Por Augusto C. Buonicore, no site da Fundação Maurício Grabois:
O ano era 1949 e vivia-se em meio à guerra fria, que no ano seguinte se tornaria quente na Coreia. O Brasil, sob o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra, havia entrado firme – e prematuramente –nessa sombria era. Em maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cancelou o registro do Partido Comunista do Brasil (PCB) e, em janeiro do ano seguinte, foi cassado o mandato de seus parlamentares num golpe parlamentar. Desde então, aumentou a escalada da repressão aos “vermelhos”. Os seus principais dirigentes, tendo suas prisões preventivas decretadas, entraram na clandestinidade. Vários jornais, mesmo não pertencendo oficialmente ao partido comunista, passaram a ser constantemente censurados e empastelados pela polícia.
Assim, o governo Dutra teve como uma das suas marcas acentuadas a truculência contra a esquerda e os movimentos populares. Realizou aproximadamente 400 intervenções em sindicatos, visando a afastar as direções suspeitas de serem ligadas ao comunismo. As manifestações e greves foram proibidas e algumas dissolvidas à bala. O saldo da repressão governamental desmedida foi 55 militantes mortos e centenas de feridos.
No estado de São Paulo, a situação não diferia muito da do resto do país, mas havia um detalhe. Ali, os comunistas tinham apoiado a eleição do governador Adhemar de Barros pelo Partido Social Progressista (PSP), e inclusive eleito dois deputados federais por aquela legenda: Pedro Pomar e Diógenes Arruda Câmara. Ameaçado de cassação – entre outras coisas,pelo apoio recebido do PCB –, Adhemar passou a perseguir o antigo aliado eleitoral. Para agradar Dutra, tornou-se mais realista do que o próprio rei.
Nesse ambiente hostil, os comunistas mantiveram-se firmes na sua missão de organizar os camponeses pobres do interior. Esta era uma de suas tarefas mais difíceis devido à persistência do coronelismo, apoiado em milícias privadas e no poder oligárquico local. Mesmo assim, envolveram-se ativamente na preparação do Congresso de Trabalhadores Rurais da Alta Paulista, cujo objetivo era organizar uma União Camponesa naquela região do estado de São Paulo. Tupã deveria se constituir num dos polos desse perigoso empreendimento. Ali dominavam os grandes proprietários de terra. O mais famoso deles, por sua riqueza, seu poder e truculência,era Luiz Souza Leão, fundador da cidade.
Inicialmente, o congresso camponês estava planejado para ser realizado em maio em Marília; contudo, foi proibido pela polícia. Nesse processo Edgard de Almeida Martins, principal dirigente do Partido na área, terminou sendo preso. Mesmo assim os comunistas não desistiram da ideia. Dando curso a esse projeto arriscado, convocaram uma reunião clandestina com militantes da região em Tupã.
No dia 23 de setembro, Maria Aparecida Rodrigues chegou àquela cidade vinda de Santa Cruz. Tinha apenas 20 anos e sua missão era ajudar na preparação daquele encontro que daria os primeiros passos no sentido da fundação da tão sonhada entidade camponesa. A imprensa conservadora a intitulara “mocinha do barulho”, pois tinha “aprontado” num comício de Prestes Maia, candidato a governador pela UDN, na cidadezinha de Osvaldo Cruz. Sabendo que muitos camponeses iriam participar daquela manifestação política, por terem confundido Prestes Maia com o líder comunista Luiz Carlos Prestes, a jovem resolveu comparecer e, num determinado momento, pediu a palavraem nome das mulheres locais apoiadoras de Prestes. Não disse, porém, de qual Prestes se tratava. Para assombro geral, ela defendeu as candidaturas comunistas e terminou gritando “Viva a Paz!”, principal slogan do PCB naquele momento. Em seguida, desceu rapidamente do palanque e sumiu na multidão, protegida pelos seus camaradas.
