Por João Feres Júnior, no site A terra é redonda:
O vídeo patrocinado pelo movimento Ceará Conservador com um clipe musical festejando a suposta reconciliação entre Bolsonaro e os nordestinos é um exemplo gritante do movimento mais significativo da política brasileira desde a eleição de 2018: a mudança de estratégia política do presidente. Ao som de um baião e com uma edição que lembram em tudo os clássicos vídeos de campanha de Lula, essa peça publicitária mostra Bolsonaro como o mais novo pai dos pobres nordestinos, com fartas referências ao Bolsa Família, a Deus e à figura do presidente.
Como já escrevi aqui e alhures, a tática da política bolsonarista foi até muito recentemente manter a mesma atitude a despeito da mudança de situação. O ex-capitão ganhou a eleição radicalizando à direita e falando somente para seu público. Eleito presidente, continuou a falar para seus seguidores e a hostilizar seus adversários políticos, a mídia e as instituições democráticas. Veio a pandemia e ele insistiu na tecla do conflito, exacerbando-o a ponto de produzir ameaças de ruptura institucional.
A continuidade não estava somente na forma da ação, mas no conteúdo de sua mensagem. Bolsonaro, qual uma vitrola quebrada (perdão pela referência antiquária), manteve a simplicidade de sua plataforma ao longo das mudanças situacionais. Venceu a eleição encarnando a figura do outsider, de campeão da antipolítica e do antipetismo, e continuou no governo a manifestar desprezo e ira contra o que chama de velha política. Ao trazer Sergio Moro para seu ministério, atraiu para si o público lavajateiro. Com Moro, a mensagem do (falso) outsider ganhou consistência, reforçando a redução da política à questão moral.
Imaginando-se protegido pela manutenção da forma e do conteúdo de sua estratégia política, Bolsonaro montou um governo que é um verdadeiro saco de gatos – combinando olavistas da chamada banda ideológica; militares de pijama saudosos dos tempos do AI-5; evangélicos ultraconservadores; e neoliberais radicais, congregados em torno da figura do ministro Paulo Guedes. O único atributo que unia esses grupos era negativo, qual seja a falta de competência para minimamente gerir o Estado brasileiro. Em um ano e meio de governo produziram somente destruição e desmonte. A incompetência se estendeu inclusive ao ministro da economia, cujo papel combinado com seus apoiadores do “mercado” era exatamente esse: “destruir e desmontar”. Nem isso o ex-colunista do jornal O Globo conseguiu fazer direito. Bolsonaro, contudo, parecia não se abalar com a falta de resultados, desde que tivesse condições de preservar a estratégia política que lhe parecia vitoriosa.
Mas, como já sabiam os gregos antigos, com o passar do tempo, tudo degenera. A manutenção da estratégia política no exercício da presidência roubou de Bolsonaro a capacidade de agendar o Congresso, como os estudos do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), projeto do qual sou um dos coordenadores, mostram repetidamente. Não bastasse algumas decisões de seu governo terem sido revertidas pelo Legislativo, o judiciário, particularmente o Supremo Tribunal Federal, começou a reagir às tentativas de Bolsonaro de governar à revelia da aristocracia togada, ou muitas vezes pregando contra ela. Se os conflitos com as casas do Congresso afetaram a governabilidade, aqueles com o judiciário foram além da governabilidade para atingir membros diletos do grupo de apoio político do presidente, inclusive dois de seus filhos. Ademais, em nome do combate às fake news, judiciário, legislativo e mídia passaram a atacar a rede alternativa de comunicação que tem sido a espinha dorsal da manutenção da popularidade do presidente.
No final de abril, Bolsonaro viria ainda a perder Sergio Moro, que saiu do governo acusando publicamente o presidente de tentar influir na Polícia Federal de maneira imoral e ilegal. A combinação desses fatores negativos, aliada a uma cobertura fartamente desfavorável por parte da grande imprensa, em um contexto de crise pandêmica, teve o efeito de causar dano forte à popularidade do presidente. Acossado, Bolsonaro resolveu finalmente se transformar.
Não sei precisar qual o dia exato, mas há aproximadamente duas semanas ele mudou completamente de atitude, passando a se apresentar em público de maneira mais serena, com sinais bastante visíveis de estar sob o efeito de uma boa dose de ansiolíticos. Sua aliança com o Centrão, que teve um começo bastante morno e incerto, começou a ganhar momento, com a nomeação de indicados dos partidos para ocupar cargos do primeiro e segundo escalão de bastante relevância simbólica e orçamentária.
