Nesta entrevista exclusiva, o líder camponês e indígena David Choquehuanca, candidato à vice-presidência da Bolívia pelo Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP) denuncia “o assalto ao lítio, recurso natural estratégico do qual o país tem a maior reserva do planeta, como o que está por detrás da deposição do presidente Evo Morales”.
Chanceler do país andino de 2006 até 2019, o dirigente assevera que a ação militar e a fraude com a participação da Organização dos Estados Americanos (OEA) são dois lados da mesma moeda do “golpe planificado, financiado e orquestrado pelos Estados Unidos, que pôs a saúde, a economia e a política da Bolívia em estado de coma”.
Diante do desastre que será herdado após as eleições, Choquehuanca defende que “o próximo governo deve ser um governo de unidade nacional”, para se combater a descolonização e voltar “a industrializar os nossos recursos naturais, de lhes dar valor agregado e redistribuir seus benefícios ao nosso povo”.
Boa leitura!
Qual a sua avaliação da grave crise que atravessa a Bolívia, dirigida por um governo que tomou o poder de assalto em novembro do ano passado?
Os bolivianos e bolivianas estamos vivendo dias de tristeza, de pranto e perseguição. Desde o golpe de Estado nada está bem, tudo anda mal. Nossa saúde está em estado de coma, não somente pela crise sanitária, mas a saúde econômica, a saúde política, a saúde social.
Para enfrentar a crise sanitária nos disseram que iriam comprar 500 respiradores que nunca chegaram. Apareceram somente 170 respiradores que não servem, que não funcionam e ainda foram superfaturados. Nos informaram que cada um deles custaria US$ 8 mil (R$ 41.700) colocados na Bolívia, pelos quais pagaram US$ 28 mil (R$ 146 mil). É muita corrupção! Estamos falando de quase 70 casos de corrupção nestes poucos meses, e são inúmeros os exemplos. Máscaras que custam no mercado entre 9 e 13 bolivianos (R$ 6,50 e R$ 10,00) foram compradas por 80 bolivianos (R$ 60,00). Não há equipamentos de biossegurança nem testes suficientes, nem reativos para o coronavírus.
A quarentena está sendo utilizada para desatar uma campanha de terror, para desatar uma campanha de amedrontamento, para calar a liberdade de expressão, para perseguir os líderes, para meter medo. Há muita corrupção. Há muita improvisação.
E o que se pode fazer para combater esta pandemia que também ataca a democracia, como estás denunciando?
O que o povo está fazendo é se auto-organizar. Estamos nos organizando com a participação das associações comunitárias e dos movimentos sociais porque sabemos que não interessa ao governo atual a saúde, não interessa a democracia, os recursos naturais e o fortalecimento das nossas empresas estratégicas.
Diante disso, o que o povo boliviano está fazendo é se auto-organizar. Há um processo de despertar de consciência, de despertar dos bairros e das comunidades. Esta crise está permitindo o surgimento de novas lideranças, de novos atores e é bem importante que possam trabalhar junto, que tenham amor ao seu povo, que tenham amor à sua Pátria, que tenham compromisso com a justiça social, com a saúde do povo boliviano.
Acredito que este momento sombrio de incertezas e de corrupção também é uma oportunidade para refletir, gerar propostas, encarar esta crise conjuntamente, superando todos os erros que tenhamos cometidos no passado.
Em seu diálogo com os bolivianos está sempre presente a cultura da unidade contra a divisão praticada pelas elites, que servem aos interesses das transnacionais e do FMI. Como romper com a lógica da dependência?
Esta crise está sendo vivida não somente pelos bolivianos, mas por irmãos de todo o continente e de todo o mundo. Então é hora de trabalhar de forma conjunta problemas que são globais. Nenhum país tem a capacidade de enfrentar de forma isolada problemas gerados por este modelo de desenvolvimento capitalista ocidental. E hoje vivemos as consequências da sua aplicação: pobreza e crise.
Quando chegamos ao poder começamos um processo de desmontagem deste Estado colonial que nos trouxe tanto mal. O colonialismo não se construiu somente na Bolívia e se fez para nos humilhar, marginalizar, esmagar, pisotear, dividir, para saquear nossos recursos naturais. Esse colonialismo foi construído durante 500 anos e nós decidimos desmontá-lo. Decidimos construir o que é nosso, com pensamento próprio, com pensamento descolonizador. Por isso falamos de processo de mudanças, porque queremos transformar, construir uma nova Bolívia, uma nova vida, uma nova sociedade. E construir novamente a integração, a unidade, a liberdade, fortalecer nossa soberania.