Abro parênteses para falar um pouco da combativa Maria Aparecida. Filha de comunistas, nasceu em Brodowski, terra natal de Cândido Portinari, em 2 de junho de 1929. Depois de ter morado cerca de cinco anos em pequenas cidades em torno de Ribeirão Preto, mudou-se para Vera Cruz, na Alta Paulista. O pai era caixeiro-viajante, e aos 14 anos ela começou a acompanhá-lo pelo interior, chegando a trabalhar como boia-fria, colhendo algodão e café. Entre 1946 e 1947, aproximou-se do Partido Comunista do Brasil (PCB) e ajudou a fundar a União Feminina de Vera Cruz. Em julho de 1948, enviou uma carta à redação do Momento Feminino, congratulando-o pelo seu primeiro aniversário. No ano seguinte, participou, como única delegada de sua cidade, da 1ª Convenção Feminina do Estado de São Paulo.
Numa entrevista dada posteriormente ao mesmo Momento Feminino, descreveu a importância que teve aquele encontro de mulheres: “A I Convenção Feminina, realizada em 1949, trouxe-me para a verdadeira atividade da luta organizada; foi lendo os seus trabalhos, foi entrando em contato com mulheres lutadoras, que senti a necessidade de reforçar a minha atividade frente aos problemas femininos. (...) Terminada as atividades da Convenção, já me achava entrosada nas do Congresso da Paz, havendo tomado parte nas assembleias estadual e nacional. Assisti a cena vandálica da Polícia Especial na sede da UNE (...) e isto, como era natural, veio ativar em mim o propósito de não perder mais um minuto sequer na luta pela conquista de nossos direitos”. Continua ela: “Voltei a Santa Cruz mais orientada e com maiores experiências: havia adquirido maior confiança na luta do povo! Dediquei-me então à organização da mulher camponesa (...). Muitas coisas interessantes surgiram nas singelas reuniões daquelas humildes mulheres do campo.” (Momento Feminino, 2 de março de 1950). A I Convenção Feminina de São Paulo ocorreu entre 27 e 29 de março; ou seja, poucos meses antes de ela desembarcar em Tupã.
Segundo Airton Souza de Lima, “Dário de Paula, que viajava frequentemente pela Alta Paulista, recebia visitas de ‘companheiros comunistas camponeses’, em sua casa, na Fazenda Luar, em Tupã. Irineu de Moraes, o Índio, ligado à Direção do Partido no Estado, trazia as orientações, responsável que era pela articulação dos movimentos rurais no interior paulista (...). A casa de Dário (...) teria sido o lugar escolhido para a reunião pró-paz, objetivando a fundação da ‘Associação Camponesa do Estado de São Paulo’”. Maria Aparecida opinou que não era uma boa ideia fazer a reunião naquele lugar, pois era muito visado pelos fazendeiros e autoridades policiais da região. Mas, infelizmente, não se encontrou um local mais adequado e a reunião terminou por ser realizada na gleba de Dário.
Pouco mais de uma dezena de trabalhadores, sendo três de Tupã, se reuniu durante o dia 25 de setembro. O fato não passou despercebido. Tudo indica que a própria proprietária da fazenda denunciou-os à polícia. O delegado Renato Imparato rapidamente montou uma patrulha com oito homens e seguiu até o local. Chegaram à noitinha. Desceram das viaturas e se aproximaram sorrateiramente do casebre onde pouco antes ocorrera a reunião. Havia restado ainda algumas poucas pessoas, que viajariam de trem na manhã seguinte. A invasão policial caracterizou-se pela extrema violência, típica do período. Existem várias interpretações sobre o que teria ocorrido naquele momento. O resultado da ação repressiva foi três trabalhadores e um policial mortos. O acontecimento entraria para a história como a Chacina de Tupã.
