O Brasil está longe da normalidade, disse o presidente da república Jair Bolsonaro em discurso a militares em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na última quinta-feira dia 27 de maio. Não foi promessa nem vaticínio. Mas diagnóstico. O presidente acerta. Encontramo-nos em direção da consumação do estado de exceção. Faltou dizer que ele é o responsável porque esta situação decorre de sua agenda política de caos, destruição e morte. Há um nome em ciência política para este tipo de programa de governo: necropolítica. O regime de exceção – oposto à normalidade democrática que se anuncia na Constituição – é alimentado pelo conflito, a discórdia, o embate constante e sistemático contra inimigos que podem ser pessoas vivas ou mortas, ideias presentes ou passadas, instituições públicas ou privadas, nações estrangeiras ou cidadãos do próprio país: um adversário político, o meio ambiente, o STF, Leonardo de Caprio, a urna eletrônica, a CPI da Covid, a China. É preciso encontrar um inimigo e lançar-se contra ele. Sem inimigo(s) o estado de exceção não sobrevive.
“O que queremos é paz, progresso e acima de tudo liberdade. A gente sabe que esse último desejo passa por vocês (militares). Vocês é que decidem, em qualquer país do mundo, como aquele povo vai viver”. Não é verdade. Primeiro porque a paz é incompatível com a agenda do caos, destruição e morte. Segundo, em qualquer país do mundo no qual os militares decidem como o povo deve viver não há liberdade, não há democracia, mas golpe e ditadura. Mas esta fala conecta-se com a ideia anterior, e de certo modo, na lógica autoritária, faz sentido: vivemos em estado de exceção e se as forças armadas atendessem ao seu chamado seria o fim completo da democracia.
A maior dificuldade de percepção da corrosão da democracia por parcela da sociedade que ainda não compreendeu a gravidade do momento se dá pelo fato do autoritarismo contemporâneo não se apresentar mais com os elementos claros de identidade que surgiam no passado. O autoritarismo dos nossos dias não marca dia e hora para o golpe de Estado. Não finca bandeira. Não edita atos institucionais para suspender a Constituição ou fechar o Congresso Nacional ou aposentar ministros do Supremo Tribunal Federal. O autoritarismo do nosso tempo é líquido. É fantasmagórico. Está presente, mas não se assume. Envolve-se numa névoa de um vocabulário de direitos, e muitos não enxergam. Vale-se de símbolos democráticos, até mesmo da Constituição, para afrontar a democracia e a própria Constituição. Investe contra a liberdade de imprensa, depois recua, ameaça o Poder Judiciário, em seguida simula respeitá-lo, fustiga a cultura e a educação, direitos fundamentais e sociais em avanços intermitentes e alternando os seus alvos – alternam-se os inimigos. A descontinuidade dos ataques gera confusão. Parece falha ou fraqueza, mas é estratégia do estado de exceção da contemporaneidade. A capacidade de liquefazer-se. A habilidade de passar entre os dedos da mão que tenta afastar a agressão. O autoritarismo é líquido porque às vezes torce, outras esgarça, noutras solenemente ignora a Constituição, mas diz lhe render tributos.
A agenda de governo em estado de exceção é o caos, destruição e morte. Ao chamar as forças armadas a normalidade desejada não é a volta à ordem constitucional, mas a permanência da exceção. Uma aparente contradição, mas coerente com o novo autoritarismo: longe, bem longe da normalidade constitucional.
* Luis Manuel Fonseca Pires é juiz de Direito no Estado de São Paulo. Professor de Direito Administrativo da PUC-SP. Autor de Estados de exceção. A usurpação da soberania popular, ed. Contracorrente. Líder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção da PUC-SP.
* Pedro Estevam Alves Pinto Serrano é advogado. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Autor de Autoritarismo e golpes na América Latina. Breve ensaio sobre jurisdição e exceção, ed. Alameda. Líder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção da PUC-SP.
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