Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Tocqueville no seu “Democracia na América” (II p..813), considerando que a democracia – por carregar o gérmen de um novo despotismo – transformar-se-ia no “seu contrário”, escreveu que “nossos contemporâneos imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos (e) consolam-se pelo fato de serem tutelados, pensando que eles mesmos selecionaram seus tutores(…). Num sistema deste gênero os cidadãos saem, por um momento da dependência, para designar o seu amo e logo voltam a entrar nela”. Vem do Século 19 uma lúcida lição sobre a questão democrática na pós-modernidade da pós-verdade, que nos faz pensar no Brasil destes nossos dias de crueldade, miséria moral e autoritarismo que combina o ultraliberalismo com os espasmos fascistas que nos trouxeram até a tragédia.
“Perdi a confiança no Jair, tenho vergonha de ter acreditado nele, é uma pessoa louca, um perigo para o Brasil”. Esta frase -atribuída pelo jornalista Lauro Jardim ao ex-ministro Gustavo Bebianno- desvela toda a densidade do texto de Tocqueville. O projeto democrático moderno – mesmo nos países mais centrais do capitalismo global – não mais consegue absorver os conflitos de classe e os interesses fragmentários do corpo social, para harmonizá-los de forma pacificadora com as instituições: elas se “fecham” sobre si mesmas, diz Castells, “isolando-se dos seus representados até converter-se num aparato que vela antes de tudo por sua própria sobrevivência.” No Brasil, seria mais preciso dizer, elas são fechadas sobre si mesmas, a partir da extrema capacidade adquirida pela mídia tradicional para direcionar informações e para organizar frentes políticas golpistas e coalizões reformistas de direita, que inclusive assumem o risco de ter à testa pessoas visivelmente perturbadas, em termos emocionais e políticos.
Este ambiente de “fechamento” é, pois, o ambiente oportuno para que o pensamento totalitário lance as suas âncoras e passe a cortejar os territórios sociais nos quais ele pode prosperar. Na época do domínio integral do capital financeiro sobre a acumulação global, seria preciso que a democracia se re-inventasse para enfrentar os novos tempos da sua crise mais grave, desde a Segunda Guerra. É o momento no qual as instituições democrático-republicanas não só vem perdendo a sua capacidade de harmonizar-se, mas também os corretivos dos processos eleitorais tem se mostrado estéreis para repactuar a vida política e moral das nações. Boaventura Souza Santos observa com sua inteligência peculiar que estamos entrando no período em que a democracia pode ser assassinada por métodos democráticos, dentro do próprio processo democrático em decadência: as eleições manipuladas pelos “fake-news” do populismo agressivo de Steve Bannon nos empurram para o abismo.
Um eminente professor tucano já falecido, num livro publicado em 2006 (“O Mito do Progresso”, 2006, Gilberto Dupas) diz a certa altura daquela obra que foi, talvez, o suspiro final do pensamento “progressista” dos intelectuais do PSDB, desafiando marxistas e não marxistas, em defesa da preservação da democracia: “Como construir um meta relato que assuma o frio e o cruel do capitalismo e que, ainda assim, possua força dramática e a compulsão do relato marxista? Não parece fácil propor às novas gerações a imagem do caubói bushiano ou do sorridente vendedor Tony Blair, para substituir no seu imaginário, figuras como Lenin ou Guevara.(…)Como substituir a teoria marxista, por outra que amarre as complexidades da era global e reintroduza utopias e propostas de solução.”
Dois elementos chamam atenção no texto do professor. De uma parte, a constatação de que -para que o novo relato seja honesto- deve ser assumido que o capitalismo é “frio e cruel”; de outra, que as novas gerações rebeldes ainda poderão ser movidas por “utopias”. A seguir, o Professor Dupas passa a considerar o diferimento necessário, entre as “más perguntas” e “más respostas”, todavia o que permanece de central na sua indagação (para a política) é o seguinte: uma formação social que desemboca na crueldade e na frieza, e que sucateia o seu traço humanista socialdemocrata, sempre que lhe exige a reciclagem da taxa de lucro -contra as conquistas que lhe emprestaram mínima dignidade- tem chances de seduzir as novas gerações? Penso, junto com Bernie Sanders, que não e que é preciso restaurar a centralidade do humanismo moderno, das idéias do igualitarismo e do socialismo -utópico e “científico”- que deitam as suas raízes na própria História da Humanidade. E assim repensar a própria democracia num Estado Social de Direito.