Os militantes assassinados foram: Afonso Marma, operário de São Paulo; Pedro Godoy, marítimo de Santos; e Miguel Rossi, trabalhador rural de Garça. E o soldado Sebastião Jacinto Lima. A polícia e a imprensa, como sempre, buscaram jogar a responsabilidade da tragédia nas costas dos comunistas. Eles teriam recebido os policiais à bala. Nos dias seguintes, os jornais trouxeram fotos dos corpos ao lado das supostas armas que estariam usando na hora do conflito. Método comum até os dias de hoje.
Diante do juiz, o sargento Nilo Cipriano Oliveira, um dos participantes da operação, declarou que os revólveres e uma carabina haviam sido colocados propositalmente ao lado dos cadáveres e pertenciam à própria Delegacia. Além disso, depois das execuções, os policiais teriam atirado de dentro para fora da casa, visando a incriminar as vítimas e responsabilizá-las pelo início do tiroteio. Cipriano afirmou terem dado voz de prisão aos que estavam conversando ao lado do casebre. Um dos soldados tentara desarmar Miguel Rossi, e este reagira. Ato contínuo, o líder camponês foi executado pelos demais policiais. Os que ainda estavam na casa tentaram fugir e foram alvejados. Dois outros trabalhadores tombaram. Afonso Marma morreu no local e Godoy ficou gravemente ferido. O delegado não teve pressa de levá-lo ao hospital, onde faleceria no dia seguinte. As vítimas comunistas foram enterradas como indigentes embora portassem documentos. Enquanto isso, o enterro do soldado se transformou numa manifestação anticomunista.
O jornal Voz Operária descreveria assim a morte de Godoy: “O delegado Imparato impediu que fosse prestado socorro médico a Godoy. Dirigindo-se ao bravo proletário, o bandido policial disse ‘Você pode salvar-se. Mandarei tirar a bala, fazer os curativos se você der os nomes dos outros’. O cão policial propunha que trocasse sua vida pela honra. Pedro Godoy, dominando as dores atrozes que o consumiam, queimou o bandido com o lampejo de ódio do seu olhar. Escarrou na cara do policial e, reunindo suas últimas forças, deu-lhe um pontapé com a perna ferida. Depois se voltou para a parede, fechou os olhos e esperou a morte.” (VO, 25 de setembro de 1954). A cena teria sido vista por um enfermeiro que contou posteriormente a um membro do PCB.
No dia seguinte à Chacina, dois outros comunistas seriam presose levados ao DOPS, onde permaneceriam por onze dias, incomunicáveis: Maria Aparecida, a “mocinha do barulho”, e o sapateiro Honório Tavaresde Faria, militante em Marília. Em seis de outubro, foram transferidos para a cadeia de Tupã e processados pela Lei de Segurança Nacional. Dário, proprietário da casa, conseguiu escapar e comunicou à direção do PCB o que ocorrera.
O Partido Comunista e demais correntes democráticas denunciaram as violências ocorridas em Tupã – como parte de uma política repressiva mais ampla desencadeada pelos governos de Dutra e Adhemar de Barros. Um Manifesto ao povo de São Paulo dizia: “Os parlamentares e cidadãos abaixo-assinados (...) ainda mal refeitos da indignação que lhes causaram os bárbaros e desumanos acontecimentos de 25 de setembro em Tupã, onde, ultrapassando todos os limites do arbítrio e da ilegalidade, a polícia atirou mortalmente contra três honrados chefes de família, vêm pelo presente tornar público o seu protesto por tão violenta atitude tomada justamente por aqueles que têm o dever de evitar fatos dessa natureza. Proclamam sua irrestrita solidariedade ao povo de São Paulo e as famílias de Miguel Rossi, Afonso Marma e Pedro Godói que tombaram em Tupã, vítimas de um ataque brutal, quando no franco exercício dos direitos que a Constituição garante a todo cidadão”. Entre os que assinaram esse contundente protesto estão os deputados federais Euzébio Rocha e Pedro Pomar; os deputados estaduais Porfírio da Paz e Manoel de Nóbrega; e os vereadores da capital paulista Jânio Quadros e Cid Franco.
