quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Eleição nos EUA e a porta dos fundos

Por Frei Betto, em seu site:


Ao me deparar com o noticiário, pergunto se a humanidade retrocedeu. Ao assistir ao debate Trump X Biden cheguei à conclusão de que o destino do mundo está, hoje, entregue majoritariamente a gente irresponsável, que não tem o menor pudor de enfatizar que o seu principal compromisso é com o sistema financeiro, ainda que isso se traduza em fome, mortes e devastação ambiental.

Biden me parece menos ruim do que Trump. Há décadas não me iludo com o caráter dos ocupantes da Casa Branca. Kennedy, tão proclamado como democrata, bom rapaz e católico, era um arrivista. No livro “O lado negro de Camelot”, Seymour M. Hersh conta que, em 1960, o pai de Kennedy se reuniu com o líder mafioso Sam Giancana, a quem prometeu que seu filho, uma vez presidente, faria vista grossa para a máfia caso esta canalizasse dinheiro para a campanha eleitoral. Esse acordo, diz Hersh, favoreceu os votos decisivos em Illinois.

Ao assumir a presidência, em 1961, o número de assessores estadunidenses no Vietnam não passava de algumas centenas, que Kennedy logo multiplicou para 16 mil. Pouco antes da invasão de Cuba por tropas mercenárias monitoradas pela CIA, no mesmo ano, Kennedy aprovou um plano para assassinar Fidel Castro. E quando a invasão ocorreu, o apoio aéreo prometido por ele aos exilados anticastristas, crucial para o sucesso do desembarque na Baía dos Porcos, foi cancelado. Hersh afirma que a decisão do presidente representou para os mercenários “uma sentença de morte”.

Obama, que recebeu imerecidamente o Nobel da Paz (2009), foi o primeiro presidente dos EUA a governar por oito anos sem que o país estivesse um único dia sem envolvimento em guerras. Coube a ele dar prosseguimento às agressões ao Iraque e Afeganistão e iniciar os conflitos com Síria, Líbia, Somália, Paquistão e Iêmen.

Apesar disso, os grandes veículos da mídia ocidental, quando detinham a hegemonia da narrativa, maquiaram as imagens de Kennedy e Obama como “gente boa”. Isso acabou. Porque agora as redes digitais quebraram aquela hegemonia e, de alguma maneira, democratizaram a informação (e também a desinformação) ao abrir espaço à versão das vítimas.

Isso é desesperador para os donos do poder, porque permite a todos ver que “o rei está nu”. Agora que os protocolos são rompidos, sabemos todos que parcela considerável da população mundial está em mãos de irresponsáveis e imaturos, como Trump (EUA), Bolsonaro (Brasil), Erdogan (Turquia), Duterte (Filipinas), Orbán (Hungria), Modi (Índia) e Morawieck (Polônia).

Esse populismo sem nenhum apreço pela verdade e pelos fatos não é propriamente fruto das redes digitais, e sim de uma cultura forjada na convicção de que o capital privado é a prioridade absoluta. Portanto, os valores éticos servem apenas para adornar a retórica.

Esse descaramento lembra uma família de corruptos que, dotada de modos requintados, recebe convidados para um jantar de gala. Estes miram a casa-mundo apenas pela impressão causada pelo viçoso jardim e a luxuosa sala de visitas. Mas, agora, graças às redes digitais, há convidados que também ingressam pela porta dos fundos, onde o lixo se acumula. E, no fim da noite, surpreendem o anfitrião agredindo a mulher; a faxineira obrigada a limpar o vômito dos bêbados; os seguranças da mansão jantando a quentinha trazida pela empresa para a qual trabalham, embora tenham sobrado faisões e lagostas nas travessas de prata.

É esse mundo escancarado pela porta dos fundos que nos faz assistir, indignados, dois homens que disputam o poder do mais poderoso império de todos os tempos – os EUA – trocando disparates como dois garotos que, no recreio da escola, discutem aos berros qual de suas famílias ostenta o carro mais possante.

As redes digitais funcionam como lupas. E ao nos aproximar dessas figuras histriônicas, confirmam o que canta Caetano Veloso em “Vaca profana” - “de perto ninguém é normal”. E, infelizmente, esses líderes jamais dão ouvidos aos versos de Billy Blanco em “A banca do distinto”: “Não fala com pobre, / não dá mão a preto / não carrega embrulho. / Pra que tanta pose, doutor? / Pra que esse orgulho? (...) / A vaidade é assim, / põe o tonto no alto / e retira a escada, / mas fica por perto esperando sentada / mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão”.

* Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros. Site e livraria virtual: www.freibetto.org

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