terça-feira, 16 de julho de 2019

A onda conservadora no Brasil e nos EUA

Por Conceição Lemes, no blog Viomundo:

Quem estiver em São Paulo na quinta-feira da outra semana, dia 25 de julho, uma sugestão: o lançamento e debate do livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro, de Marina Basso Lacerda. A advogada Valeska Martins, fundadora do Instituto Lawfare, participará.

Será às 19 h, na Livraria Tapera Taperá, bem no centro da capital: galeria Metrópole, avenida São Luís 187, centro, 2º andar, loja 29.

O livro, que está sendo lançado pela editora Zouk, de Porto Alegre (RS), trata do paralelo entre a ascensão do neoconservadorismo nos Estados Unidos no fim da década de 1970 e o surgimento do novo conservadorismo no Brasil a partir de meados de 2015 – que culmina com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República.

“Entre as pessoas com as quais eu dialogava, Marina foi uma das primeiras que percebeu o peso do ataque à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual no quadro mais amplo do novo conservadorismo na Câmara dos Deputados”, observa no prefácio Flávia Biroli, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma das mais importantes cientistas políticas do Brasil na atualidade.

Ela prossegue:

As eleições de 2018 nos mostrariam o potencial de um ativismo conservador que articula diferentes temáticas, numa reação convergente aos direitos sociais, aos direitos humanos e às transformações nas relações de gênero. E a ‘ideologia de gênero’, aquela noção que muita gente não levou a sério lá atrás, em 2014 ou 2015, seria estratégica na campanha.
Para Flávia Biroli, o livro de Marina Lacerda fornece recursos para enfrentarmos o desafio de nomear o que se apresenta, ainda como novidade, nesta quadra histórica:

A ênfase em uma visão idílica da família, como contraponto às inseguranças vivenciadas pelas pessoas, tem se mostrado uma aposta política frutífera. Ela está no centro de um novo conservadorismo que atua na contramão dos direitos sociais e dos direitos fundamentais dos indivíduos, respaldando projetos antipluralistas e autoritários.

Marina é advogada e analista legislativa da Câmara dos Deputados, em Brasília.

Bacharela em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela é mestra em direito pela PUC-RJ e doutora em ciência política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Nós entrevistamos a autora sobre o livro e alguns conceitos que ele apresenta.

Afinal, o que é o novo conservadorismo brasileiro? Em que medida ele se diferencia do conservadorismo nativo tradicional?

Para começar, existe uma discussão acadêmica imensa sobre o que é o conservadorismo.

Eu adoto uma definição segundo a qual o conservadorismo é uma reação mais ou menos organizada que procura preservar a ordem estabelecida em um contexto de mudança.

Dito isso, não existe um conservadorismo típico. Tem vários, conforme a situação histórica.

Agora, no Brasil o conservadorismo, as reações às mudanças, sempre foram muito identificadas com o ruralismo.

A questão agrária tem um peso tremendo na nossa formação política. É o que discutem os ensaístas clássicos brasileiros.

O conservadorismo também foi muito associado aos militares, especialmente no contexto da Guerra Fria.

Você também pode pensar no conservadorismo econômico, chamado de neoliberalismo, que tomou a cena nos anos 90 e que hoje está por aí nos think tanks liberais.

Por que você chama o neoliberalismo de conservadorismo econômico?

Porque o neoliberalismo é um programa para o aumento da desigualdade.

Já esse novo conservadorismo, ou neoconsevadorismo, que é o objeto do livro, é outra coisa. Ele se estrutura em torno de um certo evangelismo e do punitivismo, e tem na defesa da família tradicional o centro do seu programa político.

No livro, você diz que o novo conservadorismo surge a partir de meados de 2015 e culmina com a eleição de Bolsonaro. A partir de quando você começou a ver os sinais disso? Tem algum momento decisivo? Foi observando as bancadas na Câmara dos Deputados?

O momento decisivo são as eleições de 2014, que levam, portanto, à composição da Câmara que toma posse em 2015. Mas, evidentemente, esse é um marco de um processo que se inicia antes.