Dias depois a imprensa começou a divulgar a biografia dos comunistas mortos. Afonso Marma (24-01-1908) nasceu na Lituânia e chegou ao Brasil em 1927. Logo se vinculou ao Partido Comunista do Brasil e contribuiu para a organização da comunidade lituana, criando clubes e jornais desses imigrantes, em geral pró-soviéticos. Devido a seu trabalho militante, foi preso e deportado em julho de 1930. Trabalhou na Argentina e no Uruguai, também organizando os imigrantes lituanos. Voltou ao país em 1935. Continuou sua vida de operário em várias empresas, incluindo a Laminação de Metais em Utinga. Possivelmente, em meados de 1949, pela sua experiência, foi deslocado para ajudar na organização dos camponeses da Alta Paulista. Sua morte teve repercussão internacional, inclusive na Lituânia soviética.
Pedro Godoy (17-01-1920) era estivador na baixada santista e filiou-se ao PCB em 1946, durante o breve período de legalidade. Candidatou-se a vereador por aquele partido no município de Guarujá. Destacou-se nas greves de1947 e 1948. Perseguido, mudou-se para Alta Paulista. Ali se envolveu com as lutas camponesas. Miguel Rossi (14-09-1907) entrou para o Partido em 1933 e participou da ANL. Preso em Marília em 1936, permaneceu um ano no famigerado presídio Maria Zélia. Trabalhava e militava na cidade de Garça quando foi assassinado. (VO, 5 de abril de 1952).
Iniciou-se um movimento de solidariedade aos dois militantes presos, especialmente Maria Aparecida. Esta, além de muito jovem, estava com alguns problemas de saúde. O jornal Voz Operária informou da realização da Caravana de Tupã, organizada pela Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, cujo objetivo era visitar e prestar solidariedade à Maria Aparecida, presa fazia quatro meses em condições insalubres. A Caravana partiu no dia 23 de janeiro. Afirmava o artigo assinado por Carlota Gonçalves: “As mulheres demonstraram o alto espírito de combatividade. Iniciaram o seu trabalho no próprio trem que as conduzia, fazendo comícios e distribuindo volantes em todas as estações de parada, explicando ao povo o significado da caravana e pedindo-lhe apoio e colaboração. Realizaram um comício na Estação de Marília onde receberam calorosa manifestação de simpatia por parte de sua população”. Ao chegarem ao seu destino, as mulheres foram presas e algumas agredidas. Acabaram sendo colocadas de volta num trem para a cidade de São Paulo de onde vieram. (VO, 11 de março de 1950).
No dia 29 de março, embarcou no Rio outra caravana, composta por 20 mulheres representando a Federação das Mulheres do Brasil e a União Feminina do Distrito Federal. Objetivavam protestar contra a truculência do governadorpaulista que havia proibido as comemorações do Oito de Março. Tentaram falar com Adhemar, mas não foram recebidas. Passados alguns dias, Maria Aparecida e Honório Tavares foram libertados. Haviam passado seis meses e nove dias na prisão.
A história daquela jovem prosseguiria por caminhos imprevistos. Ela setornaria aluna do pintor e gravurista Ivan Serpa, destacando-se no mundo artístico. Na década de 1970,tornou-se uma das maiores pintoras naïf do Brasil, considerada sucessora de Djanira e Tarsila do Amaral. Morreu em 2006 com 77 anos de idade.
* Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
ALVES FILHO, Ivan. A pintura como Conto de Fadas. Brasília (DF): Fundação Astrojildo Pereira/ Abari, 2003.
LIMA, Airton Souza de. Vítimas do ódio: a militância comunista e as lutas camponesas no interior paulista. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.São Paulo: Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2010.
POMAR, Pedro Estevam da Rocha. A democracia Intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão ao Partido Comunista (1946-1950).São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2002.
WELCH, C.; GERALDO, S. Lutas camponesas no interior paulista: memórias de Irineu Luís de Moraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZEN, Erick Reis Godliauskas. Mataram Afonso Marma: imigração, comunismo e repressão. Rio de Janeiro: Planeta Azul, 2015.
