quinta-feira, 9 de julho de 2020

O credo neoliberal resulta em exclusão

Por Luiz Gonzaga Belluzzo, na revista CartaCapital:

No ensaio recente Néolibéralisme classique et nouveau néolibéralisme, Pierre Dardot cuida de seu tema preferido, o neoliberalismo, suas origens e evolução.

Julguei oportuno revisitar a contraposição entre o liberalismo clássico e os neoliberalismos em um momento delicado da vida brasileira.

Muitos brazucas se contorcem entre a adesão aos movimentos em defesa da democracia sem adjetivos e os receios de perder na caminhada os inalienáveis direitos sociais e econômicos duramente conquistados.

Vamos às origens.

Ainda antes da Segunda Guerra Mundial, em carta a um amigo, Willem Röpke, um dos corifeus do neoliberalismo, desvelou a incompatibilidade entre seu ideário e a democracia geral e irrestrita.

“É possível que minha opinião sobre um ‘Estado forte’ (um governo que governa) seja ainda ‘mais fascista’, porque eu realmente gostaria de ver todas as decisões de política econômica concentradas nas mãos de um Estado vigoroso e totalmente independente e não fragilizado pelas forças pluralistas de natureza corporativista…

Estou procurando a força do Estado na intensidade e não na abrangência de sua política econômica.

…Compartilho a opinião de que as velhas fórmulas da democracia parlamentar demonstraram sua futilidade.

As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também uma democracia presidencial, autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum – uma democracia ditatorial.”


Michel Foucault discorreu com abrangência e profundidade sobre o significado do neoliberalismo.

Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia que afirma o predomínio dos nexos mercantis sobre o conjunto das relações sociais.

Para o filósofo,

“a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência…

Trata-se de fazer do mercado, da concorrência e, por consequência, da empresa o que poderíamos chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.


Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz Foucault, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea.

O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas introduzir a regulação do mercado para preservar a concorrência e impedir as interferências nefastas da proteção social aos “ineficientes”.

Em 1942, Willem Röepke revisitou as categorias Dominium e Imperium.

Dominium significa “dominância sobre as coisas”, Imperium significa “dominância sobre os homens”.

Ele diz: “Imperium e Dominium estão separados no mundo do liberalismo clássico”.

Já o neoliberalismo deve manter a convergência entre essas duas esferas, o que corresponde à visão de um “governo duplo”: haveria um mundo da economia e da propriedade, coexistindo com outro mundo, o dos espaços jurídico-políticos onde vivem e padecem os homens de carne e osso.

Corey Robin, em artigo sobre as afinidades entre Nietszche e Hayek, afirma que o economista austríaco admite a necessidade das “decisões de uma elite governante” com antidoto às trapalhadas da malta ignara.

Nas páginas do famoso livro The Road to Serfdom, Hayek escreve: “O empregador e o indivíduo independente estão empenhados em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada”.

Ao trabalhador de Hayek faltam responsabilidade, iniciativa, curiosidade e ambição.

É um perdedor.

Por isso, nos escritos político-jurídicos, Hayek não hesita em escolher o liberalismo diante dos riscos da democracia.

“Há um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – não se trata da democracia como tal, mas de determinadas formas de organização democrática…

Agora tornou-se indiscutível que os poderes da maioria são ilimitados e que governos com poderes ilimitados devem servir às maiorias e aos interesses especiais de grupos econômicos.

Há boas razões para preferir um governo democrático limitado, mas devo confessar que prefiro um governo não democrático, limitado pela lei, a um governo democrático ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei).”


O poeta e crítico literário Anis Shivani reconhece que as leis do Imperium conseguiram submeter os mais frágeis.

“Em vez de reivindicarem a proteção social como um direito legítimo, os cidadãos sentem-se culpados, vexados e deprimidos por sua dependência dos programas governamentais”.

Convencidos de sua liberdade, os indivíduos livres entregam seu destino aos grilhões da concorrência e às ilusões da meritocracia.

Transtornados por suas culpas, os perdedores acomodam-se aos suplícios da exclusão e da desigualdade.

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