segunda-feira, 29 de maio de 2017

Dominação financeira, o caminho ao caos

Por Ladislau Dowbor, no site Outras Palavras:

O modelo brasileiro de desenvolvimento da última década ia bem obrigado. Um conjunto de programas econômicos e sociais, como a elevação do salário mínimo, ampliação das aposentadorias, transferências para as famílias mais pobres, expansão da educação e dos serviços de saúde, amplos investimentos em infraestruturas e outros programas ampliaram a demanda para as empresas, o que por sua vez, além de gerar produtos, gerou mais de 10 milhões de empregos formais, ampliando ainda mais a demanda – levando ao chamado “círculo virtuoso” de crescimento: dinamizou-se a economia, ao mesmo tempo que se respondia às necessidades reais da população, priorizando quem mais precisa. E como uma economia mais dinâmica gera mais recursos públicos, foi possível equilibrar o financiamento do conjunto, inclusive as políticas sociais e redistributivas.

Este esquema funciona, e não somente aqui. Funcionou na Coreia do Sul que realizou um milagre com forte participação estatal nos investimentos e redução da desigualdade, como funcionou também nos “30 anos de ouro” do pós-guerra na Europa da socialdemocracia, e nos EUA do New Deal, até ser travado nos anos 1980 pela onda ideológica neoliberal. O que deixou as pessoas perplexas, no nosso caso, é como este modelo de desenvolvimento foi interrompido, e porque deixou de funcionar. O mais importante que temos de entender é que o modelo é correto e adequado, a economia deve sim responder às necessidades da população, e o Estado deve ser um articulador importante. Mas a apropriação privada da política é que travou o sistema.

Não só travaram o círculo virtuoso, como geraram uma enorme campanha de convencimento da população de que a culpa do travamento foi justamente a orientação redistributiva, a demagogia de um estado querendo ser bonzinho com os pobres, e portanto essencialmente “populista” e “irresponsável”. O boicote organizado contra toda iniciativa do Estado, o ataque contra as políticas desenvolvimentistas em todos os espaços, na mídia, no Judiciário e em particular no Legislativo geraram a crise. Assim conseguiram desarticular os processos democráticos, travar a economia, e ao mesmo tempo atribuir a culpa aos que tinham promovido a política redistributiva. Mas em nome da nação, naturalmente, em nome da luta contra a corrupção — pois desde sempre a bandidagem política se exerce em nome de elevados ideais éticos.

Do final do milênio herdamos a Constituição de 1988, com uma visão adequada de mais democracia e redução da desigualdade, e em particular o artigo 192º, que passava a reger o sistema financeiro nacional. Mas em 1997 foi aprovado o financiamento corporativo das campanhas eleitorais, e passamos a ter um congresso com bancadas dos grandes bancos, do agronegócio, da grande mídia, das montadoras — fica-se à procura da bancada do cidadão. É este congresso, eleito por um sistema que já foi declarado inconstitucional pelo STF, que serviu de instrumento para o travamento geral do desenvolvimento inclusivo que estava em curso, e a desestruturação geral dos ganhos democráticos do país nas últimas décadas. Mas a base de interesses econômicos que deu força ao movimento de retrocesso gerado no país foi o sistema financeiro.

A economia real funciona com quatro motores: as exportações, que permitem dinamizar um conjunto de atividades; a demanda das famílias – de longe o principal motor, inclusive porque responde às necessidades imediatas de consumo; o investimento das empresas, que depende diretamente do consumo das famílias e também do investimento público; e o próprio investimento público, tanto em infraestruturas como em políticas sociais de consumo coletivo como Saúde, Educação, Segurança e semelhantes. Da saúde destes quatro motores depende a dinâmica econômica do país.

O mercado externo

No Brasil as exportações não constituem nem de longe o principal motor. Os cerca de 185 bilhões de dólares de exportações, representando como ordem de grandeza 600 bilhões de reais, constituem cerca de 10% do PIB. É significativo, em particular porque permite importar bens e serviços importantes para a economia, mas nada de decisivo. Não somos de modo algum uma economia como alguns países asiáticos, onde o motor do comércio externo é essencial. Com uma população de 205 milhões habitantes, e um PIB de 6 trilhões de reais, somos antes de tudo uma economia vinculada ao mercado interno. Se as dinâmicas internas não funcionam, o setor externo pouco poderá resolver. E na fase atual de marasmo mundial o setor externo não é alternativa.