O ano era 1949 e vivia-se em meio à guerra fria, que no ano seguinte se tornaria quente na Coreia. O Brasil, sob o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra, havia entrado firme – e prematuramente –nessa sombria era. Em maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cancelou o registro do Partido Comunista do Brasil (PCB) e, em janeiro do ano seguinte, foi cassado o mandato de seus parlamentares num golpe parlamentar. Desde então, aumentou a escalada da repressão aos “vermelhos”. Os seus principais dirigentes, tendo suas prisões preventivas decretadas, entraram na clandestinidade. Vários jornais, mesmo não pertencendo oficialmente ao partido comunista, passaram a ser constantemente censurados e empastelados pela polícia.
Assim, o governo Dutra teve como uma das suas marcas acentuadas a truculência contra a esquerda e os movimentos populares. Realizou aproximadamente 400 intervenções em sindicatos, visando a afastar as direções suspeitas de serem ligadas ao comunismo. As manifestações e greves foram proibidas e algumas dissolvidas à bala. O saldo da repressão governamental desmedida foi 55 militantes mortos e centenas de feridos.
No estado de São Paulo, a situação não diferia muito da do resto do país, mas havia um detalhe. Ali, os comunistas tinham apoiado a eleição do governador Adhemar de Barros pelo Partido Social Progressista (PSP), e inclusive eleito dois deputados federais por aquela legenda: Pedro Pomar e Diógenes Arruda Câmara. Ameaçado de cassação – entre outras coisas,pelo apoio recebido do PCB –, Adhemar passou a perseguir o antigo aliado eleitoral. Para agradar Dutra, tornou-se mais realista do que o próprio rei.
Nesse ambiente hostil, os comunistas mantiveram-se firmes na sua missão de organizar os camponeses pobres do interior. Esta era uma de suas tarefas mais difíceis devido à persistência do coronelismo, apoiado em milícias privadas e no poder oligárquico local. Mesmo assim, envolveram-se ativamente na preparação do Congresso de Trabalhadores Rurais da Alta Paulista, cujo objetivo era organizar uma União Camponesa naquela região do estado de São Paulo. Tupã deveria se constituir num dos polos desse perigoso empreendimento. Ali dominavam os grandes proprietários de terra. O mais famoso deles, por sua riqueza, seu poder e truculência,era Luiz Souza Leão, fundador da cidade.
Inicialmente, o congresso camponês estava planejado para ser realizado em maio em Marília; contudo, foi proibido pela polícia. Nesse processo Edgard de Almeida Martins, principal dirigente do Partido na área, terminou sendo preso. Mesmo assim os comunistas não desistiram da ideia. Dando curso a esse projeto arriscado, convocaram uma reunião clandestina com militantes da região em Tupã.
No dia 23 de setembro, Maria Aparecida Rodrigues chegou àquela cidade vinda de Santa Cruz. Tinha apenas 20 anos e sua missão era ajudar na preparação daquele encontro que daria os primeiros passos no sentido da fundação da tão sonhada entidade camponesa. A imprensa conservadora a intitulara “mocinha do barulho”, pois tinha “aprontado” num comício de Prestes Maia, candidato a governador pela UDN, na cidadezinha de Osvaldo Cruz. Sabendo que muitos camponeses iriam participar daquela manifestação política, por terem confundido Prestes Maia com o líder comunista Luiz Carlos Prestes, a jovem resolveu comparecer e, num determinado momento, pediu a palavraem nome das mulheres locais apoiadoras de Prestes. Não disse, porém, de qual Prestes se tratava. Para assombro geral, ela defendeu as candidaturas comunistas e terminou gritando “Viva a Paz!”, principal slogan do PCB naquele momento. Em seguida, desceu rapidamente do palanque e sumiu na multidão, protegida pelos seus camaradas.
