segunda-feira, 7 de março de 2022

A guerra e o parto da nova ordem mundial

Por Jeferson Miola, em seu blog:


Até onde se conhece, o ser humano é o único ser vivo que se mobiliza e se excita com o trágico humano, com a competição destrutiva, com a cenografia da dor, do sofrimento e da morte do seu semelhante.

O Coliseu, teatro do Império Romano construído há quase 2 mil anos, é um monumento a esta reverência e a este culto do homo sapiens à tragédia, à destruição e à morte humana.

Além de palco para outras representações teatrais, o Coliseu oportunizava a uma audiência de dezenas de milhares de pessoas entretenimentos macabros – combates entre gladiadores até a morte e, também, jogos de morte nos quais humanos eram mortos de maneira terrível, mutilados e dilacerados por animais, ou queimados vivos. O culto ao bárbaro como experiência épica.

É compreensível, portanto, que as pessoas acompanhem e se posicionem acerca da guerra como se estivessem na arquibancada do grande Coliseu midiático e cibernético. Como se estivessem torcendo fervorosamente para seu time de preferência em uma competição esportiva.

Ser pró ou anti-Putin, do mesmo modo que ser pró ou anti-EUA/OTAN não significa, necessariamente, ser de direita ou de esquerda. Do mesmo modo que não significa ser pacifista ou belicista ou estar apoiando os “mocinhos” na luta contra os “bandidos”.

Na guerra na Ucrânia não se está definindo se o mundo será capitalista ou socialista, como também se será um mundo de paz ou de conflitos.

Nesta guerra, por outro lado, também não se está decidindo apenas o que será da Ucrânia, porque se está disputando o futuro do sistema mundial de poder – se continuará sendo exercido de modo imperial e unipolar pelos EUA, o que é cada vez mais improvável de continuar acontecendo; ou se será um mundo multipolar, com novos equilíbrios de poder.

A guerra na Ucrânia, com tudo de dramático e de horrível que possa produzir, contraditoriamente representa o parto dolorido do nascimento da nova ordem mundial. Os lados implicados nesta guerra – a OTAN, os EUA e seus vassalos europeus; assim como a China e a Rússia – sabem perfeitamente disso e guerreiam exatamente por isso.

A essencialidade da Ucrânia para a geopolítica, para a segurança e defesa da Rússia é secularmente conhecida. E reconhecida pelo establishment e ideólogos geopolíticos estadunidenses. Todos os lados do conflito sabem dos limites e condicionalidades para a segurança da Rússia e da Europa.

É amplamente reconhecido que a Ucrânia é uma linha divisória intransponível para a Rússia, do mesmo modo que seria impensável os EUA aceitarem a instalação de arsenais nucleares russos nos territórios de Cuba, México e Canadá.

As provocações contínuas dos EUA e da OTAN por meio da interferência na política ucraniana para afrontar a Rússia foram deliberadas. A guerra, deste ponto de vista, portanto, era um evento previsível e contabilizado. Foi sendo contratada por antecedência por todos os lados; sua deflagração no terreno de combate era apenas questão de tempo.

Interessante que logo após o início da ofensiva russa, em 24 de fevereiro, começaram as retaliações bem orquestradas. Percebeu-se que já estavam previamente programadas e coordenadas, não houve improviso. Até a proibição de gatinhos russos em certames de beleza felina entrou no rol de sanções contra a Rússia, assim como o banimento de atletas do país em competições internacionais de variados esportes.

Neste contexto de redesenho da nova ordem geopolítica mundial, o próximo período deverá ser de turbulências, conflitos e enfrentamentos. Não pode ser afastado, inclusive, o aumento de tensões e conflitos da China com Taiwan e Hong Kong, assim como tensões e escaramuças na América Latina, sobretudo envolvendo Cuba, Venezuela e Nicarágua.

É delirante a ideia de que Putin pretende re-sovietizar a Rússia. Embora não se conheça com clareza o plano dele em relação à Ucrânia, o mapa do avanço russo está longe de caracterizar uma estratégia de ocupação e domínio total do território, quanto menos a perspectiva de anexação do país com vistas a uma União Soviética rediviva. Além disso, Putin não consta como um líder com idéias socialistas.

Os EUA se valem do anticomunismo da guerra fria como espantalho para a narrativa macarthista propagada pelos monopólios midiáticos. O mundo, entretanto, é muito maior e muito mais plural que este maniqueísmo binário ao qual os EUA se agarram para continuar arregimentando apoios ao seu projeto de dominação do mundo.

A proposta sino-russa de reconfiguração da ordem mundial apresentada em Pequim [4/2] questiona frontalmente a hegemonia dos EUA.

Por mais difícil que seja admitir, do ponto de vista ético e humano, é preciso reconhecer, porém, que a guerra na Ucrânia é parteira da nova ordem mundial.

O caminho pleiteado pela China, de solução pacífica e diplomática do conflito para a desmilitarização da Ucrânia e a não-adesão do país à OTAN, é uma via que deveria ser perseverada para reduzir ao máximo os traumas, as dores e as tragédias inaceitáveis, ainda que inevitáveis, em qualquer guerra.

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