Do cristianismo primitivo às utopias camponesas que precederam a revolução industrial, de Thomas Morus a Giordano Bruno, de Graco Babeuf a Marx, a questão social e a supressão das diferenças, forçadas pela dominação do escravismo – colonial ou não – resiste na ideia da igualdade. Do capitalismo selvagem ao turbinado capitalismo das redes de dominação das mentes e das vidas, já perpassa -hoje- novamente o desafio de restaurar a proposta socialista-democrática e republicana. Está cada vez mais claro -hoje mais do que nunca- que o recurso do capitalismo em crise, ao fascismo e ao nazismo, nas suas formas mais ou menos atenuadas estará sempre presente como solução violenta e imediata.
Bernie Sanders fez da sua campanha eleitoral um poderoso instrumento de mediação da ideia socialista, para uma nova América reconciliada com a democracia dos seus “pais fundadores”, baseada em propostas simples e claras, passíveis de serem entendidas na sua especial dimensão socialdemocrata, que seriam simplesmente revolucionárias nos Estados Unidos. Na esteira do humanismo democrático do Lincoln anti-escravocrata e do Eugene Debs, da tradição heroica do proletariado clássico, Bernie Sanders propôs: seguro de saúde financiado pelo Estado para todo o conjunto da população; educação universitária pública gratuita; e duplicação do valor do salário mínimo federal. Utopia? Sim, mas é isso mesmo que se requer restaurar, para abrir um novo ciclo político democrático em que se fusionem as ideias do republicanismo democrático com o humanismo igualitário,no filtro da soberania popular.
O Brasil hoje é refém de um atormentado grupo político – sem eira, sem beira, sem capacidade política, sem projeto de nação – porque os banqueiros, os grandes agronegociantes, os grupos mais elevados no topo da plutocracia estatal resolveram – com as corporações globais e o empresariado nacional sem projeto de país e sem projeto de negócios – que era a hora das reformas. Fosse com quem fosse, as reformas deveriam sair da incubadeira ultraliberal e dos fornos dos seus aliados proto-fascistas e assumir o Estado. Enquanto isso, o homem que conversou com todo o Brasil, Lula, que preservou a democracia e conciliou -sempre que pode- interesses antagônicos e também alargou a democracia para os mais pobres está preso e condenado pelo atual Ministro da Justiça. O ex-juiz e seu algoz, hoje sentado à direita de quem Bebbiano -seu colega de Ministério- diz que é um louco e um perigo para o país. Pode demorar, mas a consciência ou a crise vai nos trazer, desta feita da América, os bons ventos da igualdade para nos devolver a dignidade e a coragem.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Tocqueville no seu “Democracia na América” (II p..813), considerando que a democracia – por carregar o gérmen de um novo despotismo – transformar-se-ia no “seu contrário”, escreveu que “nossos contemporâneos imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos (e) consolam-se pelo fato de serem tutelados, pensando que eles mesmos selecionaram seus tutores(…). Num sistema deste gênero os cidadãos saem, por um momento da dependência, para designar o seu amo e logo voltam a entrar nela”. Vem do Século 19 uma lúcida lição sobre a questão democrática na pós-modernidade da pós-verdade, que nos faz pensar no Brasil destes nossos dias de crueldade, miséria moral e autoritarismo que combina o ultraliberalismo com os espasmos fascistas que nos trouxeram até a tragédia.
“Perdi a confiança no Jair, tenho vergonha de ter acreditado nele, é uma pessoa louca, um perigo para o Brasil”. Esta frase -atribuída pelo jornalista Lauro Jardim ao ex-ministro Gustavo Bebianno- desvela toda a densidade do texto de Tocqueville. O projeto democrático moderno – mesmo nos países mais centrais do capitalismo global – não mais consegue absorver os conflitos de classe e os interesses fragmentários do corpo social, para harmonizá-los de forma pacificadora com as instituições: elas se “fecham” sobre si mesmas, diz Castells, “isolando-se dos seus representados até converter-se num aparato que vela antes de tudo por sua própria sobrevivência.” No Brasil, seria mais preciso dizer, elas são fechadas sobre si mesmas, a partir da extrema capacidade adquirida pela mídia tradicional para direcionar informações e para organizar frentes políticas golpistas e coalizões reformistas de direita, que inclusive assumem o risco de ter à testa pessoas visivelmente perturbadas, em termos emocionais e políticos.
Este ambiente de “fechamento” é, pois, o ambiente oportuno para que o pensamento totalitário lance as suas âncoras e passe a cortejar os territórios sociais nos quais ele pode prosperar. Na época do domínio integral do capital financeiro sobre a acumulação global, seria preciso que a democracia se re-inventasse para enfrentar os novos tempos da sua crise mais grave, desde a Segunda Guerra. É o momento no qual as instituições democrático-republicanas não só vem perdendo a sua capacidade de harmonizar-se, mas também os corretivos dos processos eleitorais tem se mostrado estéreis para repactuar a vida política e moral das nações. Boaventura Souza Santos observa com sua inteligência peculiar que estamos entrando no período em que a democracia pode ser assassinada por métodos democráticos, dentro do próprio processo democrático em decadência: as eleições manipuladas pelos “fake-news” do populismo agressivo de Steve Bannon nos empurram para o abismo.