Abro parênteses para falar um pouco da combativa Maria Aparecida. Filha de comunistas, nasceu em Brodowski, terra natal de Cândido Portinari, em 2 de junho de 1929. Depois de ter morado cerca de cinco anos em pequenas cidades em torno de Ribeirão Preto, mudou-se para Vera Cruz, na Alta Paulista. O pai era caixeiro-viajante, e aos 14 anos ela começou a acompanhá-lo pelo interior, chegando a trabalhar como boia-fria, colhendo algodão e café. Entre 1946 e 1947, aproximou-se do Partido Comunista do Brasil (PCB) e ajudou a fundar a União Feminina de Vera Cruz. Em julho de 1948, enviou uma carta à redação do Momento Feminino, congratulando-o pelo seu primeiro aniversário. No ano seguinte, participou, como única delegada de sua cidade, da 1ª Convenção Feminina do Estado de São Paulo.
Numa entrevista dada posteriormente ao mesmo Momento Feminino, descreveu a importância que teve aquele encontro de mulheres: “A I Convenção Feminina, realizada em 1949, trouxe-me para a verdadeira atividade da luta organizada; foi lendo os seus trabalhos, foi entrando em contato com mulheres lutadoras, que senti a necessidade de reforçar a minha atividade frente aos problemas femininos. (...) Terminada as atividades da Convenção, já me achava entrosada nas do Congresso da Paz, havendo tomado parte nas assembleias estadual e nacional. Assisti a cena vandálica da Polícia Especial na sede da UNE (...) e isto, como era natural, veio ativar em mim o propósito de não perder mais um minuto sequer na luta pela conquista de nossos direitos”. Continua ela: “Voltei a Santa Cruz mais orientada e com maiores experiências: havia adquirido maior confiança na luta do povo! Dediquei-me então à organização da mulher camponesa (...). Muitas coisas interessantes surgiram nas singelas reuniões daquelas humildes mulheres do campo.” (Momento Feminino, 2 de março de 1950). A I Convenção Feminina de São Paulo ocorreu entre 27 e 29 de março; ou seja, poucos meses antes de ela desembarcar em Tupã.
Segundo Airton Souza de Lima, “Dário de Paula, que viajava frequentemente pela Alta Paulista, recebia visitas de ‘companheiros comunistas camponeses’, em sua casa, na Fazenda Luar, em Tupã. Irineu de Moraes, o Índio, ligado à Direção do Partido no Estado, trazia as orientações, responsável que era pela articulação dos movimentos rurais no interior paulista (...). A casa de Dário (...) teria sido o lugar escolhido para a reunião pró-paz, objetivando a fundação da ‘Associação Camponesa do Estado de São Paulo’”. Maria Aparecida opinou que não era uma boa ideia fazer a reunião naquele lugar, pois era muito visado pelos fazendeiros e autoridades policiais da região. Mas, infelizmente, não se encontrou um local mais adequado e a reunião terminou por ser realizada na gleba de Dário.
Pouco mais de uma dezena de trabalhadores, sendo três de Tupã, se reuniu durante o dia 25 de setembro. O fato não passou despercebido. Tudo indica que a própria proprietária da fazenda denunciou-os à polícia. O delegado Renato Imparato rapidamente montou uma patrulha com oito homens e seguiu até o local. Chegaram à noitinha. Desceram das viaturas e se aproximaram sorrateiramente do casebre onde pouco antes ocorrera a reunião. Havia restado ainda algumas poucas pessoas, que viajariam de trem na manhã seguinte. A invasão policial caracterizou-se pela extrema violência, típica do período. Existem várias interpretações sobre o que teria ocorrido naquele momento. O resultado da ação repressiva foi três trabalhadores e um policial mortos. O acontecimento entraria para a história como a Chacina de Tupã.
Os militantes assassinados foram: Afonso Marma, operário de São Paulo; Pedro Godoy, marítimo de Santos; e Miguel Rossi, trabalhador rural de Garça. E o soldado Sebastião Jacinto Lima. A polícia e a imprensa, como sempre, buscaram jogar a responsabilidade da tragédia nas costas dos comunistas. Eles teriam recebido os policiais à bala. Nos dias seguintes, os jornais trouxeram fotos dos corpos ao lado das supostas armas que estariam usando na hora do conflito. Método comum até os dias de hoje.