E quando estamos falando em construir a integração, a unidade e a irmandade, não me refiro somente aos seres humanos. Buscamos voltar a ser este ser humano integral, parte da natureza. Pensar não somente em nós mesmos, mas em tudo o que existe. Por isso dizemos que é bem importante voltar a ser Jiwasa, que frente à crise global do capitalismo, é preciso recolher outros valores e princípios, aos que resistiram durante 500 anos. Estamos falando de Jiwasa, que é um código, um princípio que nossos avós preservaram, que são as culturas milenares. Não sou eu, somos nós. Jiwasa é a morte do egocentrismo e do antropocentrismo, pensar na cultura da vida, da unidade, da paz, da irmandade e da harmonia.
O que estás defendendo se contrapõe frontalmente à declaração de Elon Musk, o CEO da Tesla, do “golpearemos a quem queiramos”, que assumiu sua intervenção recentemente na Bolívia. Como avalias isso?
Assim pensam eles. Todos os países que possuímos recursos naturais corremos o risco de receber a intervenção destas transnacionais. O mundo foi infectado pela cobiça, não só pelo coronavírus, mas pela ambição pessoal e pelo individualismo. Estas transnacionais não pensam na vida, não pensam em nossos povos. As declarações deste senhor mostram que o golpe foi planificado, financiado e orquestrado pelos Estados Unidos. Este golpe não foi só contra a nossa democracia, mas contra todo o nosso continente, foi dirigido contra esse processo de mudanças que denominamos Revolução Cultural e Democrática. O golpe foi dirigido contra o processo de descolonização, contra a decisão de industrializar nós mesmos nossos recursos naturais, de lhes dar valor agregado, de redistribuir seus benefícios para toda a população. O golpe foi à luta contra a pobreza. Estávamos num processo de ataque sistemático para que não houvesse pobres, com resultados conhecidos pela comunidade internacional. Mas não só o senhor Elon Musk nos mostrou que este golpe foi financiado, também Richard Black [senador republicano] admitiu que Trump promoveu o golpe.
Ou seja, são interesses das transacionais que estão atrás dos nossos recursos. No caso do lítio, a Bolívia possui a maior parte deste recurso estratégico energético do planeta. Não querem que nossos povos manejem seus recursos estratégicos, e para isso precisam nos dividir e esquartejar. Utilizam para isso organismos internacionais e não faltam quem se preste a esses interesses obscuros, neste caso a esses interesses brancos.
O senhor Luis Almagro [secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)], por exemplo, tem sido o principal operador do golpe. Ocorreram quase 40 mortes, há muitos presos e estamos vendo as consequências do golpe de Estado. Há muita fragilidade nas instituições e um processo de desinstitucionalização, mas o importante é que o povo boliviano saiba que este golpe veio de fora, não houve fraude. A fraude foi feita pela OEA, que danificou nossa democracia. Seguramente estes fatos não podem ficar impunes, temos que fazer algo.
E o que fazer agora para que ocorram eleições livres e limpas e que se respeitem os resultados? Como evitar que se cometa uma nova fraude como a realizada por Almagro, que atuou como agente desestabilizador?
É importante o acompanhamento da comunidade internacional e que nossos povos se organizem e construam a unidade; que a esquerda possa contribuir para a construção de uma só frente, da unidade com os movimentos sociais. É importante escutar os nossos povos, dialogar.
Os mineiros necessitam escutar os professores, os professores precisam escutar os médicos, os médicos precisam escutar os policiais, os policiais precisam escutar os artistas. As lideranças necessitam escutar suas comunidades e fazer o que nossos povos querem: a última palavra deve ser a dos nossos povos, que são sábios. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus, é construir unidade, é construir compromisso com a comunidade. É deixar de lado os interesses pessoais ou setoriais, é deixar de lado inclusive os interesses partidários e nos colocar a serviço dos nossos povos.
É hora de pensar no país e tomar decisões não somente em função do poder político, econômico ou cultural. Temos que acreditar em nossos povos. Os líderes têm que acreditar no povo, escutar os seus povos. Só assim vamos superar qualquer crise, venha de onde vier. Não somente temos que nos organizar para participar das eleições. Os sujeitos da construção, da irmandade, do fortalecimento das nossas democracias, os sujeitos que queiram construir nossa democracia, proteger nossos recursos naturais, têm que ser o povo. Neste caso, os mineiros, os aimarás, os quéchuas, os operários, o povo trabalhador.