Um eminente professor tucano já falecido, num livro publicado em 2006 (“O Mito do Progresso”, 2006, Gilberto Dupas) diz a certa altura daquela obra que foi, talvez, o suspiro final do pensamento “progressista” dos intelectuais do PSDB, desafiando marxistas e não marxistas, em defesa da preservação da democracia: “Como construir um meta relato que assuma o frio e o cruel do capitalismo e que, ainda assim, possua força dramática e a compulsão do relato marxista? Não parece fácil propor às novas gerações a imagem do caubói bushiano ou do sorridente vendedor Tony Blair, para substituir no seu imaginário, figuras como Lenin ou Guevara.(…)Como substituir a teoria marxista, por outra que amarre as complexidades da era global e reintroduza utopias e propostas de solução.”
Dois elementos chamam atenção no texto do professor. De uma parte, a constatação de que -para que o novo relato seja honesto- deve ser assumido que o capitalismo é “frio e cruel”; de outra, que as novas gerações rebeldes ainda poderão ser movidas por “utopias”. A seguir, o Professor Dupas passa a considerar o diferimento necessário, entre as “más perguntas” e “más respostas”, todavia o que permanece de central na sua indagação (para a política) é o seguinte: uma formação social que desemboca na crueldade e na frieza, e que sucateia o seu traço humanista socialdemocrata, sempre que lhe exige a reciclagem da taxa de lucro -contra as conquistas que lhe emprestaram mínima dignidade- tem chances de seduzir as novas gerações? Penso, junto com Bernie Sanders, que não e que é preciso restaurar a centralidade do humanismo moderno, das idéias do igualitarismo e do socialismo -utópico e “científico”- que deitam as suas raízes na própria História da Humanidade. E assim repensar a própria democracia num Estado Social de Direito.
Do cristianismo primitivo às utopias camponesas que precederam a revolução industrial, de Thomas Morus a Giordano Bruno, de Graco Babeuf a Marx, a questão social e a supressão das diferenças, forçadas pela dominação do escravismo – colonial ou não – resiste na ideia da igualdade. Do capitalismo selvagem ao turbinado capitalismo das redes de dominação das mentes e das vidas, já perpassa -hoje- novamente o desafio de restaurar a proposta socialista-democrática e republicana. Está cada vez mais claro -hoje mais do que nunca- que o recurso do capitalismo em crise, ao fascismo e ao nazismo, nas suas formas mais ou menos atenuadas estará sempre presente como solução violenta e imediata.
Bernie Sanders fez da sua campanha eleitoral um poderoso instrumento de mediação da ideia socialista, para uma nova América reconciliada com a democracia dos seus “pais fundadores”, baseada em propostas simples e claras, passíveis de serem entendidas na sua especial dimensão socialdemocrata, que seriam simplesmente revolucionárias nos Estados Unidos. Na esteira do humanismo democrático do Lincoln anti-escravocrata e do Eugene Debs, da tradição heroica do proletariado clássico, Bernie Sanders propôs: seguro de saúde financiado pelo Estado para todo o conjunto da população; educação universitária pública gratuita; e duplicação do valor do salário mínimo federal. Utopia? Sim, mas é isso mesmo que se requer restaurar, para abrir um novo ciclo político democrático em que se fusionem as ideias do republicanismo democrático com o humanismo igualitário,no filtro da soberania popular.
O Brasil hoje é refém de um atormentado grupo político – sem eira, sem beira, sem capacidade política, sem projeto de nação – porque os banqueiros, os grandes agronegociantes, os grupos mais elevados no topo da plutocracia estatal resolveram – com as corporações globais e o empresariado nacional sem projeto de país e sem projeto de negócios – que era a hora das reformas. Fosse com quem fosse, as reformas deveriam sair da incubadeira ultraliberal e dos fornos dos seus aliados proto-fascistas e assumir o Estado. Enquanto isso, o homem que conversou com todo o Brasil, Lula, que preservou a democracia e conciliou -sempre que pode- interesses antagônicos e também alargou a democracia para os mais pobres está preso e condenado pelo atual Ministro da Justiça. O ex-juiz e seu algoz, hoje sentado à direita de quem Bebbiano -seu colega de Ministério- diz que é um louco e um perigo para o país. Pode demorar, mas a consciência ou a crise vai nos trazer, desta feita da América, os bons ventos da igualdade para nos devolver a dignidade e a coragem.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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