Por Caetano Manenti, no site dos Jornalistas Livres:
Doeu ouvir tanta gente lembrar com nostalgia do restaurante que ficava sob as sombras das mangueiras de Bento Rodrigues. Doeu ouvir tanta gente falar de um lugar que não existe mais e que talvez nunca mais volte a existir. Foi assim durante toda esta sexta-feira: uma dor profunda nos olhos de todos que subiram e desceram as ladeiras de chão batido dos distritos que ficam ao norte do centro de Mariana, primeira capital de Minas Gerais.
Minas Gerais…. parece que, nesta semana, até o nome deste estado dói um pouco. Afinal, é mais uma vez ela, a mina, ou a mineração, o sonho de riqueza de uns poucos, o motivo de choro de tantos mais. Nunca saberemos quantos escravos, desde os tempos de um Brasil remoto, morreram para fazer o ouro brotar desta terra e enriquecer outras mais. Tantos séculos depois, queremos é saber, desta vez, quantos morreram para fazer minério de ferro virar fortuna para uns poucos por aqui. Pouco mais de um dia depois da tragédia, queremos entender muito mais.
Por que a barragem de rejeitos rompeu? Por que não havia buscas por sobreviventes por terra em Bento Rodrigues, apenas pelo ar? Se outros animais resistiram sob a lama, por que humanos não poderiam ser encontrados também? Alguma outra barragem corre risco de se romper aqui em Mariana, como teme a população de diversos distritos, como o povo de Santa Rita Durão? Por que uma barragem maior ficava acima de um barragem menor, ao contrário da lógica? Elas estavam supercarregadas, como dizem alguns moradores? Havia obras de ampliação da barragem em andamento, como dizem alguns moradores? Elas podem ter causado a tragédia? Como uma barragem pode se romper num período de extensa estiagem? Por que havia duas barragens sobre as cabeças de uma comunidade inteira? Como as mineradoras e, especialmente, a Samarco, se relacionam com os moradores da região, afinal? Quais órgãos públicos vão se corresponsabilizar pela tragédia? Poucas destas respostas começaram a ser respondidas nesta sexta-feira.
Ao se aproximar da catástrofe, o distrito vizinho a Bento Rodrigues, Santa Rita Durão já dava o tom. A frente da igreja, moradores, alguns sexagenários, conversavam desconfiados. Ninguém se sentia seguro ali. A salvo das barragens de Santarém e do Fundão, estariam mesmo protegidos dos rejeitos da mina Alegria, localizada morro acima?
No morro que serve de plateia para o vale onde está (ou estava) Bento Rodrigues, de pé sobre os imensos dutos da Samarco, o povo simples da região mirava o horizonte desesperançosamente. Sob a lama, nada se mexia. Afora um longínquo latido de cão e 15 resistentes mangueiras, tudo parecia morto.
É provável que as autoridades de resgate pensassem o mesmo. Afinal, não havia qualquer resgate por terra. Nem carros, nem motos, nem tratores ou botes ou qualquer outro alento sobre a lama. A única procura vinha do alto e ficava longe, à distância de helicópteros e de seus agentes dependurados.
A 500 metros do distrito destruído, dois policiais militares e dois cones montavam uma portaria à brasileira: com jeitinho, era possível avançar através dela e se aproximar da “lama movediça”, que transformara para sempre Bento Rodrigues. Nos últimos passos em terra firme, ouvimos um forte mugido. À beira do antigo leito do rio, hoje um caminho impreciso de pura “lama movediça”, em vez de avistar uma vaca, no entanto, viram-se dois cavalos, que urravam, plenos de agonia. A égua estava coberta de lama até o pescoço. O potrinho, talvez seu filhote, agonizava caído, quase afogado. Era preciso chamar ajuda.
Morro acima, a reportagem encontrou um quarteto de policiais militares, que justificaram, mesmo sem verificar, que era impossível tirar os animais daquela situação. Por sorte, sem missão definida naquele momento, o bombeiro civil Dennis Valério passava pelo local. Ele ouviu a história, se convenceu da missão e chamou reforço: mais de vinte homens e mulheres. “Os bombeiros trabalham com vida, qualquer forma de vida”, lembrou o subtenente Selmo de Andradre, que passou a chefiar a operação.
Durante uma hora e meia de intenso esforço, os bombeiros enfiaram os pés, as pernas e o corpo inteiro na lama para salvar o potro, muito mais leve que a égua. Era um lindo esforço para salvar “um ser de Deus”, como disse um dos agentes da linha de frente. Não seria fácil. A cada puxão, a lama voltava a mostrar a sua força para o povo mineiro. Tal qual um cimento úmido prestes a endurecer, a lama fazia questão de agarrar o potrinho de volta. A luta era simbólica. Em um dia tão trágico, salvar qualquer vida que fosse recarregava todos de ânimo.
Entre os personagens de dias tão inesquecíveis na região, o nome de Danilo era o mais falado. Seria um jovem heroico, que salvara boa parte dos moradores de Bento Rodrigues na madrugada passada. Uma servidora da secretaria de saúde de Mariana garantiu ter visto o moço subir ao topo das árvores para buscar jovens desesperados. Danilo teria ainda levado água e comida para quem aqueles que não conseguiu resgatar. Possuído por amor e coragem, teria ainda aberto caminhos alternativos, na escuridão total, para servir de fuga para seus vizinhos que ficaram presos no distrito destruído.
Danilo nem é tão jovem. Já está com 39 anos. O resto todo, ao que tudo indica, é mesmo verdade. De qualquer modo, encontrado em sua casa em Santa Rita, exausto de um dia tão cansativo quanto triste, evitou a reportagem. Disse que não era herói. Que não queria ser herói dessas circunstâncias.
Aliás, ninguém quer. O que se quer, agora, são respostas.