Diante do juiz, o sargento Nilo Cipriano Oliveira, um dos participantes da operação, declarou que os revólveres e uma carabina haviam sido colocados propositalmente ao lado dos cadáveres e pertenciam à própria Delegacia. Além disso, depois das execuções, os policiais teriam atirado de dentro para fora da casa, visando a incriminar as vítimas e responsabilizá-las pelo início do tiroteio. Cipriano afirmou terem dado voz de prisão aos que estavam conversando ao lado do casebre. Um dos soldados tentara desarmar Miguel Rossi, e este reagira. Ato contínuo, o líder camponês foi executado pelos demais policiais. Os que ainda estavam na casa tentaram fugir e foram alvejados. Dois outros trabalhadores tombaram. Afonso Marma morreu no local e Godoy ficou gravemente ferido. O delegado não teve pressa de levá-lo ao hospital, onde faleceria no dia seguinte. As vítimas comunistas foram enterradas como indigentes embora portassem documentos. Enquanto isso, o enterro do soldado se transformou numa manifestação anticomunista.
O jornal Voz Operária descreveria assim a morte de Godoy: “O delegado Imparato impediu que fosse prestado socorro médico a Godoy. Dirigindo-se ao bravo proletário, o bandido policial disse ‘Você pode salvar-se. Mandarei tirar a bala, fazer os curativos se você der os nomes dos outros’. O cão policial propunha que trocasse sua vida pela honra. Pedro Godoy, dominando as dores atrozes que o consumiam, queimou o bandido com o lampejo de ódio do seu olhar. Escarrou na cara do policial e, reunindo suas últimas forças, deu-lhe um pontapé com a perna ferida. Depois se voltou para a parede, fechou os olhos e esperou a morte.” (VO, 25 de setembro de 1954). A cena teria sido vista por um enfermeiro que contou posteriormente a um membro do PCB.
No dia seguinte à Chacina, dois outros comunistas seriam presose levados ao DOPS, onde permaneceriam por onze dias, incomunicáveis: Maria Aparecida, a “mocinha do barulho”, e o sapateiro Honório Tavaresde Faria, militante em Marília. Em seis de outubro, foram transferidos para a cadeia de Tupã e processados pela Lei de Segurança Nacional. Dário, proprietário da casa, conseguiu escapar e comunicou à direção do PCB o que ocorrera.
O Partido Comunista e demais correntes democráticas denunciaram as violências ocorridas em Tupã – como parte de uma política repressiva mais ampla desencadeada pelos governos de Dutra e Adhemar de Barros. Um Manifesto ao povo de São Paulo dizia: “Os parlamentares e cidadãos abaixo-assinados (...) ainda mal refeitos da indignação que lhes causaram os bárbaros e desumanos acontecimentos de 25 de setembro em Tupã, onde, ultrapassando todos os limites do arbítrio e da ilegalidade, a polícia atirou mortalmente contra três honrados chefes de família, vêm pelo presente tornar público o seu protesto por tão violenta atitude tomada justamente por aqueles que têm o dever de evitar fatos dessa natureza. Proclamam sua irrestrita solidariedade ao povo de São Paulo e as famílias de Miguel Rossi, Afonso Marma e Pedro Godói que tombaram em Tupã, vítimas de um ataque brutal, quando no franco exercício dos direitos que a Constituição garante a todo cidadão”. Entre os que assinaram esse contundente protesto estão os deputados federais Euzébio Rocha e Pedro Pomar; os deputados estaduais Porfírio da Paz e Manoel de Nóbrega; e os vereadores da capital paulista Jânio Quadros e Cid Franco.