Não devemos deixar a condução de um país somente nas mãos de burocratas. As decisões políticas têm que ser adotadas com a participação de todos e todas, de todos os movimentos sociais, do povo. Logo virão os burocratas, mas para levar adiante as decisões que tenham sido tomadas com plena participação dos nossos povos.
Há muitas denúncias de que o governo de Jeanine Áñez tem instrumentalizado os meios de comunicação e silenciado os que não se submetem à sua política. O que está ocorrendo?
É importante fortalecer o direito de acesso à informação. Muitos dos meios de comunicação foram cúmplices do golpe de Estado, outros perseguidos, manipulados ou calados. É necessário que a mídia fale a verdade. Hoje os meios não informam, fazem publicidade, e isso é decepcionante e triste. Uns poucos resistem e jogam o seu papel, como a Telesul, que foram fechados no país. Porque este é um governo que persegue a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Querem prender e amedrontar. Em nosso código temos uma palavra que significa obrigação de dialogar, obrigação de comunicarmos, necessitamos ter um povo informado.
Com o Arce como ministro da economia, a Bolívia foi durante vários anos o país com maior crescimento do PIB da América Latina, baseado fundamentalmente no desenvolvimento do mercado interno. Como seu vice-presidente, o que fazer para seguir esse caminho e aprofundar o modelo de mais salário, empregos e direitos, tendo consciência de que vão herdar um país devastado e em meio a uma pandemia?
Primeiro precisamos nos organizar e ganhar as eleições. Depois governar sem revanchismo, convocando todos os bolivianos. O próximo governo deve ser um governo de unidade nacional, de reconciliação, de concertação. O país que vamos herdar estará um desastre, não somente pela situação interna, mas pela externa.
Dizem que a próxima pandemia se chamará “pandemia da fome” e os organismos internacionais responsáveis por esses dados falam que morrerão diariamente 300 mil pessoas devido à fome. Será um desafio não só para os bolivianos, mas para o mundo.
Juntos teremos que enfrentar qualquer situação de crise, somente assim poderemos recuperar a estabilidade econômica. Necessitamos um modelo de Estados fortes, como tem dito a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e afirmado vários outros organismos. Agora, mais do que nunca, precisamos de Estados fortes para enfrentar qualquer crise depois da pandemia.
O MAS-IPSP investiu recursos no fortalecimento do Estado, na formação e na capacitação, medidas que foram sendo desmanteladas pelo atual governo. Por onde recomeçar?
A Bolívia está estancada. Necessitamos colocar nosso Estado em movimento, colocar o nosso país e nossa nação em movimento, e para isso precisamos de um amplo acordo entre todos os bolivianos, priorizar e identificar ações conjuntas.
A agricultura é um ponto que necessita atenção, para garantir a alimentação da população. Em segundo lugar, precisamos de investimento na educação. Claro que vamos continuar construindo rodovias, investindo na infraestrutura, completando tudo o que já estava se fazendo para integrar o país. E também precisamos investir no comércio exterior. Tudo deve ser feito em função dos interesses dos bolivianos. Precisamos estar orientados fundamentalmente pela cultura da vida, da unidade e da integração. Necessitamos construir esperanças e certezas.
Uma mensagem a esses mais de 200 mil bolivianos que vivem no Brasil, 45 mil eleitores que garantiram mais de 70% dos votos no MAS nas últimas eleições.
Um dia os bolivianos e os brasileiros precisarão apagar nossas fronteiras. Um dia vamos ter que construir integração, unidade, para poder falar de igual para com a China, com a União Europeia ou qualquer um. Porque isolados não poderemos falar de igual para igual com outros continentes. Assim como necessitamos construir unidade na Bolívia, necessitamos construir irmandade no nosso continente. E lutar para garantir todos os direitos no continente, para nossos irmãos bolivianos que estão no Brasil e em outros lugares.
Tudo é para que possamos construir nossos sonhos, em nossa terra. Para que nós bolivianos possamos sair, entrar, decidir onde queremos viver. Porém em condições dignas, onde se respeitem nossos direitos trabalhistas, nossos direitos humanos. Por isso é importante a construção da unidade, da irmandade. E nós bolivianos vamos recuperar a nossa democracia, que hoje está em risco. Nossos recursos naturais, nossa educação, nossa saúde, nossas empresas estão em risco.
