sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Metrô-SP e a Grande Quadrilha

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Por Téia Magalhães, na revista Retrato do Brasil:

Os objetivos dos governos e dos cartéis são, em princípio, opostos: o poder público se esforça para comprar sempre pelo menor preço bens e serviços com determinadas especificações de qualidade e o cartel, ao contrário, quer vendê-los por preços superiores aos que cada empresa individualmente proporia se houvesse concorrência real. Para combater a ação dos cartéis, os governos criam órgãos de defesa da concorrência e criminalizam os conluios entre empresas independentes que se articulam com o objetivo de reduzir a concorrência em determinado setor. A cartelização é um fenômeno das economias capitalistas desde o final do século XIX e seu combate, apesar dos esforços dos Estados, é frequentemente frustrante.

Por aqui, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, formado pela Secretaria de Direito Econômico e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ligados ao Ministério da Justiça, e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico, vinculada ao Ministério da Fazenda, é o encarregado desse combate. Em maio do ano passado, o Cade ganhou destaque no noticiário graças ao acordo de leniência firmado com a Siemens AG, alemã, a Siemens Ltda, sua subsidiária brasileira, e seis ex-diretores da empresa. Todos admitiram ter participado de um cartel e apresentaram evidências de acordos feitos entre as empresas da área de trens urbanos e metrôs para burlar a concorrência.

Acordo de leniência é um instrumento legal, equivalente à delação premiada, instituído na área criminal, por meio do qual o delator de um crime do qual participou tem sua pena atenuada por ter ajudado nas investigações. O acordo celebrado com o Cade é acompanhado de uma descrição dos fatos, modo de operação do cartel e seus participantes e de apensos, os quais detalham seis licitações: implantação da linha 5 do Metrô de São Paulo; manutenção de três séries de trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM); manutenção e assistência técnica ao Metrô do Distrito Federal (DF); ampliação da linha 2 do Metrô de São Paulo; implantação do Projeto Boa Viagem, de modernização de trens da CPTM; e aquisição de 320 carros para trens da CPTM. Os fatos narrados teriam ocorrido entre 1998 e 2008, envolvendo os governos de Mario Covas, Geraldo Alckmin e José Serra, em São Paulo, e de Joaquim Roriz, Maria Abadia e José Roberto Arruda, no DF.

Os indícios de formação do cartel são encontrados em negociações realizadas entre dezesseis companhias, nacionais e internacionais, para combinar resultados de licitações conduzidas por empresas públicas para fornecimento de trens ou serviços. Os contratos são divididos entre as empresas fornecedoras por meio da formação de consórcios e subcontratações e de ofertas de preços mais altos, chamados “de cobertura”, de maneira a elevar o valor do conjunto das ofertas além do que seria obtido se houvesse verdadeira concorrência entre os participantes. Nesses casos, as “perdedoras” acabam sendo recompensadas mais adiante com vitórias em outras licitações, quando empresas vitoriosas numa situação invertem suas posições e oferecem preços “de cobertura”.

Nas seis licitações mencionadas no acordo de leniência há conluios entre as empresas para elevar os preços de fornecimento de bens e serviços. Foi o que aconteceu, por exemplo, na implantação da linha 5 do Metrô paulistano, cuja licitação foi conduzida na época (entre 1999 e 2000) pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM): havia sete qualificados na fase inicial, a maioria dos quais agrupou-se no consórcio Sistrem, vencedor da licitação, que subcontratou duas das três empresas do consórcio derrotado.

Há diversas pistas das negociações entre as empresas numa espécie de diário com anotações sobre os acertos, entregue pela Siemens ao Cade, no qual há relatos da hipótese, depois abandonada, da entrega por dois consórcios formados na fase da pré-qualificação de “propostas perdedoras”. Essa licitação foi ganha por cerca de US$ 1,785 milhão por carro, conforme documento encontrado em computador da empresa alemã. “Deve-se lembrar que o preço foi resultado de diversas rodadas de coordenação e negociações. O preço dificilmente seria o mesmo em uma competição aberta”, diz o texto, de 2003. E numa apresentação, encontrada entre os documentos, há o comentário: “O projeto Linha 5 é o último de ganho certo. O fornecimento dos carros é organizado em um consórcio ‘político’, então o preço é muito alto”.

