI das Milícias, instalada após jornalistas do jornal O Dia terem sido sequestrados e torturados por um grupo de milicianos. O argumento do então deputado era de que as milícias eram benéficas para as comunidades, uma vez que “organizam a segurança pública”.
“Sempre que ouço relatos de pessoas que residem nessas comunidades, supostamente dominadas por milicianos, não raro é constatada a felicidade dessas pessoas que antes tinham que se submeter à escravidão, a uma imposição hedionda por parte dos traficantes e que agora pelo menos dispõem dessa garantia, desse direito constitucional, que é a segurança pública”, disse durante uma sessão na Assembleia.
O pai, Jair Bolsonaro, defendeu em 2008 os “bons milicianos” porque segundo ele não se pode “generalizar” as práticas dos grupos criminosos. “Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes. Existe miliciano que não tem nada a ver com ‘gatonet’, com venda de gás. Como ele ganha 850 reais por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de ‘gatonet’, venda de gás ou transporte alternativo. Então, Sr. Presidente, não podemos generalizar.”
Na mesma época, foi ainda mais incisivo ao defender os grupos paramilitares durante uma entrevista à BBC. “O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas. E, talvez, no futuro, deveria legalizá-las”, disse.
Como agem as milícias
As milícias surgiram nos anos 1960 como grupos de extermínio formados basicamente oficiais da Polícia Militar que com a ditadura passou a agir da forma como é hoje: força ostensiva das Forças Armadas. Mas é no começo da democracia, ao final dos anos 80, que estes grupos paramilitares se consolidam com a atual forma de atuação.
Uma milícia é composta – normalmente – por policiais militares e civis, bombeiros e agentes de segurança que controlam de forma militarizada áreas urbanas, principalmente através da grilagem de terrenos. O leque de atuação dos criminosos de farda é amplo. Entre as principais ações estão a cobrança de taxas para, supostamente, proteger o comércio local e operar uma espécie de “transporte alternativo” nas regiões dominadas onde o transporte público sequer chega. Há também a monopolização de distribuição de gás de cozinha e a venda de serviços de TV a cabo pirata, chamada de “gatonet”. Fora isso, os milicianos também estão envolvidos com o tráfico de drogas porque “arrendam” as comunidades para permitir a atuação de traficantes. Acredita-se que mais de 60% do território da capital fluminense é controlado por estes grupos militarizados.
Em algumas regiões os serviços prestados pelas milícias colocam em risco a vida dos moradores das comunidades. É o caso de Duque de Caxias, onde estes grupos roubam oleodutos da Petrobras e criam destilarias irregulares nas casas das pessoas para vender combustível adulterado. Há casos também de aterros clandestinos onde os milicianos cobram taxas para enterrar cargas de lixo sem nenhum controle, pode ser lixo industrial, hospitalar.
O sociólogo e autor do livro “Dos Barões do Extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense”, José Cláudio Souza Alvez, afirmou em entrevista à Agência Pública que as milícias jamais existiram sem uma ligação direta com o Estado. Por isso, para o especialista que estuda os grupos paramilitares há 26 anos, não se trata de um “poder paralelo”, mas uma extensão armada do próprio Estado brasileiro.
O estudioso vai além, ele estabelece uma relação direta entre a eleição de Jair Bolsonaro e o paramilitarismo. “Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada”, diz.
Segundo José Cláudio, a ligação entre as milícias e o Estado é direta porque na maioria das vezes os próprios agentes do Estado são milicianos. E o caso da mãe e da esposa de Adriano da Nóbrega, por exemplo, é muito comum. Ele afirma que não há novidade em familiares de chefes do crime trabalharem junto ao poder legislativo – municipal ou estadual – porque isso dá para estes líderes um status entre a comunidade, como se houvesse um poder de persuasão junto aos políticos.
O Escritório do Crime e Marielle Franco
A operação Os Intocáveis traz à luz não só a relação da família do presidente com as milícias, mas também novas pistas para elucidar o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Isso porque, até agora, as investigações apontam para membros do Escritório do Crime como principais suspeitos.
Adriano da Nóbrega é um dos principais nomes do esquadrão, treinado pelo Bope para proteger vidas, desviou sua habilidade com armas de alto calibre para o mundo do crime e hoje é apontado como um assassino de aluguel que trabalha para quem estiver disposto a pagar seu preço.
Recentemente o Intercept teve acesso ao inquérito da Justiça sobre o caso onde pelo menos seis testemunhas acusam Adriano da Nóbrega como o assassino de Marielle. Ele foi expulso da PM por envolvimento com a máfia do jogo do bicho no Rio e a partir de então se tornou um mercenário. Políticos são clientes fieis deste braço armado da milícia.
Flávio Bolsonaro não só homenageou Adriano na Alerj, em 2003, como foi o único parlamentar a votar contra a homenagem póstuma a Marielle com a Medalha Tiradentes.
Porém, por mais avançada que esteja a investigação agora, o desfecho deste quebra-cabeças passa pelas mãos do governador Wilson Witzel (PSC). Durante a campanha, em 2018, ele participou do ato político onde exibiram a placa com o nome de Marielle quebrada ao meio como um troféu.
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