Acredito que nós bolivianos, os que estão fora e os que estão aqui dentro, vamos recuperar o nosso caminho, retomar o processo de transformações e construir novamente a estabilidade e a irmandade. Um dia nossos povos e nós mesmos vamos nos governar. E nos governarmos é devolver às nossas organizações e às nossas comunidades a capacidade de resolver os problemas, e não esperar que outros os resolvam por nós.
Este processo é para despertar a energia comunal, para acreditar em nós mesmos, governar a nós mesmos, governar com leis feitas por nós mesmos, para defender o interesse da nossa pátria, da nossa nação.
Boa leitura!
Qual a sua avaliação da grave crise que atravessa a Bolívia, dirigida por um governo que tomou o poder de assalto em novembro do ano passado?
Os bolivianos e bolivianas estamos vivendo dias de tristeza, de pranto e perseguição. Desde o golpe de Estado nada está bem, tudo anda mal. Nossa saúde está em estado de coma, não somente pela crise sanitária, mas a saúde econômica, a saúde política, a saúde social.
Para enfrentar a crise sanitária nos disseram que iriam comprar 500 respiradores que nunca chegaram. Apareceram somente 170 respiradores que não servem, que não funcionam e ainda foram superfaturados. Nos informaram que cada um deles custaria US$ 8 mil (R$ 41.700) colocados na Bolívia, pelos quais pagaram US$ 28 mil (R$ 146 mil). É muita corrupção! Estamos falando de quase 70 casos de corrupção nestes poucos meses, e são inúmeros os exemplos. Máscaras que custam no mercado entre 9 e 13 bolivianos (R$ 6,50 e R$ 10,00) foram compradas por 80 bolivianos (R$ 60,00). Não há equipamentos de biossegurança nem testes suficientes, nem reativos para o coronavírus.
A quarentena está sendo utilizada para desatar uma campanha de terror, para desatar uma campanha de amedrontamento, para calar a liberdade de expressão, para perseguir os líderes, para meter medo. Há muita corrupção. Há muita improvisação.
E o que se pode fazer para combater esta pandemia que também ataca a democracia, como estás denunciando?
O que o povo está fazendo é se auto-organizar. Estamos nos organizando com a participação das associações comunitárias e dos movimentos sociais porque sabemos que não interessa ao governo atual a saúde, não interessa a democracia, os recursos naturais e o fortalecimento das nossas empresas estratégicas.
Diante disso, o que o povo boliviano está fazendo é se auto-organizar. Há um processo de despertar de consciência, de despertar dos bairros e das comunidades. Esta crise está permitindo o surgimento de novas lideranças, de novos atores e é bem importante que possam trabalhar junto, que tenham amor ao seu povo, que tenham amor à sua Pátria, que tenham compromisso com a justiça social, com a saúde do povo boliviano.
Acredito que este momento sombrio de incertezas e de corrupção também é uma oportunidade para refletir, gerar propostas, encarar esta crise conjuntamente, superando todos os erros que tenhamos cometidos no passado.
Em seu diálogo com os bolivianos está sempre presente a cultura da unidade contra a divisão praticada pelas elites, que servem aos interesses das transnacionais e do FMI. Como romper com a lógica da dependência?
Esta crise está sendo vivida não somente pelos bolivianos, mas por irmãos de todo o continente e de todo o mundo. Então é hora de trabalhar de forma conjunta problemas que são globais. Nenhum país tem a capacidade de enfrentar de forma isolada problemas gerados por este modelo de desenvolvimento capitalista ocidental. E hoje vivemos as consequências da sua aplicação: pobreza e crise.
Quando chegamos ao poder começamos um processo de desmontagem deste Estado colonial que nos trouxe tanto mal. O colonialismo não se construiu somente na Bolívia e se fez para nos humilhar, marginalizar, esmagar, pisotear, dividir, para saquear nossos recursos naturais. Esse colonialismo foi construído durante 500 anos e nós decidimos desmontá-lo. Decidimos construir o que é nosso, com pensamento próprio, com pensamento descolonizador. Por isso falamos de processo de mudanças, porque queremos transformar, construir uma nova Bolívia, uma nova vida, uma nova sociedade. E construir novamente a integração, a unidade, a liberdade, fortalecer nossa soberania.
E quando estamos falando em construir a integração, a unidade e a irmandade, não me refiro somente aos seres humanos. Buscamos voltar a ser este ser humano integral, parte da natureza. Pensar não somente em nós mesmos, mas em tudo o que existe. Por isso dizemos que é bem importante voltar a ser Jiwasa, que frente à crise global do capitalismo, é preciso recolher outros valores e princípios, aos que resistiram durante 500 anos. Estamos falando de Jiwasa, que é um código, um princípio que nossos avós preservaram, que são as culturas milenares. Não sou eu, somos nós. Jiwasa é a morte do egocentrismo e do antropocentrismo, pensar na cultura da vida, da unidade, da paz, da irmandade e da harmonia.
