Ilustração: Omar Bdoor |
Um hospital que Israel ordenou ser evacuado na sexta-feira, 13 de outubro, ano 75 da Catástrofe palestina, chama-se Al-Awda, “O Retorno”. O exército israelense dera também um ultimato para que um milhão de pessoas fujam para o sul, pois arrasaria o norte do enclave sitiado há 15 anos. A Faixa de Gaza é não só “um campo de concentração”, o “gueto de Varsóvia na Palestina”, ou “a maior prisão a céu aberto”, mas também um grande campo de refugiados das outras fases do genocídio com que se constituiu o Estado de Israel. Não é o Hamas, mas o empenho dos refugiados por retornar e a persistência dos que resistem em permanecer é que são considerados pelos sionistas a maior ameaça ao seu projeto colonial e racista para a Palestina.
Diante de mais um massacre na Faixa de Gaza e na continuidade da ofensiva à Cisjordânia, neste que já era período mais letal para os palestinos nos últimos 20 anos, em diversos textos, comentários e transmissões já se destacou que a violência que inunda as telas hoje começou há pelo menos 100 anos. Não com a “invasão do Hamas” à festa realizada a poucos quilômetros da cerca que mantinha mais de dois milhões de pessoas em cativeiro desde 2007, no território ocupado desde 1967 por Israel. Por outro ângulo, como certamente já o fizeram, os eventos de sábado (7) seriam descritos como a fuga de um xeque-mate; ou o perfurar do véu da realidade para aqueles que ainda não a enxergavam, naquele oásis feito de ilusões banhado pelo mar que os palestinos não podem alcançar, com praias turísticas na cidade cosmopolita, às vezes sobrevoado por helicópteros de combate que ninguém enxerga, refrescado pelo ar que os palestinos não podem respirar, viajado por estradas que os palestinos não podem percorrer.
De cada lado da “fronteira”, nome que Israel dá à cerca que instalou ao redor de Gaza, como numa ficção tão cheia de realidade (A Cidade e a Cidade), era como se houvesse duas dimensões separadas, de pessoas proibidas de ver uma à outra, ainda que, neste caso, um lado enxerga, enquanto o outro cumpre a ordem de esquecer o de lá. Qualquer intento, seja da forma que for e até mesmo do “lado de cá”, de perfurar o véu, “atravessar a fronteira”, sofre pronta intervenção da autoridade suprema e seu agente é “retirado” de cena.
Em 2018, com mais crimes de guerra e crimes contra a humanidade, conforme relatório de comissão de inquérito da ONU, Israel reprimiu brutalmente a “Grande Marcha de Retorno”, que buscou lembrar ao mundo que mais de 70% dos residentes da Faixa de Gaza são refugiados e que, nos países vizinhos, milhões de palestinos demandam o direito a voltar para o seu país. Em 2017, os palestinos marcaram o Centenário da Declaração de Balfour com que a Grã-Bretanha se comprometeu a apoiar a implantação da colonização sionista na Palestina e os 50 anos da ocupação militar na guerra de 1967, eventos que resultaram precisamente na expulsão de centenas de milhares de pessoas e a devastação ou tomada de cidades de onde são oriundos mais de seis milhões de refugiados.
Em 2014, Israel arrasou a Faixa de Gaza pela terceira vez em cinco anos, no seu macabro exercício de “poda” com sua nem-tão-rebuscada-assim doutrina Dahiya de devastação rápida e chocante de bairros inteiros, mantendo o enclave em constante catástrofe humanitária e tornando a vida insustentável, segundo a ONU. Em 2012, 2008, 2002, … invasões com botas, gás, balas, tanques; bombardeios com fósforo branco, a matança indiscriminada, incursão, prisão, tortura, terror, em escolas, clínicas, postos de controle militar, locais sagrados, campos de refugiados de um e de outro lado da ocupação. Jabalia, Jenin, Khan Younes. Shatila e o bairro libanês de Sabra, em 1982, Kafr Qasim, 1956, Deir Yassin, 1948, Balad al-Sheikh, 1947.
Mas são os seus sobreviventes os terroristas, seja com sua luta armada ou seus acordos de paz, seu Estado amputado, sufocado, dominado, suas campanhas por boicote, suas eleições, seus apelos à ONU, seus direitos humanos, suas catástrofes humanitárias.
Haganah, Irgun, Stern: milícias sionistas se metamorfoseiam, pelas mãos do Trabalhista David Ben Gurion, virando as mal celebradas IDF (“Forças de Defesa de Israel”). Os massacres se repetem: é essa a substância fundamental da história de Israel e de uma sociedade feita refém pelo seu próprio exército, os seus próprios líderes, todos soldados da destruição.
Organização para a Libertação da Palestina (OLP), com Fatah, Frente Popular pela Libertação da Palestina, Partido Popular Palestino, e tantos mais, uniões e sindicatos de mulheres, agricultores, jornalistas, estudantes, professores, padres, imãs e também rabinos, organizações de direito humanos, comitês populares, campanhas internacionais: a essência da história dos palestinos, seja no refúgio, no exílio, na diáspora, sob ocupação e sob colonização continua sendo, em 1936, 1976, 1987, 2000, com tantas revoltas, greves e intifadas, e todos os dias, é a resistência. E são estes, não os seus opressores, que a mídia procura encurralar, colocar no banco dos réus, quando permite que usem os seus microfones, como se cada entrevista fosse um inquérito, um processo penal. Afinal, esse é o “inimigo” que o regime colonial de Israel procura exterminar.
* Moara Crivelente é cientista política e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).
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