Outro exemplo está no e-mail de funcionário da Siemens enviado a dois funcionários da japonesa Mitsui, com simulações feitas sobre duas diferentes possibilidades de entrar na disputa da licitação da reforma de três séries de trens da CPTM. Uma das hipóteses prevê acordo e “preço (quase) cheio”, com desconto baixo sobre o preço estimado pelo edital. A outra não prevê acordo, “beirando o preço mínimo permitido”. A diferença entre as duas – uma com acerto entre as empresas e a outra, com concorrência entre elas – seria de 30%. O sobrepreço pago pelas empresas públicas devido à prática do cartel tem sido estimado em mais de 400 milhões de reais.

Outra prática comum revelada pelos documentos é a divisão dos contratos entre os integrantes do cartel. Como teria ocorrido em relação à manutenção dos trens da CPTM Séries 2000, 3000 e 2100: as empresas acertaram quais seriam as vencedoras em cada série e quais seriam as subcontratadas. Como o ganhador da primeira foi o Consórcio Cobraman (composto pela francesa Alstom, pela canadense Bombardier e pela espanhola CAF), a Siemens deveria vencer a Série 3000 e Alstom, CAF, Bombardier, a espanhola Temoinsa e Mitsui ficariam com a Série 2100. Quando o Cobraman pretendeu dividir a Série 3000 com a Siemens, a empresa alemã informou às demais companhias que apresentaria proposta competitiva para a Série 2100, o que provocou o recuo do consórcio. A Siemens acabou vencedora isolada da Série 3000, cuja licitação recebeu propostas “de cobertura” das demais empresas. A Série 2100 foi contratada com o consórcio Consmac (Alstom e CAF), que subcontratou as outras três – Bombardier, Temoinsa e Mitsui – como fornecedoras.

Foi objeto de repartição ainda maior o Projeto Boa Viagem, dividido em quatro licitações, duas das quais subdivididas em lotes, o que permitiu que todas as empresas que participaram das negociações fossem contempladas com um lote ou subcontratadas. Alstom, Bombardier, Siemens, Temoinsa, e as brasileiras Iesa MGE T’Trans, Tejofran e MPE, chamadas nos e-mails de “grupo”, iniciaram as negociações antes mesmo do início da etapa de pré-qualificação. Mensagens eletrônicas relatam providências para manter afastadas as empresas que não pertencem ao “grupo”.

Esse caso evidencia como a própria administração pública favorece a cartelização, ao contratar serviços e obras em lotes. A contratação de grandes obras em uma única licitação foi muito criticada no passado pelo fato de facilitar o direcionamento dos editais para uma ou pouquíssimas empresas com capacidades técnica, operacional e financeira de assumi-las. Passou-se a adotar, então, a divisão em lotes, para facilitar a participação de empresas menores e, dessa forma, aumentar a concorrência. Mas parece que o tiro saiu pela culatra e os lotes acabaram facilitando a acomodação dos cartéis, ao menos nos casos descritos pela documentação entregue pela Siemens.

A administração pública também pode influenciar as licitações para favorecer determinada empresa ou grupo de empresas por meio das especificações técnicas dos editais. É o que parecem indicar e-mails internos da Siemens sobre a futura licitação de extensão de uma linha da CPTM; um dos dirigentes da empresa afirma: “A CPTM gostaria muito se a Siemens participasse com seus veículos e/ou tecnologia de equipamentos. (…) Fomos convidados a manter conversas mais detalhadas com os especialistas da CPTM a fim de ‘melhorar’ [sic] as especificações técnicas com nossa tecnologia”. Ou ainda: “[Estamos] atuando junto à CPTM e ao Metrô de São Paulo para que tenha origem neste setor uma participação importante para a Siemens (por exemplo, equipamentos completos de tração)”.