O aloprado Weintraub, que há pouco contava com o apoio do presidente para inclusive sair de audiência no STF carregado nos braços das hostes bolsonaristas, foi defenestrado e tratado com frieza pelo líder em cerimonia de despedida vexaminosa. Agora os jornais noticiam que o ministro das relações exteriores, o olavista Ernesto Araújo, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aquele que usa metáforas ruralistas para falar de sua pasta, podem ser demitidos a qualquer momento. Completando a série de movimentos, o governo Bolsonaro anuncia o lançamento do “Renda Brasil”, um programa de renda mínima que visa a substituir o Bolsa Família.
Todos esses sinais apontam para uma mudança radical na estratégia política do presidente. Se a aliança com o Centrão foi interpretada como ato desesperado para barrar um impeachment, ela aos poucos começa a assumir ares de projeto de governabilidade. Ao calar os radicais olavistas, Bolsonaro também faz gesto para apaziguar o judiciário, que não nos esqueçamos vai agora ser liderado por Luiz Fux, aquele que dizem ter apelado para metáforas futebolísticas para conquistar uma vaga no Supremo.
Por fim, frente a perda de parte de sua base lavajateira, o presidente parece orquestrar uma campanha de cooptação massiva do eleitorado lulista, no Nordeste e alhures, por meio do Renda Brasil. Se é cedo para falar em realinhamento eleitoral, já há sinais concretos de mudança da base de apoio ao governo, com crescimento do apoio ao presidente na faixa mais baixa de renda, até dois salários mínimos, segundo pesquisa recente do DataFolha.
Há algum tempo escrevi texto acadêmico mostrando que apesar de ser chamado de populista, no Brasil e no exterior, Bolsonaro não apresentava algumas características fundamentais desse conceito, entre elas uma ideia forte de povo. Analisamos farto material de sua campanha e constatamos a falta desse elemento no discurso bolsonarista. Não que o conceito de populismo se preste a grandes empreitadas interpretativas, particularmente devido à maneira com a que foi apropriado e abusado no Brasil, como mostraram tão brilhantemente Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira.
Mas ao se lançar no combate à pobreza e à miséria, Bolsonaro começa a adquirir as características que são atribuídas pela literatura aos populistas de direita. Faltam ainda muitos elementos para que sua conversão total ocorra, mas a mudança de orientação já aconteceu e a direção parece ser essa. Se as contradições inerentes a sua nova postura, particularmente no que toca a agenda neoliberal de desmonte do Estado, vão permitir que ela se estabilize – isso são outros quinhentos. Infelizmente, a bola de cristal que comprei pela internet está vindo da China e a entrega está muito atrasada. Coisas da pandemia.
* João Feres Júnior é professor de ciência política do IESP-UERJ. É coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público (LEMEP).
Como já escrevi aqui e alhures, a tática da política bolsonarista foi até muito recentemente manter a mesma atitude a despeito da mudança de situação. O ex-capitão ganhou a eleição radicalizando à direita e falando somente para seu público. Eleito presidente, continuou a falar para seus seguidores e a hostilizar seus adversários políticos, a mídia e as instituições democráticas. Veio a pandemia e ele insistiu na tecla do conflito, exacerbando-o a ponto de produzir ameaças de ruptura institucional.
A continuidade não estava somente na forma da ação, mas no conteúdo de sua mensagem. Bolsonaro, qual uma vitrola quebrada (perdão pela referência antiquária), manteve a simplicidade de sua plataforma ao longo das mudanças situacionais. Venceu a eleição encarnando a figura do outsider, de campeão da antipolítica e do antipetismo, e continuou no governo a manifestar desprezo e ira contra o que chama de velha política. Ao trazer Sergio Moro para seu ministério, atraiu para si o público lavajateiro. Com Moro, a mensagem do (falso) outsider ganhou consistência, reforçando a redução da política à questão moral.
Imaginando-se protegido pela manutenção da forma e do conteúdo de sua estratégia política, Bolsonaro montou um governo que é um verdadeiro saco de gatos – combinando olavistas da chamada banda ideológica; militares de pijama saudosos dos tempos do AI-5; evangélicos ultraconservadores; e neoliberais radicais, congregados em torno da figura do ministro Paulo Guedes. O único atributo que unia esses grupos era negativo, qual seja a falta de competência para minimamente gerir o Estado brasileiro. Em um ano e meio de governo produziram somente destruição e desmonte. A incompetência se estendeu inclusive ao ministro da economia, cujo papel combinado com seus apoiadores do “mercado” era exatamente esse: “destruir e desmontar”. Nem isso o ex-colunista do jornal O Globo conseguiu fazer direito. Bolsonaro, contudo, parecia não se abalar com a falta de resultados, desde que tivesse condições de preservar a estratégia política que lhe parecia vitoriosa.