Dias depois a imprensa começou a divulgar a biografia dos comunistas mortos. Afonso Marma (24-01-1908) nasceu na Lituânia e chegou ao Brasil em 1927. Logo se vinculou ao Partido Comunista do Brasil e contribuiu para a organização da comunidade lituana, criando clubes e jornais desses imigrantes, em geral pró-soviéticos. Devido a seu trabalho militante, foi preso e deportado em julho de 1930. Trabalhou na Argentina e no Uruguai, também organizando os imigrantes lituanos. Voltou ao país em 1935. Continuou sua vida de operário em várias empresas, incluindo a Laminação de Metais em Utinga. Possivelmente, em meados de 1949, pela sua experiência, foi deslocado para ajudar na organização dos camponeses da Alta Paulista. Sua morte teve repercussão internacional, inclusive na Lituânia soviética.
Pedro Godoy (17-01-1920) era estivador na baixada santista e filiou-se ao PCB em 1946, durante o breve período de legalidade. Candidatou-se a vereador por aquele partido no município de Guarujá. Destacou-se nas greves de1947 e 1948. Perseguido, mudou-se para Alta Paulista. Ali se envolveu com as lutas camponesas. Miguel Rossi (14-09-1907) entrou para o Partido em 1933 e participou da ANL. Preso em Marília em 1936, permaneceu um ano no famigerado presídio Maria Zélia. Trabalhava e militava na cidade de Garça quando foi assassinado. (VO, 5 de abril de 1952).
Iniciou-se um movimento de solidariedade aos dois militantes presos, especialmente Maria Aparecida. Esta, além de muito jovem, estava com alguns problemas de saúde. O jornal Voz Operária informou da realização da Caravana de Tupã, organizada pela Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, cujo objetivo era visitar e prestar solidariedade à Maria Aparecida, presa fazia quatro meses em condições insalubres. A Caravana partiu no dia 23 de janeiro. Afirmava o artigo assinado por Carlota Gonçalves: “As mulheres demonstraram o alto espírito de combatividade. Iniciaram o seu trabalho no próprio trem que as conduzia, fazendo comícios e distribuindo volantes em todas as estações de parada, explicando ao povo o significado da caravana e pedindo-lhe apoio e colaboração. Realizaram um comício na Estação de Marília onde receberam calorosa manifestação de simpatia por parte de sua população”. Ao chegarem ao seu destino, as mulheres foram presas e algumas agredidas. Acabaram sendo colocadas de volta num trem para a cidade de São Paulo de onde vieram. (VO, 11 de março de 1950).
No dia 29 de março, embarcou no Rio outra caravana, composta por 20 mulheres representando a Federação das Mulheres do Brasil e a União Feminina do Distrito Federal. Objetivavam protestar contra a truculência do governadorpaulista que havia proibido as comemorações do Oito de Março. Tentaram falar com Adhemar, mas não foram recebidas. Passados alguns dias, Maria Aparecida e Honório Tavares foram libertados. Haviam passado seis meses e nove dias na prisão.
A história daquela jovem prosseguiria por caminhos imprevistos. Ela setornaria aluna do pintor e gravurista Ivan Serpa, destacando-se no mundo artístico. Na década de 1970,tornou-se uma das maiores pintoras naïf do Brasil, considerada sucessora de Djanira e Tarsila do Amaral. Morreu em 2006 com 77 anos de idade.
* Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
ALVES FILHO, Ivan. A pintura como Conto de Fadas. Brasília (DF): Fundação Astrojildo Pereira/ Abari, 2003.
LIMA, Airton Souza de. Vítimas do ódio: a militância comunista e as lutas camponesas no interior paulista. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.São Paulo: Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2010.
POMAR, Pedro Estevam da Rocha. A democracia Intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão ao Partido Comunista (1946-1950).São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2002.
WELCH, C.; GERALDO, S. Lutas camponesas no interior paulista: memórias de Irineu Luís de Moraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZEN, Erick Reis Godliauskas. Mataram Afonso Marma: imigração, comunismo e repressão. Rio de Janeiro: Planeta Azul, 2015.
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