Doeu ouvir tanta gente lembrar com nostalgia do restaurante que ficava sob as sombras das mangueiras de Bento Rodrigues. Doeu ouvir tanta gente falar de um lugar que não existe mais e que talvez nunca mais volte a existir. Foi assim durante toda esta sexta-feira: uma dor profunda nos olhos de todos que subiram e desceram as ladeiras de chão batido dos distritos que ficam ao norte do centro de Mariana, primeira capital de Minas Gerais.
Minas Gerais…. parece que, nesta semana, até o nome deste estado dói um pouco. Afinal, é mais uma vez ela, a mina, ou a mineração, o sonho de riqueza de uns poucos, o motivo de choro de tantos mais. Nunca saberemos quantos escravos, desde os tempos de um Brasil remoto, morreram para fazer o ouro brotar desta terra e enriquecer outras mais. Tantos séculos depois, queremos é saber, desta vez, quantos morreram para fazer minério de ferro virar fortuna para uns poucos por aqui. Pouco mais de um dia depois da tragédia, queremos entender muito mais.
Por que a barragem de rejeitos rompeu? Por que não havia buscas por sobreviventes por terra em Bento Rodrigues, apenas pelo ar? Se outros animais resistiram sob a lama, por que humanos não poderiam ser encontrados também? Alguma outra barragem corre risco de se romper aqui em Mariana, como teme a população de diversos distritos, como o povo de Santa Rita Durão? Por que uma barragem maior ficava acima de um barragem menor, ao contrário da lógica? Elas estavam supercarregadas, como dizem alguns moradores? Havia obras de ampliação da barragem em andamento, como dizem alguns moradores? Elas podem ter causado a tragédia? Como uma barragem pode se romper num período de extensa estiagem? Por que havia duas barragens sobre as cabeças de uma comunidade inteira? Como as mineradoras e, especialmente, a Samarco, se relacionam com os moradores da região, afinal? Quais órgãos públicos vão se corresponsabilizar pela tragédia? Poucas destas respostas começaram a ser respondidas nesta sexta-feira.
Ao se aproximar da catástrofe, o distrito vizinho a Bento Rodrigues, Santa Rita Durão já dava o tom. A frente da igreja, moradores, alguns sexagenários, conversavam desconfiados. Ninguém se sentia seguro ali. A salvo das barragens de Santarém e do Fundão, estariam mesmo protegidos dos rejeitos da mina Alegria, localizada morro acima?
No morro que serve de plateia para o vale onde está (ou estava) Bento Rodrigues, de pé sobre os imensos dutos da Samarco, o povo simples da região mirava o horizonte desesperançosamente. Sob a lama, nada se mexia. Afora um longínquo latido de cão e 15 resistentes mangueiras, tudo parecia morto.
É provável que as autoridades de resgate pensassem o mesmo. Afinal, não havia qualquer resgate por terra. Nem carros, nem motos, nem tratores ou botes ou qualquer outro alento sobre a lama. A única procura vinha do alto e ficava longe, à distância de helicópteros e de seus agentes dependurados.
A 500 metros do distrito destruído, dois policiais militares e dois cones montavam uma portaria à brasileira: com jeitinho, era possível avançar através dela e se aproximar da “lama movediça”, que transformara para sempre Bento Rodrigues. Nos últimos passos em terra firme, ouvimos um forte mugido. À beira do antigo leito do rio, hoje um caminho impreciso de pura “lama movediça”, em vez de avistar uma vaca, no entanto, viram-se dois cavalos, que urravam, plenos de agonia. A égua estava coberta de lama até o pescoço. O potrinho, talvez seu filhote, agonizava caído, quase afogado. Era preciso chamar ajuda.
Morro acima, a reportagem encontrou um quarteto de policiais militares, que justificaram, mesmo sem verificar, que era impossível tirar os animais daquela situação. Por sorte, sem missão definida naquele momento, o bombeiro civil Dennis Valério passava pelo local. Ele ouviu a história, se convenceu da missão e chamou reforço: mais de vinte homens e mulheres. “Os bombeiros trabalham com vida, qualquer forma de vida”, lembrou o subtenente Selmo de Andradre, que passou a chefiar a operação.
Durante uma hora e meia de intenso esforço, os bombeiros enfiaram os pés, as pernas e o corpo inteiro na lama para salvar o potro, muito mais leve que a égua. Era um lindo esforço para salvar “um ser de Deus”, como disse um dos agentes da linha de frente. Não seria fácil. A cada puxão, a lama voltava a mostrar a sua força para o povo mineiro. Tal qual um cimento úmido prestes a endurecer, a lama fazia questão de agarrar o potrinho de volta. A luta era simbólica. Em um dia tão trágico, salvar qualquer vida que fosse recarregava todos de ânimo.
Entre os personagens de dias tão inesquecíveis na região, o nome de Danilo era o mais falado. Seria um jovem heroico, que salvara boa parte dos moradores de Bento Rodrigues na madrugada passada. Uma servidora da secretaria de saúde de Mariana garantiu ter visto o moço subir ao topo das árvores para buscar jovens desesperados. Danilo teria ainda levado água e comida para quem aqueles que não conseguiu resgatar. Possuído por amor e coragem, teria ainda aberto caminhos alternativos, na escuridão total, para servir de fuga para seus vizinhos que ficaram presos no distrito destruído.
Danilo nem é tão jovem. Já está com 39 anos. O resto todo, ao que tudo indica, é mesmo verdade. De qualquer modo, encontrado em sua casa em Santa Rita, exausto de um dia tão cansativo quanto triste, evitou a reportagem. Disse que não era herói. Que não queria ser herói dessas circunstâncias.
Aliás, ninguém quer. O que se quer, agora, são respostas.
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