As denúncias da Siemens revelam também que entre as empresas formadoras de um cartel há interesses divergentes. A última das licitações mencionadas pela companhia no acordo com o Cade, pela ordem cronológica, é para o fornecimento de três carros para a CPTM entre 2007 e 2009. Segundo relatos da Siemens, haveria uma segunda licitação em seguida, para fornecimento de 64 carros, levando a uma combinação entre Siemens e Alstom. A empresa francesa ficaria com o contrato inicial, associada à sul-coreana Hyundai-Rotem, e subcontrataria a companhia alemã, enquanto esta ficaria com o fornecimento dos 64 carros seguintes, associada à Mitsui, subcontratando a Alstom. As negociações, entretanto, foram comprometidas pela decisão da CAF de apresentar oferta com preços mais baixos.

A Siemens tentou negociar com a companhia espanhola no final de março de 2008, mas a CAF queria a entrega de trens completos, enquanto a empresa alemã queria fornecer apenas componentes (tração e chassis). Em contrapartida, a Hyundai-Rotem, que estava associada à Alstom, começou a negociar com a Siemens, para, juntas, tentarem desqualificar a CAF, que segundo a sul-coreana, não teria cumprido exigências do Banco Mundial, que financiou o projeto. A Siemens foi à Justiça e perdeu. E a CAF acabou contratada em 2009. E a segunda etapa, com os 64 carros, também foi ganha pela CAF.

Esses arranjos teriam sido facilitados pela fragilidade dos processos de licitação. Pelo menos é o que conclui o Grupo Externo de Acompanhamento (GEA), criado em agosto pelo governo paulista, composto por representantes de doze entidades da sociedade civil para supervisionar investigações sobre as denúncias que envolviam duas das empresas estatais do estado. Em dezembro, o GEA divulgou uma análise dos processos licitatórios adotados pela CPTM e pelo Metrô, a partir de informações solicitadas às duas companhias. De acordo com o grupo, o procedimento usado pela CPTM até 2008 incluía a aplicação de correção monetária sobre preços de aquisição atingidos em licitações anteriores. A partir de 2008, por recomendação do Tribunal de Contas do Estado (TCE), a empresa passou a fazer cotação de preços – mas por meio de consultas às companhias que participam desse mercado no Brasil, sem buscar informações no exterior, ficando dependente dos próprios interessados na licitação. O mesmo procedimento de consulta de preços foi informado pelo Metrô. O GEA concluiu, então, que essas práticas tornaram as duas empresas estatais paulistas vulneráveis.

A investigação sobre a existência de um cartel no setor metroferroviário feita pelo Cade não trata de corrupção, uma vez que não é esse o papel do órgão. Mas informações obtidas por outras denúncias estão sendo investigadas pela Polícia Federal (PF) em São Paulo, e se embaralharam com as informações fornecidas pela Siemens ao Cade. As fragilidades da administração pública diante do cartel metroferroviário e a persistente prática de fazer vista grossa dos sucessivos governos frente às evidências de que as empresas dividem os contratos entre si formam um caldo de cultura propício ao desenvolvimento da corrupção. Algo que, pelo menos as duas principais empresas que atuam no Brasil – Siemens e Alstom – admitiram praticar no exterior.

De acordo com informações publicadas pelo diário O Estado de S. Paulo no final de novembro, documento atribuído a Everton Rheinheimer – ex-diretor da Siemens e um dos que firmaram o acordo de leniência –, encaminhado à PF, menciona os nomes de secretários do governo Alckmin, de dirigentes do PSDB e do DEM, de um senador tucano e de um deputado federal do PPS como envolvidos com a Procint, empresa de consultoria suspeita de intermediar propinas pagas pelo cartel. Rheinheimer afirma dispor de documentos “que provam a existência de um forte esquema de corrupção no estado de São Paulo durante os governos Covas, Alckmin e Serra, e que tinha como objetivo principal o abastecimento do ‘Caixa 2′ do PSDB e do DEM”. A PF, que investiga o caso, encaminhou o inquérito à Justiça Federal, que o enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) ao se deparar com o suposto envolvimento de parlamentares, que têm foro privilegiado.