O que estás defendendo se contrapõe frontalmente à declaração de Elon Musk, o CEO da Tesla, do “golpearemos a quem queiramos”, que assumiu sua intervenção recentemente na Bolívia. Como avalias isso?
Assim pensam eles. Todos os países que possuímos recursos naturais corremos o risco de receber a intervenção destas transnacionais. O mundo foi infectado pela cobiça, não só pelo coronavírus, mas pela ambição pessoal e pelo individualismo. Estas transnacionais não pensam na vida, não pensam em nossos povos. As declarações deste senhor mostram que o golpe foi planificado, financiado e orquestrado pelos Estados Unidos. Este golpe não foi só contra a nossa democracia, mas contra todo o nosso continente, foi dirigido contra esse processo de mudanças que denominamos Revolução Cultural e Democrática. O golpe foi dirigido contra o processo de descolonização, contra a decisão de industrializar nós mesmos nossos recursos naturais, de lhes dar valor agregado, de redistribuir seus benefícios para toda a população. O golpe foi à luta contra a pobreza. Estávamos num processo de ataque sistemático para que não houvesse pobres, com resultados conhecidos pela comunidade internacional. Mas não só o senhor Elon Musk nos mostrou que este golpe foi financiado, também Richard Black [senador republicano] admitiu que Trump promoveu o golpe.
Ou seja, são interesses das transacionais que estão atrás dos nossos recursos. No caso do lítio, a Bolívia possui a maior parte deste recurso estratégico energético do planeta. Não querem que nossos povos manejem seus recursos estratégicos, e para isso precisam nos dividir e esquartejar. Utilizam para isso organismos internacionais e não faltam quem se preste a esses interesses obscuros, neste caso a esses interesses brancos.
O senhor Luis Almagro [secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)], por exemplo, tem sido o principal operador do golpe. Ocorreram quase 40 mortes, há muitos presos e estamos vendo as consequências do golpe de Estado. Há muita fragilidade nas instituições e um processo de desinstitucionalização, mas o importante é que o povo boliviano saiba que este golpe veio de fora, não houve fraude. A fraude foi feita pela OEA, que danificou nossa democracia. Seguramente estes fatos não podem ficar impunes, temos que fazer algo.
E o que fazer agora para que ocorram eleições livres e limpas e que se respeitem os resultados? Como evitar que se cometa uma nova fraude como a realizada por Almagro, que atuou como agente desestabilizador?
É importante o acompanhamento da comunidade internacional e que nossos povos se organizem e construam a unidade; que a esquerda possa contribuir para a construção de uma só frente, da unidade com os movimentos sociais. É importante escutar os nossos povos, dialogar.
Os mineiros necessitam escutar os professores, os professores precisam escutar os médicos, os médicos precisam escutar os policiais, os policiais precisam escutar os artistas. As lideranças necessitam escutar suas comunidades e fazer o que nossos povos querem: a última palavra deve ser a dos nossos povos, que são sábios. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus, é construir unidade, é construir compromisso com a comunidade. É deixar de lado os interesses pessoais ou setoriais, é deixar de lado inclusive os interesses partidários e nos colocar a serviço dos nossos povos.
É hora de pensar no país e tomar decisões não somente em função do poder político, econômico ou cultural. Temos que acreditar em nossos povos. Os líderes têm que acreditar no povo, escutar os seus povos. Só assim vamos superar qualquer crise, venha de onde vier. Não somente temos que nos organizar para participar das eleições. Os sujeitos da construção, da irmandade, do fortalecimento das nossas democracias, os sujeitos que queiram construir nossa democracia, proteger nossos recursos naturais, têm que ser o povo. Neste caso, os mineiros, os aimarás, os quéchuas, os operários, o povo trabalhador.
Não devemos deixar a condução de um país somente nas mãos de burocratas. As decisões políticas têm que ser adotadas com a participação de todos e todas, de todos os movimentos sociais, do povo. Logo virão os burocratas, mas para levar adiante as decisões que tenham sido tomadas com plena participação dos nossos povos.
Há muitas denúncias de que o governo de Jeanine Áñez tem instrumentalizado os meios de comunicação e silenciado os que não se submetem à sua política. O que está ocorrendo?