Mas, como já sabiam os gregos antigos, com o passar do tempo, tudo degenera. A manutenção da estratégia política no exercício da presidência roubou de Bolsonaro a capacidade de agendar o Congresso, como os estudos do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), projeto do qual sou um dos coordenadores, mostram repetidamente. Não bastasse algumas decisões de seu governo terem sido revertidas pelo Legislativo, o judiciário, particularmente o Supremo Tribunal Federal, começou a reagir às tentativas de Bolsonaro de governar à revelia da aristocracia togada, ou muitas vezes pregando contra ela. Se os conflitos com as casas do Congresso afetaram a governabilidade, aqueles com o judiciário foram além da governabilidade para atingir membros diletos do grupo de apoio político do presidente, inclusive dois de seus filhos. Ademais, em nome do combate às fake news, judiciário, legislativo e mídia passaram a atacar a rede alternativa de comunicação que tem sido a espinha dorsal da manutenção da popularidade do presidente.
No final de abril, Bolsonaro viria ainda a perder Sergio Moro, que saiu do governo acusando publicamente o presidente de tentar influir na Polícia Federal de maneira imoral e ilegal. A combinação desses fatores negativos, aliada a uma cobertura fartamente desfavorável por parte da grande imprensa, em um contexto de crise pandêmica, teve o efeito de causar dano forte à popularidade do presidente. Acossado, Bolsonaro resolveu finalmente se transformar.
Não sei precisar qual o dia exato, mas há aproximadamente duas semanas ele mudou completamente de atitude, passando a se apresentar em público de maneira mais serena, com sinais bastante visíveis de estar sob o efeito de uma boa dose de ansiolíticos. Sua aliança com o Centrão, que teve um começo bastante morno e incerto, começou a ganhar momento, com a nomeação de indicados dos partidos para ocupar cargos do primeiro e segundo escalão de bastante relevância simbólica e orçamentária.
O aloprado Weintraub, que há pouco contava com o apoio do presidente para inclusive sair de audiência no STF carregado nos braços das hostes bolsonaristas, foi defenestrado e tratado com frieza pelo líder em cerimonia de despedida vexaminosa. Agora os jornais noticiam que o ministro das relações exteriores, o olavista Ernesto Araújo, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aquele que usa metáforas ruralistas para falar de sua pasta, podem ser demitidos a qualquer momento. Completando a série de movimentos, o governo Bolsonaro anuncia o lançamento do “Renda Brasil”, um programa de renda mínima que visa a substituir o Bolsa Família.
Todos esses sinais apontam para uma mudança radical na estratégia política do presidente. Se a aliança com o Centrão foi interpretada como ato desesperado para barrar um impeachment, ela aos poucos começa a assumir ares de projeto de governabilidade. Ao calar os radicais olavistas, Bolsonaro também faz gesto para apaziguar o judiciário, que não nos esqueçamos vai agora ser liderado por Luiz Fux, aquele que dizem ter apelado para metáforas futebolísticas para conquistar uma vaga no Supremo.
Por fim, frente a perda de parte de sua base lavajateira, o presidente parece orquestrar uma campanha de cooptação massiva do eleitorado lulista, no Nordeste e alhures, por meio do Renda Brasil. Se é cedo para falar em realinhamento eleitoral, já há sinais concretos de mudança da base de apoio ao governo, com crescimento do apoio ao presidente na faixa mais baixa de renda, até dois salários mínimos, segundo pesquisa recente do DataFolha.
Há algum tempo escrevi texto acadêmico mostrando que apesar de ser chamado de populista, no Brasil e no exterior, Bolsonaro não apresentava algumas características fundamentais desse conceito, entre elas uma ideia forte de povo. Analisamos farto material de sua campanha e constatamos a falta desse elemento no discurso bolsonarista. Não que o conceito de populismo se preste a grandes empreitadas interpretativas, particularmente devido à maneira com a que foi apropriado e abusado no Brasil, como mostraram tão brilhantemente Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira.
Mas ao se lançar no combate à pobreza e à miséria, Bolsonaro começa a adquirir as características que são atribuídas pela literatura aos populistas de direita. Faltam ainda muitos elementos para que sua conversão total ocorra, mas a mudança de orientação já aconteceu e a direção parece ser essa. Se as contradições inerentes a sua nova postura, particularmente no que toca a agenda neoliberal de desmonte do Estado, vão permitir que ela se estabilize – isso são outros quinhentos. Infelizmente, a bola de cristal que comprei pela internet está vindo da China e a entrega está muito atrasada. Coisas da pandemia.
* João Feres Júnior é professor de ciência política do IESP-UERJ. É coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público (LEMEP).
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