A atração pelas denúncias de corrupção trouxe para a cena outra investigação da PF sobre uma empresa que faria parte do cartel – a Alstom. Os pagamentos não se referem ao cartel dos trens, mas a negociações realizadas sob o abrigo do projeto Gisel II–Grupo Industrial para o Sistema Eletropaulo, realizado por meio de acordo de cooperação técnica entre Brasil e França, que teria sido assinado em 1983, mas originalmente sem o “II”. Tal tipo de acordo era comum entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 e destinava-se a “rolar” a dívida externa, por meio de empréstimos externos destinados a centenas de projetos de infraestrutura. Parte dos recursos era destinada à fabricação de equipamentos no exterior e o restante às obras civis realizadas aqui, as quais não eram realizadas porque os recursos destinados a elas pagavam os juros e as amortizações de projetos anteriores. Foram centenas, que ficaram em grande parte inacabados por anos.

Em meados de 1994, discutiu-se o aditivo 10 ao acordo com a França, o qual, tudo indica, era uma segunda etapa destinada ao fornecimento de subestações elétricas para dar suporte à ampliação de linhas do Metrô paulistano. Essa pode ter sido a porta de entrada da Alstom no setor metroviário.

As denúncias sobre pagamento de propinas pela Alstom chegaram ao Brasil em 2008, por meio de informações enviadas pelo Ministério Público da Suíça, em consequência de investigações realizadas lá em contas que receberam depósitos da Alstom, o que levou a contas cujos titulares eram brasileiros. As investigações prosseguiram e a PF indiciou onze pessoas, entre elas um ex-secretário de Energia no governo Covas, ex-diretores da EPTE (empresa resultante do desmembramento da Eletropaulo para privatização, que atuava na distribuição de energia, com quem foi firmado o aditivo 10 do Gisel), diretores franceses da Alstom e lobistas brasileiros. Aparentemente, meses depois, a PF começou a investigar outra denúncia de propinas pagas pela Alstom e esbarrou em consultorias, que teriam feito pagamentos vultosos a outras empresas do ramo, as quais pertenceriam a dois ex-diretores e a um ex-presidente da CPTM. A Justiça Federal em São Paulo bloqueou diversas contas, num total de 57 milhões de reais. Em sua sentença, o juiz se refere ao fato de duas empresas de consultoria acusadas de fazerem a intermediação no pagamento das propinas terem recebido do consórcio Sistrem mais de 18 milhões reais.

Esses escândalos de corrupção envolvendo altos funcionários de governos, como em outros casos, desviam a atenção de questões de fundo reveladas pelas denúncias. Uma investigação sobre a dívida externa brasileira, por exemplo, que parece estar na origem do projeto Gisel, nunca chegou a ser realizada em profundidade. Tampouco se discute a dependência tecnológica que torna os governos reféns das empresas do cartel metroferroviário. Os acordos de cooperação técnica, como o Gisel, previam a transferência de tecnologia. Para quem? Para a Eletropaulo, primeiro, e depois para a EPTE, que resultou do desmembramento da empresa para sua privatização – vale lembrar que, segundo o diário Folha de S. Paulo, em 2008 ela era dirigida por um ex-executivo da Alstom.

Por que um país como o Brasil, uma das maiores economias do mundo, com graves problemas de mobilidade urbana, não tem uma estrutura própria para produção de seu sistema de trens urbanos e metrôs? Foram necessárias quatro décadas para construir 73 quilômetros de linhas em São Paulo, a cidade brasileira disparadamente mais bem servida nesse sentido. A China, que começou mais ou menos na mesma época, deve alcançar quase 3 mil quilômetros no ano que vem, e tem duas das cinco maiores empresas que atuam no setor – as quais, aliás, fornecem trens para o Metrô do Rio de Janeiro. Já o Brasil resume sua atuação na área a “ajeitar” os editais para atender aos interesses das empresas. Por isso, mesmo diante de evidências escancaradas de que há acordo entre as empresas, com o objetivo óbvio de superfaturar os contratos, os governos não cancelam as licitações. Vão fazer o que, diante das alternativas quase nulas?

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