O essencial para o nosso raciocínio, aqui, é que as soluções no curto e no médio prazo, para a economia brasileira, concentram-se no mercado interno, no consumo das famílias, nas atividades empresariais e nos investimentos públicos em infraestruturas e políticas sociais.

A demanda interna

Incomparavelmente mais importante é a demanda das famílias, que constitui o principal motor da economia. Trata-se também de uma dinâmica que estimula atividades fins, o arroz e o feijão na nossa mesa. Quando a demanda interna murcha, as empresas não têm interesse em produzir. E quando a demanda está forte, haverá quem invista para responder e lucrar, dinamizando a economia.

A partir de 2014, no entanto, o processo entrou em crise. A realidade é que os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de crescimento. O assalto representado pelos juros para pessoa física é impressionante: na Europa o crédito é da ordem de 3,5% ao ano, no Brasil a média é 103%! Artigos do lar, nos crediários, média de 105%, na Europa 13%!

O resultado é que a população se endividou muito para comprar pouco no volume final. A prestação que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é travado. A dívida das famílias passou de 19,3% da renda familiar em 2005 para 46,5% em 2015: ninguém entra em novas compras com este nível de endividamento, quando quase a metade da renda está presa no serviço da dívida. O principal motor da economia, a demanda das famílias, é travado.

O investimento empresarial

O travamento da demanda das famílias, da grande massa de consumo da população, tem efeito imediato nas inciativas das empresas, que vêm os seus estoques de produtos não vendidos se acumular. É natural que reduzam o ritmo de produção, o que por sua vez afeta o emprego. Quanto ao financiamento bancário para pessoas jurídicas, os juros são igualmente proibitivos, da ordem de 24% para capital de giro, 35% para desconto de duplicatas, e tocar uma empresa nestas condições não é viável. Na zona euro o custo médio do crédito para pessoa jurídica é de 2,2% ao ano, diretamente acessível em qualquer banco. Ninguém consegue desenvolver atividades produtivas com taxas de juros como as que praticamos, e as empresas acabam buscando o autofinanciamento, perdendo-se o imenso motor de dinamização da economia que é o crédito barato ao produtor.

Além da baixa demanda e do crédito caro, no caso brasileiro, um terceiro fator desestimula o produtor: ele tem a alternativa de aplicar no Tesouro Direto, que rende 6% acima da inflação, liquidez total, risco zero, uma alternativa que permite ao empresário ver o seu dinheiro render sem precisar enfrentar os esforços e riscos das atividades produtivas. Entramos no reino do capital improdutivo.

Os investimentos públicos

Vejamos o quarto item da engrenagem, a taxa Selic que incide sobre a dívida pública. O mecanismo é simples. Eu que sou poupador, de um bolso coloco a minha poupança no banco que me remunera de maneira simbólica. O banco aplica este dinheiro em títulos do governo, que o remunera a partir dos impostos. Assim, via governo, sou eu que pago aos bancos 11% para terem o prazer de ter o meu dinheiro (6% descontada a inflação). É importante lembrar que os títulos da dívida pública pagam na faixa de 0,5% ao ano na maioria dos países do mundo.

O gasto com a dívida pública atingiu 8,5% do PIB em 2015. São cerca de 500 bi dos nossos impostos transferidos essencialmente para os grupos financeiros. Com isso se esteriliza parte muito significativa da capacidade do governo financiar infraestruturas e políticas sociais, como Saúde, Educação e Segurança. O sistema é absolutamente insustentável para a economia. Quando o governo Dilma tentou baixar os juros, que chegaram a 7,5% para uma inflação de 5%, em 2014, a revolta dos rentistas que ganham com juros altos foi geral, passaram a questionar inclusive a eleição. Iniciou-se uma articulação perversa entre crise financeira e crise política, uma sustentando a outra, paralisando o país. Com o golpe, o Brasil volta para uma economia “de base estreita”, prioridade para os ricos, e trava-se o objetivo histórico essencial de harmonizar o país pela elevação social das massas populares.

E para a população, vende-se a ideia de que são as políticas sociais que geraram o déficit público e o travamento da economia. Quando se compara as poucas dezenas de bilhões que representa o Bolsa Família, investimento nas pessoas, e os 500 bilhões transferidos para rentistas, que ganham sem produzir, o argumento se torna ridículo. Os interesses financeiros serviram de escada para a captura política e o retrocesso democrático.

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