Os sinais anteriores são, por exemplo, a centralidade que o tema do aborto assumiu nas eleições de 2010 - quando o Serra resgatou um vídeo em que a Dilma dizia que a interrupção da gravidez era uma questão de saúde pública.

Teve também a reação forte ao Programa Brasil sem Homofobia - que ficou conhecido, assim apelidado pelo Bolsonaro, de Kit Gay. Isso foi em 2011, e ecoou até nas eleições de 2018.

Em que momento você reparou a entrada em cena da ideologia de gênero?

Foi num dia em 2013 ou 2014. Eu estava andando no corredor da Câmara - eu sou analista legislativa - e vi um grupo de jovens, esperando para entrar em um plenário, cujo tema de debate era o Plano Nacional de Educação (PNE), relatado pelo ex-deputado federal Ângelo Vanhoni (PT-PR).

Aí, eu perguntei para aqueles rapazes: o que vocês estão fazendo aqui?

Esse é um hábito que tenho. Quando vejo um grupo da sociedade civil na Câmara eu pergunto o motivo da manifestação.

E eles me responderam: “viemos lutar contra a ideologia de gênero”.

Eu nunca tinha ouvido a expressão. Eles estavam lá por conta da menção à diversidade de orientação sexual e identidade de gênero no PNE.

Foi aí que pegou o fio da meada?

Um pouquinho adiante. Mais precisamente em 2015, no dia da eleição do deputado Paulo Pimenta para presidente da Comissão de Direitos Humanos (hoje ele é líder do PT).

Naquele dia se revelou ali, na composição do colegiado, um grupo hegemônico composto por deputados evangélicos e policiais ou militares, entre os quais Bolsonaro.

Lembro que um deles invocou a “maioria moral” cristã.

Foi a partir dessa referência que eu peguei o fio do novelo.

Essa articulação entre cristãos conservadores – nos Estados Unidos, eles tinham uma organização chamada Moral Majority — e defensores de um discurso forte em cima da law and order [lei e ordem] foi forjada com o republicano Reagan [Ronald Reagan presidiu os EUA de janeiro de 1981 a janeiro de 1989].

O novo conservadorismo no Brasil é uma cópia, uma releitura do neoconservadorismo que ascendeu nos EUA no final da década de 1970?

É uma espécie de reedição principalmente porque alguns fatores se repetem.

Que fatores se repetem?

O primeiro fator: avanço do movimento gay (hoje chamado de movimento LGBT) e do feminismo.

No fim da década de 1960 e na década de 1970 os Estados Unidos viveram um enorme movimento de resistência civil e contracultura.

Lá, houve a ERA – Emenda de Direitos Iguais. Lá também teve a permissão para o aborto pela Suprema Corte.

Isso provocou uma reação, que autores chamam de necessidade de restabelecimento da família patriarcal.

Politicamente essa reação foi sintetizada no Ato de Proteção à Família — que previa o fortalecimento do homem como chefe.

Aqui no Brasil, quando os movimentos LGBT e feminista têm vitórias institucionais (normativa de saúde reprodutiva, julgamento da constitucionalidade do casamento homoafetivo, por exemplo), uma reação começa a se organizar também. Até um equivalente do Ato de Proteção da Família nós tivemos aqui, que foi o Estatuto da Família.

O segundo fator: necessidade de instauração de uma agenda de restabelecimento do poder econômico das elites.

O neoliberalismo, como teoria, como programa, surge em resposta ao “capitalismo encapsulado” do pós-Segunda Guerra; do capitalismo com presença forte do Estado, reduzindo as desigualdades sociais.

Foi uma reação aos programas do governo Lyndon Johnson [veja PS do Viomundo] de bem-estar social, chamados de “Great Society”.

Aqui, no Brasil, também: depois de anos de programas (ainda que tímidos) que implicaram em uma certa redução da desigualdade socioeconômica, você tem um novo avanço neoliberal.

O neoconservadorismo é uma reação à agenda dos comportamentos e uma reação ao Estado de bem-estar. O Reagan se elege com base nesses pilares: família, ortodoxia econômica, rigor penal.

Essa fórmula se repete aqui. A resposta para os problemas sociais não é o Estado, não são as políticas públicas, não são as respostas socialdemocratas.