É importante fortalecer o direito de acesso à informação. Muitos dos meios de comunicação foram cúmplices do golpe de Estado, outros perseguidos, manipulados ou calados. É necessário que a mídia fale a verdade. Hoje os meios não informam, fazem publicidade, e isso é decepcionante e triste. Uns poucos resistem e jogam o seu papel, como a Telesul, que foram fechados no país. Porque este é um governo que persegue a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Querem prender e amedrontar. Em nosso código temos uma palavra que significa obrigação de dialogar, obrigação de comunicarmos, necessitamos ter um povo informado.
Com o Arce como ministro da economia, a Bolívia foi durante vários anos o país com maior crescimento do PIB da América Latina, baseado fundamentalmente no desenvolvimento do mercado interno. Como seu vice-presidente, o que fazer para seguir esse caminho e aprofundar o modelo de mais salário, empregos e direitos, tendo consciência de que vão herdar um país devastado e em meio a uma pandemia?
Primeiro precisamos nos organizar e ganhar as eleições. Depois governar sem revanchismo, convocando todos os bolivianos. O próximo governo deve ser um governo de unidade nacional, de reconciliação, de concertação. O país que vamos herdar estará um desastre, não somente pela situação interna, mas pela externa.
Dizem que a próxima pandemia se chamará “pandemia da fome” e os organismos internacionais responsáveis por esses dados falam que morrerão diariamente 300 mil pessoas devido à fome. Será um desafio não só para os bolivianos, mas para o mundo.
Juntos teremos que enfrentar qualquer situação de crise, somente assim poderemos recuperar a estabilidade econômica. Necessitamos um modelo de Estados fortes, como tem dito a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e afirmado vários outros organismos. Agora, mais do que nunca, precisamos de Estados fortes para enfrentar qualquer crise depois da pandemia.
O MAS-IPSP investiu recursos no fortalecimento do Estado, na formação e na capacitação, medidas que foram sendo desmanteladas pelo atual governo. Por onde recomeçar?
A Bolívia está estancada. Necessitamos colocar nosso Estado em movimento, colocar o nosso país e nossa nação em movimento, e para isso precisamos de um amplo acordo entre todos os bolivianos, priorizar e identificar ações conjuntas.
A agricultura é um ponto que necessita atenção, para garantir a alimentação da população. Em segundo lugar, precisamos de investimento na educação. Claro que vamos continuar construindo rodovias, investindo na infraestrutura, completando tudo o que já estava se fazendo para integrar o país. E também precisamos investir no comércio exterior. Tudo deve ser feito em função dos interesses dos bolivianos. Precisamos estar orientados fundamentalmente pela cultura da vida, da unidade e da integração. Necessitamos construir esperanças e certezas.
Uma mensagem a esses mais de 200 mil bolivianos que vivem no Brasil, 45 mil eleitores que garantiram mais de 70% dos votos no MAS nas últimas eleições.
Um dia os bolivianos e os brasileiros precisarão apagar nossas fronteiras. Um dia vamos ter que construir integração, unidade, para poder falar de igual para com a China, com a União Europeia ou qualquer um. Porque isolados não poderemos falar de igual para igual com outros continentes. Assim como necessitamos construir unidade na Bolívia, necessitamos construir irmandade no nosso continente. E lutar para garantir todos os direitos no continente, para nossos irmãos bolivianos que estão no Brasil e em outros lugares.
Tudo é para que possamos construir nossos sonhos, em nossa terra. Para que nós bolivianos possamos sair, entrar, decidir onde queremos viver. Porém em condições dignas, onde se respeitem nossos direitos trabalhistas, nossos direitos humanos. Por isso é importante a construção da unidade, da irmandade. E nós bolivianos vamos recuperar a nossa democracia, que hoje está em risco. Nossos recursos naturais, nossa educação, nossa saúde, nossas empresas estão em risco.
Acredito que nós bolivianos, os que estão fora e os que estão aqui dentro, vamos recuperar o nosso caminho, retomar o processo de transformações e construir novamente a estabilidade e a irmandade. Um dia nossos povos e nós mesmos vamos nos governar. E nos governarmos é devolver às nossas organizações e às nossas comunidades a capacidade de resolver os problemas, e não esperar que outros os resolvam por nós.
Este processo é para despertar a energia comunal, para acreditar em nós mesmos, governar a nós mesmos, governar com leis feitas por nós mesmos, para defender o interesse da nossa pátria, da nossa nação.
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