A resposta para os problemas sociais é a família. Na falha da família, para aqueles que não se encaixam, o poder punitivo do Estado.

No livro, você diz que o neoconservadorismo é fundado na tríade militarismo, absolutismo do livre mercado e família tradicional. No nosso caso, o combate à “ideologia de gênero”, a defesa do Escola Sem Partido e do Estatuto da Família referem-se a uma das pernas do tripé, a família tradicional. Fim do desarmamento diz respeito ao militarismo. O estabelecimento de teto de gastos públicos com a preservação de juros refere-se ao absolutismo do livre mercado. Proposta de mudança da embaixada para Jerusalém e a defesa de Israel seriam inovação tupiniquim ou o quê?

Não é invenção tupiniquim, não. Pelo contrário, e isso é que é muito curioso.

Eu disse antes que, em parte, temos uma reedição do neoconservadorismo porque os fatores se repetem: avanço feminista e LGBT e avanço de programas de Bem-Estar.

Muito bem. Mas há outro motivo: a direita cristã. O crescimento do evangelismo na política contribuiu muito para esse processo.

A defesa de Israel é um dos pilares da direita cristã nos EUA, e aqui por consequência também. A comunicação das igrejas brasileiras com as norte-americanas é muito intensa, há décadas.

Lá, o principal grupo de apoio à causa sionista é de cristãos. São os sionistas cristãos.

E a crítica que esses grupos fazem ao que chamam de “marxismo cultural globalista”?

Quem fala isso é o atual chanceler, Ernesto Araújo. Ele relaciona, num artigo, o “marxismo cultural globalista” à “diluição do gênero”.

É o argumento usado por uma das formuladoras da crítica à “ideologia de gênero”, uma autora americana que associa o marxismo e o feminismo, que integrariam a tal ideologia de gênero.

A associação entre crítica ao marxismo e ao feminismo é feita pelos teóricos neoconservadores já na década de 70.

A derrubada da Dilma já era parte desse projeto? Quando ela nomeou o Levy ela teria dado asas para isso?

Bem, o antipetismo e isso que eu chamo de neoconservadorismo se comunicam.

Os avanços progressistas foram, em sua maioria, por agentes do Poder Executivo chefiado pelo PT. As políticas redutoras de desigualdade, ainda que suaves, foram protagonizadas pelos governos Lula.

Mas a derrubada da Dilma faz parte de um processo mais amplo — que envolve o desgaste de anos no governo, o Judiciário, pressões internacionais, problemas econômicos de fora e de dentro do país.

Então, na minha interpretação, o neoconservadorismo foi uma das forças de desestabilização da Dilma, mas não a principal.

Certamente quando nomeou o Levy ela estava querendo dialogar com os setores que queriam reformas neoliberais. Ela inclusive sinalizou que mudaria algo no regime de exploração do pré-sal. Ela entregou os anéis para tentar ficar com os dedos.

Mas a ferocidade das políticas de concentração de renda que foram tomadas a partir do Temer jamais seriam viáveis com um governo de centro-esquerda como o petista.

No prefácio, a professora Flávia Biroli diz que você foi uma das primeiras pessoas a notar essas mudanças no Brasil. E agora, o que se pode cogitar? Com base no que aconteceu nos EUA o que é possível se imaginar pro Brasil?

A força neoconservadora é crescente. Bolsonaro foi eleito com grande votação. Governando, ele sofreu um desgaste de popularidade, mas agora está estável.

O argumento neoconservador - que promete ordem, valores morais sólidos, progresso econômico - é potente. A reforma da previdência acabou de ser aprovada com uma votação expressiva e com um certo apoio popular.

Então sim, esse é um movimento que ainda vai perdurar. Mas a história vem em ondas e é cíclica. Mais que isso, eu não arrisco dizer. Eu não sei o que vai acontecer.

PS do Viomundo: Lyndon Johnson era vice de John Kennedy. Com o assassinato de Kennedy, em 22 de novembro de 1963, ele assumiu a presidência, completando o mandato. Em 1964, Lyndon Johnson foi eleito presidente, governando até 20 de janeiro de 1969.

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